A independência política dos territórios africanos que estiveram sob o domínio colonial europeu parece não ter trazido grandes mudanças ao nível do sistema educativo atual. No campo da educação, “valores, pontos de vista e formas de seleção e organização do conhecimento europeu podem ainda estar visivelmente presentes nos sistemas educativos de muitos destes países”, nomeadamente Cabo-Verde.
O professor Osvaldino Monteiro é licenciado em História, mestre em Euro-cultura e doutorado em Educação pela Universidade de Santiago de Compostela. Decidiu analisar a forma como a Europa se encontra representada no sistema educativo cabo-verdiano, isto é, como é que a política educativa e as ferramentas curriculares nacionais constroem a ideia, o conceito e a imagem da Europa tendo em consideração a herança colonial e o contexto pós-colonial.
Por conseguinte, a investigação do professor levou-o a aprofundar igualmente as imagens construídas pelos seus alunos do último ano do ensino secundário, tendo em conta os conteúdos que aprendem ao longo do seu percurso escolar, mas também elementos como a localização geográfica de Cabo-Verde.
Desta forma, com o seu estudo, Osvaldino Monteiro pretende compreender todo o processo de construção dos planos curriculares de Cabo-Verde, mas também influenciar as esferas de decisão com ideias que possam ter lugar dentro das políticas de elaboração dos manuais e da formação dos docentes. Encontrando-se em Santa Catarina, na ilha de Santiago, o professor, que integra a Rede História das Pedagogias, Patrimónios Culturais e Materiais Didáticos em Língua Portuguesa – com centros de investigação em Portugal, Brasil e Cabo-Verde – deu-nos uma entrevista online onde abordou todas estas questões e salientou algumas das conclusões a que chegou com a sua investigação.
Entre elas, destaca-se o facto de o número de residentes cabo-verdianos ter aumentado em Portugal, devido à crença de que a vida na Europa poderia ser melhor do que no próprio arquipélago, a qual, por sua vez, pode estar relacionada com as várias representações da Europa, enquanto “realidade monolítica”, a que os estudantes têm acesso ao longo do seu percurso escolar. De acordo com o relatório sobre migrações do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) de Cabo Verde, nos cinco anos anteriores ao quinto Recenseamento Geral da População e Habitação (RGPH-2021) emigraram para Portugal 11.111 cabo-verdianos (61,9%). Para além desta, outra questão levantada por Osvaldino Monteiro é a correlação existente entre os sistemas educativos português e cabo-verdiano que, segundo o professor, partilham alguns dos problemas relativamente à forma como a história de todo o processo colonial é ensinada aos alunos de ambos os países, sendo que Portugal é um ex-colonizador e Cabo-Verde uma ex-colónia.
O que o levou a lecionar e, mais tarde, a investigar a representação da Europa no sistema educacional cabo-verdiano?
Bem, foram várias as razões que me levaram à docência. No início, devo confessar que esteve relacionado com a falta de oportunidades noutras áreas. Isso é comum aqui em Cabo-Verde. Muitas pessoas acabam por enveredar pela a formação na área das ciências, e estou a falar, mais ou menos, num horizonte de há 20 anos para cá, porque antes não existiam universidades aqui. Então, quando acabei o ensino secundário, não tinha outras saídas na altura, apesar de ter tido a média necessária. As coisas não eram tão fáceis. Terminei o ensino secundário, estive um ano parado e, depois dessa fase, comecei a trabalhar enquanto professor, na altura sem formação. Isso era normal aqui em Cabo-Verde. Um ano depois, acabei por me matricular numa formação na área de História, no Instituto Superior de Educação. Fiz um bacharelato e comecei a trabalhar. Portanto, eu sou um indivíduo que vem da área de História em termos de formação, depois tirei um primeiro mestrado na área da Educação, na Universidade de Santiago de Compostela e acabei por fazer um segundo mestrado na área dos Estudos Culturais, no Deusto de Bilbau. Foi aí que surgiu o meu interesse pelas questões europeias. O mestrado intitulava-se “Euro-cultura”, portanto, era um mestrado multidimensional que abordava as questões políticas, culturais e económicas da Europa. Foi isso que influenciou esta minha pesquisa. Comecei a desenhar o meu projeto sobre estudos europeus para a dissertação de mestrado em 2009 e o meu interesse foi tentar unir o conhecimento que se tem da Europa àquilo que os diferentes contextos políticos e geográficos, que existem fora desse continente, constroem e representam em relação à Europa. Percebi que um desses contextos poderia ser Cabo-Verde e foi por isso que comecei a estudar a representação do continente europeu no sistema educativo cabo-verdiano, mais concretamente, no ensino secundário. Quis perceber qual era a imagem que o ensino secundário, enquanto uma dimensão do sistema educacional de Cabo-Verde, construía da Europa, partindo do princípio da Europa antiga potência colonial, mas também uma Europa parceira – possivelmente, a melhor parceira – de Cabo-Verde logo após a independência. Estive à volta desse estudo durante uns anos e depois parei algum tempo, porque comecei a aprofundar mais as questões da história da educação em Cabo-verde. Como podes perceber, fiquei um pouco difuso entre a educação e a história [risos]. Atualmente, e também por influência de colegas da área da História, comecei a aprofundar novamente este estudo.
