O palco é invadido por músicos vestidos de negro que, em breve, migrarão num voo musical. A música tem início com uma pincelada sombria e dramática. A violinista, de vestido de veludo preto, inicia um solo, numa voz que se destaca das outras e as conduz. A palete migra para tons esperança quando os violinos a ela se juntam, novamente. Por momentos, o ritmo e a dinâmica aumentam. A trama muda. O conflito em passo acelerado de notas exaltadas e fugitivas contrasta com o chavão que ressoa nos violoncelos e inquieta os corações. Os violinos parecem negar o avanço dos violoncelos, intensificando a sua luta. Ambos assumem uma posição firme, mas a constância do violino solista destaca-se, não se deixando tingir pelas exaltações vizinhas. A cegueira, os Direitos Humanos, a personagem que foi mestre e o autor seu aprendiz, o homem mais sábio que não sabia ler, a arte de não esquecer, os sons do cravo de Domenico Scarlatti que não sabe se deve rir ou chorar, os grandes mestres que nos inspiram, a história e as várias formas de a contar, o amor e os poucos que são tudo. Esses e outros temas flutuavam nos balões de pensamento embalados pela música orquestral de Memorial a José Saramago, que invadiu o Grande Auditório da Culturgest no passado dia 15 de dezembro.
A voz que quis ser o eco das vozes conjuntas das suas personagens, José Saramago em Discursos de Estocolmo (1998)
José Saramago, nascido em 1922 na aldeia de Azinhaga “numa família de camponeses sem terra”, foi viver com os pais para Lisboa ainda ele não tinha dois anos. Após fazer estudos liceais e técnicos, teve o seu primeiro emprego como serralheiro mecânico. A essa atividade, seguiram-se trabalhos como desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor e jornalista. O seu primeiro livro, publicado em 1947, foi o romance que Saramago intitulou como A Viúva, mas que, por conveniências editoriais, foi publicado com o nome de Terra do Pecado. Ainda nessa altura escreveu o romance Claraboia – publicado postumamente em 2011 - e começou outro que chamar-se-ia O Mel e o Fel ou Luís, filho de Tadeu. No entanto, esse foi um projeto que abandonou, pois, segundo o próprio, “começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que valesse a pena”. Só voltou a publicar em 1966.
Entre 1972 e 1973, trabalhou no jornal Diário de Lisboa e, em 1975, foi diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias. Foi em novembro do mesmo ano que perdeu o seu trabalho neste jornal, incidente que o levou a tomar a grande decisão da sua vida: sentar-se a escrever. Foi para Lavre – uma povoação rural da província do Alentejo – e começou a trabalhar no romance em que viria a descobrir a sua voz como escritor – Levantado do Chão (1980). A partir daí, vários foram os livros com que nos presenteou e que o levaram a vencer, em 1998, o Prémio Nobel de Literatura – o primeiro e, até agora, único Prémio Nobel de Literatura atribuído a um português.
“Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado”, José Saramago em discurso pronunciado no Banquete do Prémio Nobel (10 de dezembro de 1998)
Passados vinte anos da atribuição do Prémio Nobel, a Fundação José Saramago organizou ou coorganizou uma série de iniciativas que visavam celebrar o prémio e o escritor que o recebeu. Sérgio Machado Letria, diretor da Fundação José Saramago, explica, em entrevista ao Gerador, que “as ideias principais para o programa de celebração dos 20 anos do Prémio Nobel foram as de tocar vários pontos da obra de José Saramago, desde a sua obra literária até à sua intervenção enquanto cidadão preocupado e interventivo que sempre foi, dedicando, por exemplo, várias das suas intervenções à Declaração Universal de Direitos Humanos. Foi também preocupação da Fundação que esta comemoração contasse com a participação de outras entidades, públicas ou privadas, dando corpo à ideia de abertura e de trabalho em parceria que sempre norteou o nosso funcionamento.”
