Não é que já não o tenha feito antes, e é por isso mesmo que tinha esse desejo adormecido de cortar o cabelo, ouvir o som da máquina, e ver as pequenas mechas fofinhas e escuras a caírem no chão.
Cortar o cabelo para mim é um momento de libertação, de uma sensação inexplicável que alcança uma liberdade há muito desejada.
Nós, mulheres negras, somos sempre vistas como sendo muito masculinas. Especialmente sendo as características de feminilidade sempre associadas à imagem da mulher branca. Mesmo mulheres negras que se esforçam diariamente para mostrarem a sua feminilidade são capturadas pelo sexismo e pelo racismo doentio que circulam os nossos corpos e por consequência os nossos cabelos.
Sendo eu uma amante da minha própria masculinidade, cortar o cabelo para mim é algo tão natural como respirar.
Torna-se verdadeiramente bonito quando o corto e me relembro a mim mesma daquilo que é a minha essência esquecendo a pressão constante que recai sobre todos os corpos negros.
É um corte direto com os guiões estruturados que foram criados a pensar no homem branco e que se opõe à mulher negra.
É um corte direto com aquilo que gostariam que eu fosse e um apreciar indireto daquilo que eu gostaria de ser.
É um corte profundo com a natureza violenta, colonialista e patriarcal da sociedade em que vivo.
Mas mais do que um corte, é um ato de carinho para comigo, para com a minha beleza e para com a minha auto-estima. É um esmagar das caixas em que me tentam colocar e é um grito de liberdade.
Considero cortar o cabelo um ato terapêutico de limpeza de todos os males que sufocam as nossas vidas.
É redescobrir quem verdadeiramente somos, é deixar cair todo o tipo de máscaras, é sermos forçados a olhar para o espelho sem filtros.
Nunca vi nada mais natural, nem autêntico que uma mulher negra de cabelo curto, e ali nesse espaço de tempo específico, encontra-se toda a nossa beleza, toda a nossa força, todo o nosso poder. Voltamos a como viemos ao mundo. Voltamos ao início de como o mundo começou.
Vão falar? Vão. Vão odiar? Vão.
Mas no final do dia, a falta de respeito que me têm mantém-se e o que muda é a subtileza com que a fazem.
De cabelo curto ou comprido eu, como pessoa negra, não encaixo nessa sociedade. Então, hoje eu escolho o cabelo curto. Escolho amar-me aos olhos do ódio dos que me rodeiam.
-Sobre Mafalda Fernandes-
Nascida e criada no Porto, filha de pais brancos e irmã de mulheres negras. Formada em Psicologia Social, o estudo e pensamento sobre problemas sociais relacionados ao racismo, são a sua maior paixão. Criou o @quotidianodeumanegra, página de Instagram onde expressa as suas inquietudes. Usa o ecoturismo como forma de criar consciência anti-racista na sociedade. Fã de Legos, livros e amizades, vive pela honestidade e pelo conhecimento.