Tendo em conta o progresso do seu estudo, a que conclusões já chegou? Como é que é, então, representada a Europa no sistema educativo de Cabo-Verde?
Para responder a essa pergunta, gostava que tocássemos em dois pontos que considero importantes. Primeiro, perceber o porquê do estudo. O objetivo do estudo era tentar perceber como é que a Europa, enquanto antiga potência colonizadora e depois parceiro estratégico, é concebida, é descrita, é conceptualizada, é representada no sistema educativo cabo-verdiano. Este foi o meu mapeamento de arranque. Para fazer isso, comecei por estudar os manuais cabo-verdianos de modo a entender como é que a Europa é descrita enquanto conceito, área cultural, contexto político. Fiz um apanhado dos conteúdos que existem em praticamente todos os manuais do ensino básico e secundário que existem em Cabo-Verde. Fui à procura de imagens, de caracterizações, de trechos, de textos e de outros elementos simbólicos que me poderiam ajudar. Para além disso, também apliquei um inquérito aos alunos do último ano do ensino secundário para perceber se a perspetiva que eles têm da Europa vai ao encontro dos conteúdos sobre a Europa que se encontram nos manuais. Quis perceber se essa imagem construída pelos alunos tinha que ver com os manuais ou com outros mecanismos, como os meios de comunicação social ou a influência dos emigrantes. Perguntas-me quais foram os resultados desse estudo. Na verdade, são vários os que podemos apontar, mas, para percebermos os resultados, temos de perceber a própria organização dos manuais em vários períodos da evolução da história política nacional. Se pegarmos, por exemplo, nos manuais depois da independência nacional - tendo em conta que, à partida, o período pós-independência seria um período de algum afastamento da matriz europeia – encontramos raríssimas referências à Europa. Os manuais desse período, portanto anos 80/90, apresentam mais elementos da realidade cabo-verdiana, das suas gentes, dos seus cenários, dos marcos históricos fundamentais. Os conteúdos programáticos focam-se na realidade cabo-verdiana. Depois, entre 1990 e 1991 dá-se uma reforma educativa e temos a adoção de novos manuais. Ao surgirem esses manuais, notamos uma diminuição de imagens, de cenários, de figuras da realidade cabo-verdiana. Saltando para um período mais atual, nomeadamente a partir de 2019, temos a predominância de imagens e ilustrações que representam crianças com características físicas mais próximas ao fenótipo europeu do que africano nos nossos manuais. Temos uma maior quantidade de fotografias reais de crianças brancas em situação de destaque, simulando tarefas que ilustram determinados conteúdos. Por exemplo, no manual de Ciências Integradas do primeiro ano, as duas únicas fotografias reais de crianças representam crianças brancas e europeias a ilustrarem determinadas tarefas como, por exemplo, escovar os dentes. Há uma ausência completa de fotografias reais de crianças africanas ou cabo-verdianas. Temos imagens de crianças a jogar à bola em cenários que não correspondem aos existentes no país como, por exemplo, cenários que dão a entender a existência de uma grande relva verde, o que é impossível encontrar aqui em Cabo-Verde. Encontramos vários conteúdos ilustrados com equipamentos e artefactos que são distantes da realidade cabo-verdiana, como a representação da prática de higiene em casa utilizando aspirador ou imagens de meios de transporte que não existem na rotina diária do aluno cabo-verdiano. Portanto, quanto mais generalistas forem os conteúdos, menor é a presença de ilustrações de pessoas negras ou cabo-verdianas. Como podes ver, não consegues perceber as representações da Europa no sistema educativo se não as comparares com as representações africanas. O que é que nós notamos? Notamos que a Europa está representada, nos manuais e no sistema educativo cabo-verdiano, como uma realidade monolítica, ou seja, um continente uno. O que, na verdade, vai contra o próprio lema da União Europeia: “união na diversidade”. A questão da diversidade europeia não é retratada nesses manuais. De uma forma direta ou indireta, a Europa também é representada como um meio de tecnologias desenvolvidas, de sociedades organizadas, um espaço público muito bem organizado e de amizades. Não temos, por exemplo, referências à Europa como um espaço de conflito, salvo quando se está a estudar a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Mas se estivermos a falar daquilo que são as dinâmicas europeias que nós conhecemos de cada região, não encontramos essas referências. A Europa nunca é representada como uma antiga potência colonizadora no sistema educativo de Cabo-Verde. Nunca.