A celebração começou no dia 6 de outubro com a visita do primeiro-ministro, António Costa, a lugares emblemáticos da vida e obra do escritor – Azinhaga, Lisboa e Lanzarote (no arquipélago de Canárias, para onde Saramago e Pilar del Río, sua mulher, transferiram residência em 1993 em consequência da censura exercida pelo Governo português sobre o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo) – e terminou no dia 15 de dezembro com a estreia mundial da sinfonia Memorial de António Pinho Vargas, na Culturgest.
A ideia de visitar os vários espaços físicos de Saramago partiu do gabinete do primeiro-ministro, a quem Sérgio Machado Letria agradece a colaboração. “Esses são os espaços onde a presença física de José Saramago mais se manifesta, não só pelo seu percurso biográfico, mas também, e nos dias de hoje, pela presença da Fundação que leva o seu nome (nos dois primeiros) ou da sua Casa e da sua Biblioteca (no caso de Lanzarote)”, acrescenta.
Houve ainda lugar para o Congresso Internacional “José Saramago: 20 anos com o Prémio Nobel”, coordenado pelo professor Carlos Reis, em Coimbra. Neste congresso, foi apresentado, pela primeira vez, o livro Último Caderno de Lanzarote, inédito de José Saramago, e referente ao ano do galardoamento do Nobel. Decorreram ainda cinco palestras na Fundação José Saramago que davam conta de diferentes dimensões da obra do escritor e a inauguração de exposições como “A Rebeldia de Nobel” (no Torreão Poente da Praça do Comércio), “Saramago – os pontos e a vista” (em Belém do Pará, no Brasil) e uma exposição documental dedicada ao escritor português (na Biblioteca Nacional de Portugal).
Deste modo, “mais do que reduzir a presença a estes três importantes locais (Azinhaga, Lisboa e Lanzarote), podemos afirmar que a celebração destes 20 anos correu mundo, através de sessões em universidades, ou na Feira do Livro de Guadalajara, ou através da rede do Instituto Camões, com uma exposição coproduzida connosco e que foi disponibilizada na rede deste instituto, ou em Itália, Espanha ou Brasil. Poderíamos até afirmar que onde existir um leitor de José Saramago esta celebração também se fez, e, como sabemos, existem leitores seus espalhados por todo o mundo”, assinala Sérgio Machado Letria.
A celebração dos vinte anos do Nobel não podia ser feita sem celebrar também os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, aliás, foi um dos temas centrais no próprio discurso de Saramago, em Estocolmo, aquando do banquete do Prémio Nobel.
Discurso de José Saramago em Estocolmo no Banquete do Prémio Nobel (10 de dezembro de 1998), disponível via YouTube pela Fundação José Saramago
O diretor da fundação aproveita para relembrar que “em muitas das suas intervenções públicas, José Saramago falou da importância de um documento que é fundamental e que é tantas vezes esquecido pelo poder ou pelos cidadãos que nele poderiam encontrar uma ferramenta essencial para lutarem pelos seus direitos. E num mundo cada vez mais desigual, onde grassam as injustiças e onde o fascismo está a ganhar terreno, a obra de José Saramago, pelo poder que dá ao leitor, pela forma como o interpela a tomar posição, a questionar aquilo que o poder tantas vezes não quer ver questionado, está viva e continuará viva.” Ademais, é o próprio escritor que evidencia a sua importância, uma vez mais, ao escrever a sua autobiografia:
“Em consequência da atribuição do Prémio Nobel a minha actividade pública viu-se incrementada. Viajei pelos cinco continentes, oferecendo conferências, recebendo graus académicos, participando em reuniões e congressos, tanto de carácter literário como social e político, mas, sobretudo, participei em acções reivindicativas da dignificação dos seres humanos e do cumprimento da Declaração dos Direitos Humanos pela consecução de uma sociedade mais justa, onde a pessoa seja prioridade absoluta, e não o comércio ou as lutas por um poder hegemónico, sempre destrutivas.” – José Saramago em “Autobiografia de José Saramago”, disponível no site da Fundação José Saramago
“Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas.” – José Saramago em Último Caderno de Lanzarote (2018)
Foi no dia 12 de outubro que a Biblioteca Nacional de Portugal recebeu a apresentação dos livros Último Caderno de Lanzarote, de José Saramago, e Um país levantado em alegria, de Ricardo Viel, em que se fica a conhecer os bastidores dos dias que antecederam e que se seguiram ao anúncio do prémio.
