Ao passarmos pela Rua do Açúcar, no bairro de Marvila, em Lisboa, é bem possível que ouçamos prelúdios de Rachmaninoff ou o imenso Adagietto da 5.ª Sinfonia de Mahler. Fazem parte do novo espetáculo – Na Substância do Tempo – da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), que ali mantém, desde 2008, o seu local de ensaios.
Numa sala adaptada para este tipo de performance, encontramos Vasco Wellenkamp, diretor da companhia, enquanto dá instruções a um par de bailarinos que ensaia um dueto, feito propositadamente para eles. “Não o faria para mais ninguém. Está feito para forma como eles se mexem, como comunicam”, explica enquanto nos convida a ver mais um pouco.
No total, o novo espetáculo conta com a presença de 13 bailarinos, que todos os dias da semana, na parte da manhã, fazem uma hora e meia de preparação clássica. “Depois têm a linha mais contemporânea, onde assenta este reportório, com a criação de todos estes movimentos que não se vê na dança clássica”, realça o diretor e principal coreógrafo da companhia.
A CPBC, enquanto companhia de dança contemporânea, cruza elementos clássicos, com uma fusão de movimentos mais contemporâneos, mas onde há espaço para a improvisação, dentro de um modelo mais ou menos rígido da coreografia pensada para determinado espetáculo.
Depois de um breve intervalo, em que os bailarinos podem comer e alongar os músculos, Vasco decide que é tempo de ensaiar um dos três bailados que compõem o novo espetáculo Na Substância do Tempo. Ecoa na sala a Sinfonia de Réquiem, e dá-se início a uma coreografia reposta da companhia, com música de Benjamim Britten, figurinos de Liliana Mendonça e produção de Cláudia Sampaio.
Nesta coreografia, inspirada no réquiem do compositor britânico, os 13 bailarinos exprimem o drama, a dor, o terror, a compaixão, e, finalmente, a aspiração ao amor eterno. No fim, os diversos elementos fazem parte de um processo de comunicação, que, de acordo com Vasco Wellenkamp, corresponde também à função da dança enquanto expressão artística.
“É suposto transportar as pessoas, isto é, o público, para uma reflexão emocional, ontológica. Dificilmente, a dança se pode memorizar como a história que se conta num livro. É um momento irrepetível. Fica apenas a sensação que se teve”, aclara.
Ao longo deste momento, Vasco mantém-se em pé, no canto da sala, e assiste atentamente aos movimentos executados. A postura é de imponência, mas também de confiança nos seus bailarinos. Enquanto estes dançam, Vasco não desvia o olhar. Acompanha cada passo e murmura a música que ecoa na sala. No fim, repete “está melhor, mas temos de continuar”.
O novo espetáculo que a companhia irá estrear no próximo dia 10 de abril, no Teatro Camões, em Lisboa, consiste numa homenagem à poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, a propósito do centenário do seu nascimento.
Na Substância do Tempo, divide-se em três partes – “Em Redor da Suspensão”; “Outono (para a Graça)”; e “Réquiem” – e inclui partes da 5.ª Sinfonia de Mahler, Sinfonia de Réquiem de Britten e ainda prelúdios de Franz Liszt e Sergei Rackmaninoff. O desafio de compor este espetáculo partiu da Comissão das Comemorações do Centenário do Nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Em palco estarão os bailarinos Catarina Godinho, Carlos Silva, Francisco Ferreira, Íris Runa, Maria Mira, Miguel Ramalho, Miguel Santos, Patrícia Henriques, Patrícia Main, Pedro Garcia, Ricardo Henriques, Rita Baptista e Rita Carpinteiro.
De acordo com Vasco Wellenkamp, o novo espetáculo “tem como missão fundamental homenagear uma das figuras mais extraordinárias da nossa cultura. Apenas isso, através da dança com simplicidade e gesto, para uma pessoa que também adorava esta arte”, sublinha.
Uma companhia com liberdade para criar
Fundada em 1997, a CPBC foi a materialização de um sonho. Juntamente com Graça Barroso (1950 - 2013), Vasco Wellenkamp encontrou neste projeto o espaço que necessitava para ter mais “liberdade no processo criativo e para poder criar uma obra mais densa”, isto é, menos condicionada pelo reportório clássico.
Décadas antes, em 1968, ingressou pela primeira vez no Ballet Gulbenkian onde mais tarde, de 1978 a 1996, desempenhou as funções de Coreógrafo Residente, Coreógrafo Principal, Professor de Dança Contemporânea e Ensaiador da companhia. “Foi a minha casa. Se não tivesse existido eu não era quem sou. Devo tudo o que sei à Gulbenkian”, realçou o coreógrafo.
Embora lamente o fim do mesmo, Vasco sabia que a decisão de sair seria um passo fundamental na sua carreira. “Ali estava sujeito às temporadas, aos outros coreógrafos, às aulas que tinha que dar. Era uma vida muito intensa e sentia que me estava a prejudicar do ponto de vista coreográfico e a companhia também, apesar de termos tido muitos sucessos”, conta.
O salto deu-se rapidamente e, até ao presente, a CPBC estreou mais de cinquenta obras. Desde a sua fundação tem atuado em todo o país e fora dele, tendo sido convidada a fazer parte da programação de vários teatros internacionais, em países como Brasil, Itália, Espanha, Áustria, Alemanha, Luxemburgo, Estados Unidos da América, China, Israel e Coreia do Sul.
Olhando para a companhia que criou, Vasco descreve-a de forma emotiva. “Trata-se de uma companhia de reportório que mantém um discurso coreográfico abstrato no sentido literal. Não vale a pena estar-se a dizer o que este ou aquele movimento quer dizer ou significa. A dança é imagem, densidade, emoção e lirismo, e tem a grande capacidade de comunicar emoções. Às vezes não é necessário dizer «amo-te» a uma pessoa, basta abraçá-la”.
O momento de renascer enquanto companhia de bailado
Mais recentemente, a companhia viu a sua continuidade ameaçada por falta de apoios do Estado. "A crise veio arrasar a companhia, perdemos todos os apoios, assim como outras instituições”, afirma.
No entanto, a CPBC acabou por ganhar um novo fôlego, depois estabelecer, já este ano, uma parceria com a Allianz Portugal. Num acordo válido para os próximos três anos, a seguradora será o principal parceiro da CPBC, através do apoio à agenda de espetáculos e atividades de âmbito cultural e artístico da companhia.
“Três anos são um grande apoio e tenho a dizer que acho também que é muito meritório. Além disso é um privilégio ter uma instituição em Portugal que teve essa visão. Não há neste país essa tradição dos mecenas e é pena, mas a pouco e pouco vai surgindo”, salienta o diretor da companhia.
No futuro, o Vasco Wellenkamp espera conseguir mais apoio nos próximos concursos da Direção-geral das Artes. “A dança foi sempre a mais pobre de todas as artes. Não sei explicar porquê. Se é porque é a mais nova das expressões artísticas ou porque muitos políticos não se interessam. Mas temos de pensar positivo”, advoga.
Além do espetáculo de dia 10, estão agendadas mais três datas, nos dias 11, 12 e 13 de abril, no mesmo local. O espetáculo “Na Substância do Tempo” segue depois para outras localidades, designadamente em Setúbal, no Fórum Municipal Luísa Todi, a 31 de maio, na abertura do Festival Algures a Nordeste, no Teatro Municipal de Bragança, a 7 de setembro e no Centro Cultural de Belém, a 13 de dezembro.