Mas essas questões não são sequer abordadas nas aulas?
São abordadas, mas de uma forma muito superficial. Não se aprofundam, por exemplo, as questões da história colonial, sobretudo aquela vertente da escravatura e do tráfico de escravos. Isso não está presente nos manuais. Encontramos alguns casos muito específicos, casos pontuais, mas não há uma exploração aprofundada. Mesmo nos livros de História e Geografia de Cabo-Verde, não temos essa exploração. Quando encontramos esses conteúdos, deparamo-nos com umas narrativas que, de certo modo, nos convidam a uma postura de alguma neutralidade e de alguma tendência de não relacionar o continente europeu com a escravatura. Isto vai ao encontro daquilo que os alunos do 12º ano responderam no questionário que apliquei. Eu pedi aos alunos desse ano escolar para completarem a seguinte frase: “a Europa é…”. Muitos responderam: “desenvolvido”, “rico”, “espaço onde quero viver”. Houve um aluno meu que completou a frase “a vida na Europa é…” com a expressão “louca no bom sentido". Portanto, eu quis perceber se as ideias que os alunos constroem se cruzam com aquilo que os manuais evidenciam. Ao elaborar este questionário, não estou à procura da verdade ou da mentira. Estou à procura das representações que os alunos têm do continente europeu. Muitos deles consideram que a língua cabo-verdiana é mais parecida com a língua portuguesa europeia. Quando pergunto se a religião está mais próxima da Europa ou da África, os alunos também tendem a dizer que está mais próxima da Europa. Até a nossa morna (género musical e de dança cabo-verdiano) consideram estar mais próxima da Europa. Já o batuque e o funaná dizem estar mais próximos de África. Os alunos da cidade, maioritariamente, acham que os europeus são “diferentes”, são “inteligentes”, são “povos revolucionários” e “uma raça privilegiada”. No campo, já existe alguma tendência para respostas como: “os europeus são racistas, discriminadores, bons, maus, preguiçosos, egoístas”. Ou seja, encontramos diferentes respostas consoante o meio de residência.


Com base na sua experiência enquanto docente e nos resultados do seu estudo, qual é a imagem criada pelos alunos relativamente ao próprio arquipélago de Cabo-Verde?