Capa de Último Caderno de Lanzarote, de José Saramago
Durante a apresentação foram exaltados vários traços do escritor. Desde a sua consciência pelas desigualdades no trato dos géneros e etnias, quando, por exemplo, dizia que não sabia o que é ter de valer duas vezes para ser reconhecido uma só vez, como é o caso das mulheres e dos negros, à sua simplicidade no que toca a burocracias. Exemplo disso foi o dia em que entregou o diploma do Prémio Nobel ao então diretor da Bibliotecal Nacional de Portugal, Carlos Reis, à mesa de um restaurante durante um almoço.
Último Caderno de Lanzarote é o livro que surge como o último abraço de Saramago e em que vemos partilhados diálogos que Saramago tinha consigo mesmo. Embora o livro tivesse sido escrito no ano de 1998, acabou por nunca ser publicado. Foi quando procuravam as datas de umas conferências no seu computador que, em fevereiro deste ano, reencontraram o livro, decidindo publicá-lo. Neste caderno, podemos ver inscritas duas etapas: a primeira com textos mais desenvolvidos, até dia 8 de outubro, e a segunda após esse dia, passando a constar apenas breves anotações que esperavam um desenvolvimento que nunca aconteceu. O galardoamento do Nobel teve no povo português uma receção transformadora na medida em que fez algo diferente para o futuro. Mas porque foram esses os dias que Saramago deixou por documentar em pormenor? É Pilar quem afirma, na sessão de apresentação, que “quando Saramago chega ao momento mais importante da sua vida literária enche-se de pudor. Saramago não podia contá-lo, porque lhe escapava.”
Por isso, surge a necessidade de escrever um livro que dê a conhecer os bastidores desses dias: Um país levantado em alegria. O escolhido para recolher estas informações e fazer várias entrevistas que resultassem num livro foi o jornalista brasileiro Ricardo Viel que assume, desde 2013, o cargo de diretor de comunicação da Fundação José Saramago. No seu discurso revelou que cresceu numa cidade sem arte, sem livrarias, bibliotecas ou teatros e que o único cinema que lá existia fora transformado numa igreja. “Não se sente falta de uma coisa que não se sabe que existe”, explica, reforçando a sua preocupação perante a situação política, social e económica que o Brasil atravessa. No entanto, vê no conhecimento, e, portanto, inclusivamente na literatura, uma forma de lutar por um mundo de horizontes alargados e que nos ensina valores tão importantes como o trabalho de saber pôr-se no lugar do outro, como o fazia Saramago ao dizer que “nós somos o outro do outro.” Tendo como pano de fundo a preocupação face ao mundo em que vivemos e onde começam a reaparecer movimentos xenófobos, racistas, misóginos e fascistas, Ricardo remata a sua apresentação dizendo que “aposto neles contra a barbárie, neles os livros e as borboletas”.
“Digo pedra no seu dentro, que é mais cru”, José Saramago em “Digo Pedra” de Provavelmente Alegria (1970)
Foi através da poesia que começámos a conhecer o nome de Saramago quando, em 1966, publica Os Poemas Possíveis, que não é mais do que uma vasta coletânea de 148 poemas seus em que se apresenta como poeta e se propõe a uma súmula do mundo.
“Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria Os Poemas Possíveis, estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta.” – José Saramago em “Autobiografia de José Saramago”, disponível no site da Fundação José Saramago
Foi António Mega Ferreira, escritor, tradutor, jornalista e gestor cultural, que se sentou na Fundação a falar sobre Saramago enquanto o poeta quase esquecido. Em entrevista ao Gerador, explica que “o próprio (Saramago) deixou de falar através da poesia, a partir de uma etapa muito precoce da sua carreira literária. Como ele próprio assumiu, a partir de certa altura convenceu-se de que se exprimia melhor poeticamente escrevendo prosa, e prosa ficcional, para mais. A enorme aceitação que tiveram os seus romances a partir de Memorial do Convento (1982) deixou naturalmente na sombra a sua poesia, que praticamente deixou de escrever (ou, pelo menos, de publicar) na década de 1970.”
Como exemplos da sua poesia apresenta dois títulos, Os Poemas Possíveis e Provavelmente alegria, vendo na sua poesia a obra de maturidade de um homem. “Não é seguro afirmá-lo, embora o seu primeiro livro (Os Poemas Possíveis) apenas tenha sido publicado em 1966, quando o autor tinha 44 anos de idade. É possível que a sua escrita poética tenha começado muito mais cedo, talvez mesmo antes da sua estreia em prosa, que é de 1947. Mas é verdade que logo no seu primeiro livro (e, sobretudo, no segundo, Provavelmente alegria, que é de 1970), revela uma mão segura e uma grande maturidade de visão e de referências culturais, a par de um certo tom desencantado, que está longe das ilusões juvenis que tantos poetas cultivam, nos seus primeiros anos de atividade literária.”
Mega Ferreira explica que o nosso escritor, antes de o ser, foi um leitor omnívoro e insaciável, tendo bebido o seu conhecimento literário em autores como Jorge de Sena, com quem chegou a trocar algumas cartas que lhe serviram de motor para, no segundo livro de poesia, deixar para trás o pendor clássico e encontrar um ritmo mais abrupto. “Há um provérbio chinês que diz ‘lê dez mil livros e escreverás como um Deus’. Durante muito tempo, acreditei que isto era verdade. Hoje em dia, não tenho tanto a certeza disso. Há grandes leitores que jamais escreveram uma linha literária, outros há que escrevem imenso (poucos bem, é certo, mas há alguns) tendo lido um número muito reduzido de livros. No caso de Saramago, estamos perante um leitor omnívoro, que se formou por si mesmo através dos livros que leu, e que se expressou literariamente refletindo muito do que tinha lido. A sua poesia é um exercício intertextual aturado, onde ecoam as vozes de numerosos autores e figuras literárias.”
Em Os Poemas Possíveis, Saramago prefere as imagens colhidas na natureza, revelando a sua curiosidade pelos fenómenos naturais, exibe uma tendência para as formas clássicas e trata temas como a relação desencantada do Homem com Deus e os amores dos outros. Porém, a sua indignação era proporcional ao deslumbramento. Pode até dizer-se que em Saramago a poesia diz-se para dizer qualquer outra coisa. Que coisa? “Não sei, ninguém sabe, talvez ele mesmo não o soubesse. Escreve-se para dizer ‘outra coisa ainda’, mas talvez nunca se chegue a saber o que é. Por isso, continua-se a escrever. Até ao fim”, explica António Mega Ferreira.
Mega Ferreira vê neste primeiro livro de poesia um equivalente ao primeiro filme de um realizador português, por estar lá tudo. Já em Provavelmente Alegria, o escritor aposta em poemas longos no centro do livro e no afastamento do modelo clássico para ir ao encontro das palavras por Jorge de Sena lhe dirigidas epistolarmente.
