Margarida era uma pessoa como as outras. Lembrava-se muitas vezes de quando comprava o peixe na praça todas as quartas, quando deixava os netos que cresceriam na escola até a apanha próxima. Dizias sempre: “os pequenos, devolve-os ao mar, que mais tarde voltam grandes”. Não voltaram. Fechada no lar, onde há uns anos o teu marido morreu num acidente de natureza incerta - que algo há de mais incerto que a incerteza da morte -, mergulhas os olhos nas paisagens, em filmes antigos, notícias que reportam a ausência em todas as artérias eléctricas coaguladas do tempo.
Vivia na Rua Ponta Delgada onde gatos trepavam do pátio até à varanda, miando no espelho. A casa, por essa altura, andava sempre ocupada. A Teresa deixava-os sempre entrar. Viveram juntas durante muitos anos, as duas. Passeávamos entre os móveis, entre a doença, os piões de pão, tão já duros como brinquedos da nossa fome. O interior existia quase a preto e branco, mudo, a tela queimava entre os olhos, a lâmpada em esforço sobre a persiana baixa, o sofá antigo ajeitando-se às ondas do corpo, ileso do contacto. E o enorme estômago preparava o tempo, “Queres uma xícara de café? Açúcar?”, tia, ainda não, não é certo pensei, enquanto, ao lado, servia o meu silêncio a outro convidado, e a outro, e a outro.
A programação da tarde parecia-me, neste quarto, sempre muito rica, apesar de, com desgosto meu, não me lembrar já de nada. Só de um gesto perdido; umas horas aqui, um almoço ali. Em particular, de um chinês (assim chamávamos com o artigo errado, pois tratava-se do único a que íamos) na Praça do Chile, com dois leões à entrada, um buda muito contente, maior que eu, a um canto, nos pratos galinha com amêndoas e pato à Pequim, com a carne enrolada. O jogo da forca na borda da mesa como um prisioneiro que se prova inocente enumerando os anos até à sua chegada.
Soube nesse dia da sua doença crónica. Há uma beleza maligna em picar o ponto num horário definido. Tudo isso era a morte, mas temos agora a vida. Os panos, aveludados com o pêlo, assobiavam do vento uma canção. Ao lado da minha escola de infância, o funeral. Anos e anos a fio. Familiares harmonizavam lamentos quietos, formais. Tudo despoletava de um silêncio comum que, entre o rumor das camas e das janelas que latejam, atravessava a penumbra como um segredo ingrato. E lá estava o carro - solene, de mármore, largo com as dúvidas do mundo, estacionado a um canto do pátio.
Agora as paredes de madeira, um cartaz no centro das portadas de um festival de aldeia. Pensas, nesse teu outro lado, como os anos passam e a dor passa, entre malas, casamentos, entre os pequenos momentos que nos separam. E unem. Partimos de viajem num carro branco, para fora da cidade. As férias, as veias subterrâneas, eram raízes sob as lajes, sorvendo o último frio dos sacos de sangue. Agora, quando te olho, assim encovada, recolhida, maquilhada dos anos como com um véu de teatro, lembras-te? Quando te sobreviveste e me deixaste assim, do outro lado, ligado à corrente, sem memória, sem passado nem presente?
Um cone de gelado escorre, uma grande poça pegajosa sustenta os insectos do nosso esquecimento.
Olhas para mim: tão pouco te reconheces, pesada, suculenta, tolhida até à espinha numa noite de festival.