A exploração que tem sido feita dos recursos florestais tem girado em torno da indústria papeleira, da cortiça. Por que razão os materiais não lenhosos, os recursos silvícolas, ainda não têm um patamar mais importante na indústria florestal?
Em Portugal temos situações muito diferentes. A indústria papeleira claramente tem [um patamar importante], não há dúvida. A cortiça tem todo um valor, mas está altamente ameaçada porque, nas zonas delimitadas como zonas de sobreirais, esses sobreirais não foram sendo plantados, o que põe em causa a sustentabilidade de uma indústria da qual somos pioneiros e dos maiores produtores. O sistema que fomos fazendo, de montado, supostamente tão interessante, se pensarmos bem, ecologicamente e até em termos de sustentabilidade financeira da cortiça, não é nada sustentável, porque não estamos a replantar as árvores. Aquelas árvores tinham uma coisa boa - duravam mais de uma centena de anos, portanto durante um tempo isso alimentou a indústria, mas se não são replantadas, o que vai acontecer a essa indústria? O problema é que, mesmo quando são plantadas na sua zona original, vemos que vão deixar de estar adaptados aos cenários climáticos. Então põe-se muita coisa em causa, nomeadamente se deveriam estar a ser regadas. Há muitas pessoas que se opõem, e eu acho que com alguma legitimidade, porque precisamos de água para produzir comida, e vamos usar água para regar árvores? Por outro lado, se usássemos, o ecossistema não ficaria mais resiliente e depois não poderíamos produzir mais comida?
Além disso, há outros recursos silvícolas associados, com imenso valor, que se vão perdendo, e na verdade nós nunca conseguimos criar muito valor a partir deles. É o caso dos cogumelos, das plantas aromáticas e medicinais e de outros frutos silvestres, por exemplo o medronho. É curioso que na região onde temos mais produção de frutos silvestres, que estão a causar problemas enormes - e apesar de não estarmos na mesma situação, vemos tudo o que está a acontecer com Espanha e a utilização indevida da água para alimentar o norte da Europa com a maior parte da produção de frutos vermelhos - temos um fruto como o medronho na nossa floresta natural e não o comemos, não o aproveitamos.
E não o fazemos porquê?
Já foi feito algum trabalho de tentativa mas com imensa dificuldade. Porque é que nós produzimos frutos que requerem muito mais recursos, por não estarem tão adaptados, nomeadamente em termos de quantidade de água, e não produzimos outros que temos na nossa floresta? Há uma desvalorização do que pode ser a floresta e o seu aproveitamento, até porque a floresta consegue recuperar, regenerar solos e água, e essa componente é muito importante. Poderíamos recuperar muita dessa floresta, num sentido não simplesmente de conservação, mas de regeneração pelo uso, de compreender como podemos melhorar um ecossistema florestal e tirar não só produtividade mas usá-lo para produzir agricultura e produtos agrícolas, ou seja, um sistema agroflorestal em que a agricultura imita a floresta, que é um conceito muito interessante e que permite produzir comida, recuperar ecossistemas, melhorar solo e, como nós dizemos, “plantar água”, também.
Quais são os instrumentos de que a agricultura, particularmente a sul do Tejo, onde a seca é estrutural, dispõe para fazer face a esta situação de seca?
A sul do Tejo temos situações muito díspares, porque temos zonas com imensa água - temos o maior lago artificial da Europa [Alqueva], e se o temos, temos de o aproveitar. Deveria haver um planeamento muito bom. Não ponho em causa que haja planeamento, mas devia ter sido feito muito atempadamente, porque agora já vai um pouco tarde. Esse planeamento deveria prever a melhor forma de aproveitarmos essa água tendo em conta o tipo de solos que temos, o clima que temos e a disponibilidade de água de que vamos precisar no futuro para a mesma região, inclusive até para consumo humano. Na zona que não recebe a água do regadio, temos inclusive populações que têm de ser abastecidas de água durante o verão para as suas atividades diárias, não para a agricultura. Não têm água na torneira, portanto a situação é muito grave. Eu acho que neste momento não podemos ser esquisitos, todas as soluções devem estar em cima da mesa. Barragens: como, quando, de que forma e para quê? As reservas estratégicas de água são essenciais, não as vamos pôr de parte. Temos é de pensar muito bem como vamos usar essa água porque é suposto ser mesmo isso: reservas de água estratégicas. Dessalinização: pense-se na dessalinização pensando exatamente em todos os impactos negativos, todo o custo energético, mas pense-se, discuta-se. Temos de pensar como vamos regenerar os solos, e como podemos desenhar paisagens de retenção de água. O custo/benefício de fazer chegar a água a todo o território do sul de Portugal, que vai sofrer, e está a sofrer com a seca constantemente, é enorme. Então que outras estratégias, até mais suaves, podem ser aplicadas? Se essas estratégias estiverem a ser aplicadas, podemos descobrir que afinal o problema pode não ser assim tão mau. Podemos não precisar de tanta água ou de fazer um investimento tão grande, ou vamos fazê-lo como reserva estratégica porque não queremos correr o risco de não ter água para as nossas necessidades diárias.