Essa pergunta também foi incluída no questionário. De acordo com as respostas dos alunos, percebemos que eles têm mais conhecimento do período inicial do processo de colonização da história de Cabo-Verde, o que, por coincidência, é o período que mais se enfatiza, ou seja, a parte da descoberta, a parte da formação da sociedade. Os alunos estão familiarizados com esse conteúdo. Em contrapartida, eles afirmam que gostariam que o sistema educativo nacional desenvolvesse mais conhecimentos ou desse mais espaço à história contemporânea cabo-verdiana, sobretudo ao período pós-independência. Ou seja, deparamo-nos com um decréscimo do conhecimento da história de Cabo-Verde e esse decréscimo começa, sobretudo, a partir da independência. Quando se fala dos processos de luta ou da primeira República, por exemplo, os alunos sentem fragilidades no seu conhecimento desses processos históricos. Mas quando se fala da colonização, da ocupação das ilhas, mostram-se mais à vontade com essas informações. Podemos encontrar várias justificações para isto. Primeiro, tem que ver com a maneira como se ensina História em Cabo-Verde. No ensino básico obrigatório nacional, isto é, do primeiro ao oitavo ano, ensina-se alguma coisa da história de Cabo-Verde, mas essa história está mais voltada para os capítulos da parte mais cultural. No quinto ano de escolaridade temos uma disciplina que se chama “História e Geografia de Cabo-Verde”, sendo que os conteúdos programáticos começam na parte da descoberta, mas também abordam as questões da luta pela independência. Isso acontece no quinto e no sexto anos. Já no oitavo ano, os alunos estudam uma história generalista, do mundo, que não toca nada em Cabo-Verde. No décimo ano, com a atual revisão curricular, introduziu-se uma nova disciplina denominada “História Económica e Social”, mas, a partir do momento em que a História deixa de ser uma disciplina obrigatória, nomeadamente, a partir do 10º e do 11º ano, encontramos pouca presença de história nacional no âmbito do plano de estudo dos alunos. Segundo o questionário que apliquei, 76 % dos alunos afirmou que os assuntos que mais estudaram ao longo da sua trajetória educativa, ou seja, desde o 1º até ao 12º ano, tiveram que ver com a descoberta e com a colonização. Apenas 27 % dos alunos me disse que estudaram a luta e a libertação nacional. Relativamente aos conteúdos sobre a primeira República em Cabo-Verde, apenas 13 % me disse que aprendeu sobre isso. Já no que diz respeito à instauração da Democracia, apenas 6 % dos alunos afirmou ter estudado esta questão. Portanto, como estava a dizer, isto tem que ver com a própria estruturação do plano curricular e com a forma como a disciplina de História foi mapeada. Agora, tivemos algumas melhorias, ainda que não tenham sido na linha daquilo que muitas vozes críticas, e até eu enquanto professor, gostaríamos. Mas as melhorias são evidentes. Já temos algumas disciplinas que trabalham todas essas questões.
Gostava só de salientar que os inquéritos foram aplicados na ilha de Santiago, mais concretamente em Santa Catarina, e na Ilha de São Vicente. Santa Catarina é um conselho maioritariamente rural, sendo as suas raízes históricas e culturais, segundo vários historiadores, ligadas a uma matriz mais africana. Isto é, todo o processo de povoamento, escravatura, etecetera. Em contrapartida, o povoamento em São Vicente foi muito mais tarde, logo, posiciona-se como uma ilha muito mais urbana, mais mestiça. Com isto, notamos que existem diferentes opiniões sobre aquilo que os alunos percebem sobre a Europa e os europeus. Aliás, uma grande quantidade dos alunos de Santa Catarina sonha em emigrar para o continente Europeu! Sobretudo, uma emigração para ficar. Enquanto que os alunos de São Vicente querem sair, mas para estudar e não necessariamente para a Europa. São estas nuances que nos apelam a redesenhar os projetos e tentar recolher mais informações para percebermos esta dinâmica.


fotografia real que representa uma criança cabo-verdiana é a da capa do manual de
Ciências Integradas do 2º Ano
Acha que isto acontece devido ao facto de os manuais não serem elaborados por pessoas africanas?
Não sei. Nos últimos tempos, os manuais têm vindo a melhorar. Muito. Esse é um ponto de partida que temos de deixar bem claro. Posso até dizer que temos tido uma participação muito significativa de autores cabo-verdianos na elaboração dos manuais. Sendo assim, a questão torna-se ainda mais complexa, porque aí já temos de analisar as próprias representações dos autores. Se eu quiser falar da colonização, eu, enquanto autor africano, deveria, teoricamente, também lembrar-me de falar da resistência africana aquando desse fenómeno histórico. É importante falar da resistência africana e de todos os movimentos de resistência, mas essa parte não tem quase expressão [no sistema educativo cabo-verdiano atual]. De há uns anos para cá, já começámos a abordar as revoltas sociais campesinas que ocorreram em Cabo-Verde no século XIX, por exemplo. Essas questões já começam a ganhar um espaço bastante positivo nos manuais. Mas depois, quando chegamos a essa matéria, deparamo-nos com outro problema: recursos. São assuntos, do ponto de vista da investigação histórica, que não têm merecido um destaque por parte dos historiadores.
Comparativamente ao sistema educativo português, que diferenças destaca nas representações do continente europeu?