Saramago dizia que não tinha nascido para isto de ser escritor. “Creio que ninguém nasce fadado para ser isto ou aquilo. Mas há inclinações, digamos, naturais, que se desenvolvem ou não ao longo da vida. Saramago proveio de um meio familiar em nada propenso às letras e aos livros. Porém, por via autodidata, fez-se leitor e homem a ler tudo e de todas as maneiras. Quero crer que, nele, ler e escrever foram sempre exercícios complementares entre si. E, à luz do que foi a sua carreira literária, é difícil imaginar que ele pudesse ter atingido, em qualquer outra atividade, o nível que a sua escrita lhe permitiu”, reflete Mega Ferreira.
No final da sua palestra, aproveita para destacar Saramago como uma “pessoa elegante e gentil” e uma figura mais humanizada do que aparentemente pensamos. “José Saramago foi, apesar de uma aparente inflexibilidade das suas opiniões, sobretudo políticas, um homem elegante no trato com os outros escritores e generoso na forma como sempre os quis trazer para junto de si, isto mesmo depois de receber o Prémio Nobel. Uma vez, em Paris, no início de uma sessão pública sobre a sua obra, apercebeu-se de que no fundo da sala estava um grupo de escritores portugueses que tinham ido ouvi-lo. Interrompeu o que estava a dizer e convidou todos eles a virem sentar-se a seu lado, naquela mesa que estava reservada só para si. Era a sua forma de estar na república das letras, de se sentir parte de uma comunidade de ‘escreventes’ da sua língua, que amava acima de tudo.”
“Porque as palavras deixaram de comunicar”, José Saramago em “As palavras” de Deste Mundo e do Outro (1971)
À poesia, seguiram-se duas recolhas de crónicas publicadas na imprensa: Deste Mundo e do Outro (1971) e A Bagagem do Viajante (1973). Foi do primeiro título que Ana Margarida Carvalho, escritora e jornalista, falou na sua palestra na Fundação José Saramago. A escritora vê em Saramago um escritor em alta voz, uma voz que não se deixava dominar e de constante interrogação, que deixou desenhada a sua silhueta no mundo.
Escolheu falar Deste Mundo e do Outro por considerar que os textos que o integram não são crónicas, mas sim contos deste mundo. “Nenhum jornalista escreve assim e nenhum escritor repara assim. Normalmente, nos jornais escreve-se com pressa, descurando a palavra. Aqui as palavras não são material, mas matéria. Nota-se uma reflexão sobre o que é isto do material do escritor”, partilha Ana Margarida com a audiência.
Vê neste livro o prenúncio de um Saramago que ainda não tinha conhecido o escritor, mas que já coexistiam. São, por isso, crónicas que se encontram no muro entre a literatura e o jornalismo e onde é notória uma luta com a matéria bruta: as palavras. Não é por acaso que os seus livros de crónicas são alvo de olhares de críticos e investigadores, por verem neles um esboço ou sinopse dos romances que surgiriam mais tarde.
É neste livro que inclui também uma crónica dedicada à avó Josefa, em modo de emotiva homenagem a uma mulher, a quem terão roubado o mundo, e outra ao avô Jerónimo, “um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto.” (“O meu avô, também”, em Deste Mundo e do Outro).
No final da palestra, é Pilar quem dá a ler “Manuscrito encontrado numa garrafa”, um texto sobre uma garrafa mensageira encontrada no lago do Rossio e as pessoas que “ostensivamente, fingiam que não viam.” Seria essa a génese de um livro que viríamos a descobrir mais tarde? Muitas foram as histórias das coisas que não foram, como dizia Fernando Pessoa, que Saramago incluiu nas suas crónicas, num fervilhar com a serenidade de saber-se transitório e sorrindo perante isso.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, José Saramago em Ensaio sobre a Cegueira (1995)
É com a afirmação de que José Saramago está vivo, de certa forma, e recomenda-se, que Carlos Reis, ensaísta e professor, inicia a sua palestra sobre a doutrina do romance saramaguiano. O romance começa para Saramago com aquilo que o próprio nomeou de ensaio de romance, com a publicação de Manual de Pintura e Caligrafia. Esse foi o livro em que o escritor principiou o pensamento deste género literário e em que ganhou o sentido da tentativa enquanto aprendizagem.