Na produção animal, a sul do Tejo, nas zonas que não têm possibilidade de regadio, compra-se as rações fora durante metade do ano. Qual é o racional disto? Dizemos que aquilo só dá para a pecuária, mas como assim, se estamos a comprar o que os animais comem? Não há ano nenhum em que, em junho/julho, não tenhamos os agricultores de Mértola, de Ourique, de Castro Verde, na televisão a pedir medidas excecionais. Como é que é uma medida excecional se é todos os anos? Agora vamos pedir uma medida excecional, e o que fazemos o resto do ano? O mesmo, não mudamos nada. A diferença é que antes era em junho/julho, e este ano, em abril, já estávamos em situação de seca extrema. Depois vem o apoio e continuamos a fazer tudo igual. Isto tem de ser questionado. Podemos fazer agricultura de uma forma diferente, que consiga fazer mais retenção de água nos solos, e isso precisa de ser aprendido. Isto não significa importar modelos, não há soluções chave na mão, mas temos de ir aprender, temos de ir ver como é possível ser feita agricultura nestes territórios, ou então repensar o que é o futuro destes territórios, ou eventualmente transformá-los em floresta. Eu acredito que é possível conciliar as duas coisas. Podemos ter sistemas agroflorestais bem mais interessantes do que os que temos neste momento, que são extremamente simplificados e não estão a contribuir assim tanto para a regeneração do ecossistema. Podemos ter outros sistemas agroflorestais, mas precisamos de ter coragem de os testar. Quando é que os vamos testar? Quando já não for possível a vida humana nem animal nem das plantas, quando for um deserto? É tarde demais. Se os cenários climáticos nos dizem que a azinheira ou o sobreiro não vão estar adaptados em determinado sítio, então também nos diz que há plantas mais a sul que agora já estão adaptadas. Por que não as estamos a experimentar? De forma controlada, não estou a defender que importemos as plantas todas de outro sítio. O mês passado estava no Schumacher College, em Inglaterra [universidade com cursos na área da ecologia], onde se discutia o problema da seca e das espécies hortícolas mais adaptadas à seca. Aquilo estava tudo verde, cheio de água, mas eles sabem que não vão sofrer agora, vão sofrer daqui a 30 anos, por isso querem testar agora. Nós já estamos a ter o problema e não estamos a pensar na solução, nem a testar a solução. Queremos soluções infraestruturais de grande peso que achamos que vão responder, mas durante quanto tempo? Até não haver água outra vez. Se não mudarmos nada e só quisermos uma grande infraestrutura, daqui a uns anos essa água também não vai chegar, e depois ou nos tornamos todos refugiados climáticos ou não sei.
A prática da agricultura intensiva e superintensiva também se tem disseminado, com argumentos muito díspares: há quem aponte a vantagem da eficiência no uso da água e outros recursos, mas depois coloca-se a questão da monocultura. Já temos dados suficientes para avaliar devidamente os riscos e benefícios?
Há dados a favor e contra tudo, depende de quem faz o estudo e do seu interesse. Nós temos de ser mais eficientes a produzir comida. Podemos discutir é o que significa essa eficiência. Eu não tenho nada contra o superintensivo na quantidade de plantas que coloca no terreno, aliás o meu marido é agricultor de agricultura sintrópica, o que quer dizer que é um agricultor superintensivo. Não há, de certeza, nenhum olival superintensivo com maior número de plantas por hectare do que ele tem. A diferença é que não é uma planta, são 50 ou mais variedades de árvores, arbustos e herbáceas no mesmo sítio. Acho que a questão do superintensivo tem a ver com a forma como podemos transformar sistemas altamente eficientes, mas que cumpram as funções do ecossistema. Podemos criar biodiversidade mesmo em sistemas superintensivos. Podemos ter bordaduras com várias árvores, árvores e plantas importantes para os polinizadores, podemos ter pequenas ilhas de biodiversidade no meio para quebrar. Acho que teria sido muito interessante que se tivesse estabelecido limites não à área total, mas à área contínua de cada monocultura, e criar diversidade dentro da paisagem. Não haveria problema nenhum em ter um olival superintensivo numa área, com um bocado de eucaliptal noutra, e depois uma área muito biodiversa, e depois uma pastagem. A importância de criar mosaicos é muito grande. Acho que muitas vezes a questão não passa por proibir determinada cultura, seja o abacate, o olival ou os frutos vermelhos, mas sim a extensão que se ocupa a consumir recursos de determinada forma, que podem causar um impacto brutal. O olival superintensivo pode ser muito mais eficiente em termos de consumo de água, mas se eu tiver milhões de hectares, vai dar ao mesmo. No caso destas culturas regadas, o olival e a amêndoa são efetivamente das culturas mais adaptadas à seca. Se temos de pensar em escolher, não acho que essas sejam más escolhas. Agora, depende da extensão e da forma como fazemos uma agroindústria que consome imensos recursos e pode causar grandes impactos na paisagem, que é também um aspeto a pensar. Qual é o horizonte de exploração destas culturas e o que vão deixar lá, ou o que não vão deixar? Há que pensar em tudo o que foi retirado, e como isso pode ser recuperado. Para mim, são essas as preocupações, e não tanto as discussões sobre se o superintensivo é mau ou não é, se esta cultura é má ou não é. Acho que podemos fazer todas as culturas se as fizermos bem, se formos equilibrados, se tivermos um mosaico. Dentro dos limites do solo e do clima que temos, podemos fazer tudo o que seja adequado a esse solo e a esse clima.