Por acaso tenho conversado bastante com os meus colegas de Portugal e eles têm as mesmas preocupações que eu, mas, neste caso, em Portugal. Existe, praticamente, uma ausência da história colonial, falando concretamente da ausência de informações históricas sobre a Guerra Colonial, por exemplo. Sobre os grandes líderes que estiveram na frente dos movimentos de luta pela libertação nacional. Estamos a falar de uma potência ex-colonizadora [Portugal] e de um território ex-colónia [Cabo-Verde], mas, do ponto de vista do mapeamento, as suas histórias estão muito próximas. A parte portuguesa realça a colonização na lógica que nós conhecemos, não é verdade? Aqui, em Cabo-Verde, realçam sobretudo a parte da colonização e menos a parte da história pós-colonial. Os dois contextos geográficos, de certo modo, acabam por enfrentar os mesmos problemas relativamente ao ensino de uma história já com outras vozes, com outras narrativas. Como é que dois Estados ainda não incluem nas suas dinâmicas educativas, no caso de Portugal, a sua história pós 25 de abril, e no caso de Cabo-Verde, a sua história pós-independência passados quase 50 anos?


O professor é da opinião de que se o sistema educativo cabo-verdiano se mantiver assim, a antiga colónia permanecerá sempre sob o “domínio” da Europa?
Existem vários estudos que abordam esta questão dessa perspetiva do imperialismo cultural. Achille Mbembe [filósofo camaronês] fala muito desta questão do desmantelamento das heranças coloniais e mostra que esse desmantelamento não é um processo fácil, porque, na verdade, do ponto de vista histórico, 50 anos não é um período de mudanças profundas. Aqui em Cabo-Verde temos sistemas educativos que são réplicas das mudanças e das transformações que acontecem em Portugal. Disso não há dúvidas. Consulta a Lei de Agrupamento [de Escolas] de Portugal e compare com a Lei de Agrupamento de Cabo-Verde. Vai ver que, inclusive, até as vírgulas estão no mesmo lugar. Porquê? Porque temos processos de reforma e de revisões que são levados a cabo por financiamentos externos e existe todo um processo das consultorias externas. Supostamente, logo após a independência [das ex-colónias] deveria haver uma rutura profunda com o sistema educativo colonial. A nossa ingenuidade, ou o nosso bom-senso, poderia conduzir a este pensamento. Mas isso não aconteceu por várias razões. E não foi só em Cabo-Verde, foi em vários países africanos. Uma dessas razões foi o facto de “dar muito trabalho” fazer uma reforma educativa de fundo. Claro que também se relaciona com as questões económicas. Fazer uma reforma educativa de fundo requer, obviamente, recursos financeiros de fundo. Mas não podemos ser ingénuos. Existem vários estudos que mostram que as elites que tomaram o poder depois da independência sentiram que era de muita utilidade manter o sistema educativo com a matriz colonial, de forma a impedir o alargamento da base de transformação cultural e, por conseguinte, diminuição de possíveis ameaças aos centros de poder.
A últimas reformas e revisões do sistema educativo cabo-verdiano foram justificadas pela “modernização” e pelo “desenvolvimento”. Que reformas foram essas?
Se eu te lesse agora um trecho de um documento estruturante da reforma educativa de 1990, mas sem te dizer a data, ias considerar que esse trecho é atual. Porque ao nível das ambições e dos propósitos, não houve muita inovação. Os discursos narrativos são praticamente iguais. Temos de reconhecer que ganhos importantes foram conseguidos, mas agora que estamos numa fase de desenvolvimento em que toda a questão educativa é colocada num patamar de grande qualidade, então percebemos que nos últimos 40 anos não houve grandes mudanças. Tem havido subsequentes medidas tomadas, às vezes repetitivas, para dar sequência àquilo que acontece lá fora. Se Portugal cria agrupamentos, nós também criamos agrupamentos. Se amanhã Portugal criar uma outra coisa parecida, continuamos nesta lógica [risos]. Atenção, estou a falar de um ponto de vista muito pessoal, por aquilo que tenho lido e observado dos trabalhos que são feitos.




Portanto, diria que o eurocentrismo ainda está muito presente nos programas educativos e nos manuais em Cabo-Verde?
Sim, há essa tendência. Mas com muitas melhorias. Temos de construir um manual que tenha esta missão mais cosmopolita e que dê mais importância à História.
E para além desse, quais são os seus outros objetivos com a realização deste estudo?