Na altura em que se viu sem emprego e em que tomou a decisão de se dedicar inteiramente à literatura, instalou-se durante algumas semanas em Lavre, no Alentejo, e após um período de estudo, observação e registo nasceu, em 1980, o romance em que o escritor descobre uma voz própria: Levantado do Chão (1980).
Com Todos os Nomes (1997), é-nos apresentado o romance de uma procura. “Um romance é um organismo que brota de forma proporcionada”, diz Carlos Reis contradizendo a ideia romântica de que a ideia brota sem organização e destacando o papel da investigação na construção de um romance. Ou seja, o encontrar da ordem no caos, como o vemos em O homem duplicado. Saramago “entende o tempo como uma tela imensa em que tudo está ao lado de tudo, como uma espécie de caos”, explica, sendo o tempo o elemento substantivo da construção da história.
Se o mundo é feito para resultar numa bela narrativa, então é necessário atentar que esta não é apenas seletiva, como é discriminatória. “Não se pode contar tudo, mas quando se escolhe o que contar, essa escolha não é inocente”, afirma.
Foi essa escolha que marcou romances como o Memorial do Convento (1982), em que Saramago decidiu meter num romance um convento. Para tal, foi imperativo um longo processo de investigação que desaguou numa narrativa do mundo com uma intenção colaborativa com o leitor, convidando-o a desenvolver um olhar ético sobre a história.
“Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu”, José Saramago em Memorial do Convento (1982)
Desse olhar que não pode ignorar os que constroem a história e que dela são apagados falou-nos o tradutor, escritor, professor e músico Jorge Vaz de Carvalho numa palestra na Fundação José Saramago, em que levou a audiência numa viagem pela ópera Blimunda, sobre o romance Memorial do Convento, estreada em Milão (Itália), a 20 de maio de 1990, com música do compositor italiano Azio Corghi. A 15 de maio de 1991, Blimunda foi representada no Teatro Nacional de São Carlos, e Jorge Vaz de Carvalho foi o cantor que interpretou o papel do padre Bartolomeu de Gusmão.
O tema é o elemento comum entre o livro e a ópera, sendo que a última surge com uma linguagem simplificada e com os sentimentos e emoções à flor da pele. A opção de adaptar a narrativa a uma ópera que se apropria do nome da sua protagonista, ganha mais evidência se relembrarmos a frase do Professor Eduardo Lourenço: “No reinado de D. João V, tudo é ópera.”
Não obedecendo à sequência narrativa do romance, a ópera distingue ainda o povo do poder político e religioso ao pôr as personagens representativas do primeiro grupo a cantar e as do segundo grupo a serem representadas por atores que não cantam, como se não tivessem direito à música. Se o romance pretende dar voz àqueles que normalmente não a têm, a ópera vem juntar-se a esta missão de corrigir a história tradicionalmente contada.
Para Jorge Vaz de Carvalho, a escolha da música para representar o Memorial do Convento, uma obra que nos fala da vontade e do voo, não podia ser mais acertada. “A arte que mais se aproxima do voo é a música, porque ao contrário das outras artes não vive de representações significativas. Vive pelos seus elementos (sons) sem ter um referente imediato”, explica. Mas esta não é apenas uma história sobre heróis sem nome ou a forma como a ciência e a arte realizam o desejo do ser humano de ultrapassarem os seus limites.
Trata-se também de uma história sobre o verdadeiro amor, o de Blimunda e Baltazar, sem que para isso seja necessário recorrer a “conversas sentimentalistas”. Prova disso é a simplicidade como é escrito o casamento das duas personagens, em que uma colher é trocada de boca em boca até se perder o sentido do teu e meu. Várias foram as vezes que Saramago escreveu sobre o amor, mas com uma subtileza que pode passar despercebida a um olhar apressado. Pense-se, por exemplo, em A Viagem do Elefante (2008) que não é mais do que uma fábula baseada num amor que se criou por este ser vivo. É também com uma mensagem de amor, inspirada no de Blimunda e Baltazar, que termina o discurso de Jorge Vaz de Carvalho – “Isto é o que acontece aos grandes amores: nunca se perdem. E exemplo disso é o amor de Saramago e Pilar”.