A questão da exploração dos imigrantes que trabalham na agricultura no Alentejo saltou para a esfera mediática. Existem formas de combater estas práticas?
Eu acho que Mértola tem um dos melhores exemplos de integração de migrantes, com a Associação Terra Sintrópica, que é o programa Terra de Abrigo, elaborado em conjunto com a Permaculture for Refugees. A Associação de Empresários do Vale do Guadiana está a pensar na forma de o aplicar para resolver um dos maiores problemas que temos nas regiões do interior. É preciso mão de obra, e tal como nós fomos para outros lugares, é normal virem pessoas. Mas curiosamente, um dos nossos maiores problemas também é a falta de pessoas, portanto a coisa supostamente cruzaria muito bem. Põe-se em cima da mesa como recebemos estas pessoas e o que é que queremos ser, e acho que uma sociedade se define muito na forma como recebe e trata os outros. Por isso surgiu o projeto Terra de Abrigo, que veio de um programa anterior a que chamávamos Bolsa de Terras, já para acolher pessoas que pudessem vir de outros locais. Quisemos mostrar que é possível acolher e integrar no mercado de trabalho pessoas que vêm de outros locais, mas pensá-lo antes. Antes de as pessoas virem, em Mértola toda a gente já sabia quem eram, os seus nomes, o que faziam, a sua profissão, porque vinham, os problemas por que tinham passado e por que estavam a chegar. Isso foi importantíssimo. É certo que não era um grupo grande, mas nós temos 4,8 habitantes por quilómetro quadrado, portanto mesmo oito pessoas na vila causam impacto. Toda a gente sabia já quem eram, foi articulado com a comunidade local. Estas pessoas tiveram um programa de capacitação, ao mesmo tempo que tinham aulas de português e várias ações de integração e voluntariado com a comunidade local. Participaram no projeto Jardins Terapêuticos, a desenhar jardins nas aldeias junto com a população, ajudavam noutras ações, em festivais, eventos locais, etc. Foram sempre sendo integradas, e passado um ano de trabalho nessa integração, agora estão a ver onde podem ajudar. Temos algumas pessoas a trabalhar em restaurantes, temos uma das pessoas integrada no nosso próprio projeto, a trabalhar na cozinha, duas pessoas a trabalhar em Beja, como auxiliares de agricultura, e uma pessoa a trabalhar na construção civil. Todos eles, de uma forma muito natural, foram integrados, e não temos ali aquela pessoa “estranha”, ou “mais escurinha”. Toda a gente sabe que é o Ali, toda a gente sabe que é a Norina. São pessoas da comunidade. O Festival Islâmico [de Mértola] deste ano acabou da forma mais bonita possível, porque no final, assim que surgiram os músicos do norte de África, um bebé de um ano e meio, que faz parte deste grupo, saiu de ao pé da mãe e foi a correr dançar como se aquilo lhe dissesse alguma coisa. Ele não pode ter memória disso porque ele saiu de lá com oito meses, mas assim que ouviu a música que lhe dizia alguma coisa foi a correr dançar, e as pessoas de Mértola levantaram-se todas para o aplaudir de pé. Isto é um grande orgulho da nossa comunidade e é integração, é uma mais-valia enorme para o interior. Gostávamos imenso de replicar este projeto de uma forma um pouco maior porque dentro da Associação de Empresários, o maior problema que todos identificam é a falta de mão de obra. Há tantas pessoas a precisar de ter um lugar de paz, e Portugal é um país seguro, por isso estas comunidades do interior podem ser lugares seguros para estas pessoas, se as soubermos acolher.