Uma das minhas primeiras preocupações é compreender este processo. Quero perceber melhor como é que nós mobilizamos umas informações e as introduzimos no manual, e não mobilizamos outras. Isso tem que ver com a própria gestão do processo dos poderes que decidem isso. O meu interesse, do ponto de vista académico e científico, é compreender este processo e tentar ajudar os meus colegas e alunos a desconstruir tudo isto. Como eu gosto de trabalhar com evidências, ir ao terreno, queria saber se é possível trazer subsídios para quem toma estas decisões. Não tem que ver com as questões da identidade ou com a história da cultura. Tem que ver com esta minha preocupação de que as questões da nossa história sejam introduzidas no nosso programa educativo de uma forma mais pluridimensional.
Considera que a forma como a própria história de Cabo-Verde é representada nos manuais escolares também deve ter melhorias?
Eu acho que sim! Nós temos uma disciplina que se chama “Cultura Cabo-Verdiana” e que permite aos alunos terem conhecimento da matriz africana. Mas é sempre possível melhorar com outras fontes, com outras abordagens. Também há outra coisa interessante que se relaciona com os movimentos sociais que estão a surgir nesta dimensão, aqui em Santiago e não só. Temos grupos que surgiram para reivindicar uma maior presença da identidade africana no sistema educativo. Portanto, eu sou da opinião de que isto terá uma melhoria constante ao nível de recursos, ao nível dos manuais, ao nível da formação dos professores, ao nível das novas propostas de análise.


Tendo em conta todas essas mudanças no sistema educativo cabo-verdiano, diria que o mesmo se tem aproximado cada vez mais do modelo de ensino português?
Do ponto de vista político, o que se tem dito é que nós estamos a tentar aproximar o nosso sistema educativo dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico]. Há um compromisso político do próprio governo em nos aproximar cada vez mais desses países, porque isso significa muita coisa ao nível da formação dos docentes e ao nível de melhoria da qualidade de aprendizagem, que é a grande missão da OCDE. Eu acho justo, acho que é uma boa ambição, mas temos de ter em conta as nossas dinâmicas internas e perceber como é que conseguimos chegar lá.
Na sua opinião, como é que se devem abordar as temáticas que evidenciam os factos históricos relevantes para a história de Cabo-Verde e inovar essas mesmas temáticas nos diferentes níveis de ensino?
Bom, na minha perspetiva, devemos começar por elaborar planos de estudo que permitam isso. Planos que contemplem conteúdos já com uma diversidade maior e que não se concentrem apenas, por exemplo, num contexto geográfico. Devemos dar aos candidatos da escola de formação de professores a oportunidade de compreenderem toda esta complexidade do processo histórico da formação de Cabo-Verde enquanto sociedade e enquanto cultura. Temos de trabalhar também na produção dos materiais de apoio do próprio Estado e criar condições para isso. Mas o fator chave é a formação dos professores, porque isso é um ponto considerado fundamental para qualquer sistema educativo.
Sempre que possível, o professor tenta abordar as questões do continente africano mesmo tendo um programa curricular a cumprir e sendo esse muito vocacionado para a Europa?
Sim, sempre que possível. Claro que sim. Mas isso depende muito da formação do professor. Nós notamos uma carência evidente de conhecimento da história de África em Cabo-Verde. Portanto, eu não posso pedir a um estagiário que está a dar uma aula sobre a idade média para fazer uma correlação entre a idade média europeia e os contornos da África ocidental no mesmo período. Ele não teve preparação para isso. Tudo começa na formação dos docentes e também na preparação dos formadores dos docentes [risos].
E se as mudanças que ambiciona não chegarem a acontecer? Quais serão os perigos para as futuras construções históricas e sociais relativamente a Cabo-Verde e à Europa?
A perpetuação dessas representações. Temos alunos no terceiro ano da universidade que deixam o curso e vão para a Europa, porque têm essas construções de que a vida lá é melhor. Não vejo perigo relativamente à união entre Cabo-Verde e a Europa, o perigo está na perpetuação dessas ideias. Cheguei a considerar fazer este estudo com outras colónias europeias, francesas, inglesas e portuguesas para ter uma lógica de comparação. Porque eu tenho a certeza que a própria Europa não está interessada em passar esta imagem também. Eu vejo o que é que a Europa pretende passar enquanto imagem externa, enquanto soft power [poder subtil] como costumam dizer. Por isso, dessa perspetiva, o perigo centra-se mais no silenciamento histórico, na não abordagem de elementos históricos fundamentais para nos conhecermos cada vez melhor. É necessário um resgate de memórias e, no caso de Cabo-Verde, resgate de memórias africanas. Mas isso é fundamental para qualquer afirmação cultural.