“No dia seguinte ninguém morreu”, José Saramago em As Intermitências da Morte (2005)
Se o casamento da obra de Saramago com a música foi bem-sucedido com a ópera Blimunda, este elemento tinha de voltar a fazer parte da celebração dos 20 anos do Nobel. “A música, por fim, não poderia faltar, e foi sobretudo através da peça composta por António Pinho Vargas a partir de três romances de José Saramago que ela mais se fez ouvir, no magnífico concerto do dia 15 de dezembro no Grande Auditório da Culturgest, mais um dos parceiros para este programa”, afirmou Sérgio Machado Letria.
António Pinho Vargas, professor coordenador na Escola Superior de Música de Lisboa e investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, foi o escolhido para compor a peça Memorial, para a qual se inspirou nos romances Ensaio sobre a Cegueira (1995), Ensaio sobre a Lucidez (2004) e As Intermitências da Morte (2005) de Saramago.
Em entrevista ao Gerador, explicou o porquê da escolha destes livros para transpor para uma partitura. “Esses três livros têm em comum o aparecimento de epidemias metafóricas, verificam-se numa capital na qual o governo reúne, decide ou se retira, e algumas vezes reage aos acontecimentos de forma repressiva. Todos têm várias formas de violência. A proposta que Pilar del Río me fez incluía esses três livros em torno do conceito de ‘uma ética da cidadania’. Mesmo não sendo fácil traduzir um tal conceito numa obra musical, o facto é que as grandes metáforas dos dois primeiros permitiram-me realizar determinados tipos de acontecimentos sonoros particulares que delas derivaram. Essa foi a parte principal do meu trabalho: tentar ‘traduzir’ em termos musicais aquilo que pudesse criar atmosferas musicais determinadas e um discurso, uma forma em andamentos.”
Não havendo na música instrumental um referente simbólico como é o caso da palavra, o compositor procurou produzir uma narrativa musical pelos seus próprios meios e que fosse capaz de produzir um sentido. “Este sentido musical dirige-se à perceção sensível dos ouvintes de forma particular e muito específica. Usou-se o termo ‘música absoluta’ no século XIX para designar a música sem palavras. Sendo este o caso – música sem palavras –, não pretendi nenhuma ligação com essa corrente. Os títulos dos quatro andamentos lançam pistas para os caminhos que segui: I da cegueira, II da cegueira (con basso profondo), III da violência – da lucidez (as luzes).”
De volta ao concerto, a Orquestra Metropolitana de Lisboa mergulha num período de calmia em que é possível imaginar os cuidados da que fingia não ver para cuidar dos outros cegos, a mulher do médico que surge em Ensaio sobre a Cegueira e, depois, migra para o Ensaio sobre a Lucidez. “A mulher do médico nos dois primeiros livros é uma personagem admirável e no segundo livro (Ensaio sobre a Lucidez) surge na secção final vista pela polícia como suspeita de pertencer à pseudoconspiração do voto em branco. A enorme desigualdade global e os muitos problemas políticos do mundo de hoje encontram nessa metáfora do voto em branco uma antecipação, uma premonição de muitos problemas que são referidos hoje por muitos autores relativamente ao funcionamento talvez desregulado e com disfunções da democracia. Não parece haver alternativa à democracia. Haverá, no entanto, muitas reflexões a fazer no sentido do seu aprofundamento e da sua melhoria. Isso é certo. Mas a questão é muito complexa”, partilha António Pinho Vargas.
