Nos anos 90, não consigo precisar exatamente quando, o Leite Matinal corporizava, num anúncio publicitário, um sentimento generalizado na altura das sociedades ocidentais: primeiro tenho de me focar em mim. A assinatura “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” preenchia na perfeição um novo espaço de hedonismo dominante criado na ressaca liberal dos anos 80, com Thatcher e Reagan.
É óbvio que a ideia de celebração do individuo já existe há muito tempo. Basta pensar que a história sempre deu um grande destaque às narrativas personalizadas, desde Jesus, passando por Napoleão até ao Churchill. E também lembrar que a sociedade se entretém a premiar pessoas de várias formas, quer seja na reserva de um lugar num qualquer panteão, quer na avaliação subjetiva do trabalho científico, como os Prémios Nobel.
Mas foi na intersecção dos séculos XX e XXI que a desvalorização do pensamento colectivo e a centralidade atomizada mais se desenvolveu. Algumas organizações passaram a perder influência, como os sindicatos, o associativismo e as entidades de base mutualista. O individuo passou a ser mais relevante, talvez mais no papel de consumidor do que de cidadão.
O colectivo, hoje, é muitas vezes visto como a soma das felicidades individuais. A cada um de nós basta-nos o papel de lutar, de todas as maneiras possíveis, pela nossa própria felicidade. A aritmética básica encarregar-se-á de garantir sociedades felizes.
No entanto, na verdade, somos produtos de contextos comunitários. Ninguém consegue procurar a sua felicidade, a sua notoriedade, a sua influência, desligado das pessoas e estruturas que o rodeiam.
Há, primeiro, um conjunto de hiper-colectivos dos quais beneficiamos sem notar muito neles. Talvez o mais importante é todo o conhecimento que os humanos já acumularam desde a sua existência e que nos permite ter acesso a tecnologia diferente daquela que os nossos primos da idade média disponham. E há muito outros hiper-colectivos que estão sempre presentes nas nossas vidas, mas que os assumimos como garantia: desde uma ordem política organizada, à gestão das regras de trânsito ou simplesmente a um sistema de esgotos.
Depois existem colectivos que continuam a ser fundamentais na nossa vida, sem os quais seria impossível o individuo, per si, sobreviver e evoluir. Como seria se não tivéssemos escolas, hospitais, teatros, museus? Estamos dependentes dos colectivos para podermos florescer individualmente.
Mas se podemos olhar o final do século passado como o primeiro grande momento desta centralidade egocêntrica, uma segunda revolução surge com a criação das redes sociais. Essa invenção trouxe uma horizontalidade agressiva entre a opinião de um leigo e de um especialista, de uma entidade referência e de um perfil falso.
Hoje estamos assim, portanto. Celebra-se a individualidade, menospreza-se o colectivo. Como poderemos resolver os problemas mundiais se apenas agirmos em nome pessoal? Haverá, algum dia, capacidade de fazer um combate efectivo às alterações climáticas? Seremos capazes, alguma vez, de encontrar uma estratégia para diminuir a força dos partidos de extrema-direita? Encontraremos um sistema para derrotar a desigualdade que persiste?
Se eu só gostar de mim, quem beneficiará?
-Sobre Tiago Sigorelho-
Esteve ligado durante 15 anos ao setor das telecomunicações, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca do Grupo PT, com responsabilidades das marcas nacionais e internacionais e da investigação e estudos de mercado. Em 2014 criou o Gerador e tem sido o presidente da direção desde a sua fundação. Tem continuamente criado novas iniciativas relevantes para aproximar as pessoas à cultura, arte, jornalismo e educação, como a Revista Gerador, o Trampolim Gerador, o Barómetro da Cultura, o Festival Descobre o Teu Interior, a Ignição Gerador ou o Festival Cidades Resilientes. Nos últimos 10 anos tem sido convidado regularmente para ensinar num conjunto de escolas e universidades do país e já publicou mais de 50 textos na sua coluna quinzenal no site Gerador, abordando os principais temas relacionados com o progresso da sociedade.