Finda a música, os restantes músicos ocupam o palco e o ataque musical é em suspense. De súbito, sentimos uma agitação ao fundo. Depois, acordam os ferrinhos conferindo um toque de magia que contrasta com a sobriedade das cordas. Num ambiente místico e épico, as vozes ecoam pelos vários instrumentos. Silêncio. O som é resgatado com turbulência, inquietação e força. Os tímpanos guiam os passos dos restantes músicos. Estará a lucidez em risco?
Quando assim interrogado, o compositor partilha que “a aceleração extrema do tempo social e individual que caracteriza a atual fase do capitalismo marca os nossos quotidianos e as nossas vidas de muitas maneiras. Um autor alemão, Harmut Rosa, no seu livro Aceleração, uma crítica social do tempo, expõe de forma muito clara esses processos. De alguns, teremos consciência, de outros, talvez não. Considerando que a lucidez – disto ou daquilo – se refere à consciência que se pode ou não ter, julgo que haverá pelo menos vários e diversos patamares de maior ou menor lucidez nas sociedades de hoje.”
Agora o maestro, Jonas Alber, salta acompanhando a indignação dos instrumentos. A aflição é de tal ordem que a respiração dos ouvintes é assaltada por repetidos momentos de suspensão. É tempo de mais uma pausa. Recomposta a ordem, os instrumentos regressam num tom melancólico temperado com uma pitada de esperança. Cada músico que pisa o palco do Grande Auditório da Culturgest é uma caixinha de música que se une ao outro numa fusão plena de sentires. Os braços agitam-se acompanhando as peripécias do tempo, da incerteza, do movimento e da calma. A passada acelera novamente, as cordas são de incerteza e a arpa e ferros sobressaem como uma ameaça dos ponteiros do relógio. Estaremos perante as intermitências da morte?
As Intermitências da Morte (2005) foi o romance que constituiu o pano de fundo do trabalho de António Pinho Vargas. “Não há na estrutura da obra nenhuma decorrência direta. Mas todos os elementos que refere, ‘o tempo, a incerteza, o movimento e a calma’ estão presentes de várias maneiras na obra. De certo modo, estão sempre presentes na música nos seus diversos momentos. São elementos constitutivos da linguagem musical em geral e naturalmente nesta peça em particular. Será, talvez, na parte final – as luzes – que tal se poderá constatar ou fazer essa associação melhor, mas esta é apenas a minha interpretação, de certo modo, a posteriori.”
Destes meses, em que um país se pode voltar a levantar em alegria celebrando a literatura e a sua língua, Sérgio Machado Letria faz um balanço positivo. “O balanço será sempre positivo enquanto continuarmos a ver o interesse que a obra de José Saramago desperta. E, num país onde habitualmente acontece cair um manto de unanimidade sobre figuras que em vida são muitas vezes polémicas, vermos que José Saramago continua a ser lido e discutido é a melhor prova de que a sua memória, a sua obra e as suas ideias continuam vivas.”
Quanto a projetos futuros da Fundação José Saramago, o diretor da mesma, partilha que têm um grande projeto, já em fase bastante avançada e em colaboração com outras entidades há alguns anos, concernente à Declaração de Deveres Humanos. “Gostaríamos que este documento integrasse programas curriculares, que fosse amplamente divulgado, não apenas por cá mas em todo o mundo. E para isso continuaremos a trabalhar, a par das inúmeras outras atividades que preenchem o nosso dia-a-dia na nossa sede, com os milhares de alunos que nos visitam anualmente, com uma programação regular que inclui debates, concertos, exibições de filmes, com uma atividade intensa nas redes sociais, mantendo a Fundação atenta ao que a rodeia e impedindo que este cheiro a alecrim alguma vez desapareça”, diz.
A música termina, António Pinha Vargas sobe ao palco, e no público ouvem-se “bravos” em ovação. O escritor de voz própria e singular nasce com Levantado do Chão, e é com essa ovação em alegria que se mantém vivo o cheiro a alecrim que esta festa não deixará morrer.