Coincidências à parte, o Dia Internacional do Livro Infantil calhou na semana em que o Gerador vai reunir três ilustradores para falar sobre Liberdade, a propósito da celebração dos 45 anos da Revolução de Abril, em Oeiras. Inês Machado, uma das oradoras do painel, é cofundadora da Triciclo, uma microeditora independente dedicada à ilustração infantil — com livros, revistas, zines e jogos — , fundada em 2017 por si e mais dois membros que formam até hoje um coletivo a três, Ana Braga e Tiago Guerreiro.
Depois de dois anos a frequentar o ensino secundário regular em artes, percebeu que tinha de ir para a Escola Artística António Arroio, onde acabou por se formar em Produção Artística – Têxteis e preparou o seu caminho para a licenciatura em pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Atualmente, a Inês tem na Triciclo um trabalho a part-time — tal como a Ana e o Tiago — e encontrou no Museu Berardo um complemento ao trabalho na ilustração; primeiro enquanto assistente de exposição e mais tarde monitora, também é responsável pela construção dos kits de mediadores de visita juntamente com a sua amiga Francisca Valador.
Combinámos uma entrevista em jeito de conversa informal e encontrámo-nos num café onde “Walk on The Wild Side” do Lou Reed, “Something” e “Here Comes The Sun” dos Beatles foram acidentalmente fazendo parte da banda sonora. Nos olhos da Inês, um brilho que também não conseguia evitar ou esconder passava para o lado de cá sempre que falava do seu trabalho e do quanto gosta de trabalhar com outras pessoas.
Começa por dizer que a vontade de fazer ilustração infantil surgiu “com muita naturalidade”, mas recorda que, mesmo sem ter consciência disso, a vontade de ilustrar para crianças já vem dos tempos na António Arroio. “Eu lembro-me de que quando fazia os meus registos para a PAA (Projeto de Aptidão Artística) e durante o projeto em têxteis a professora referiu isso. Mas para mim, a ilustração ainda era muito vaga e achava que os meus desenhos não se aplicavam. Agora quando olho para trás e volto a ver os meus desenhos percebo que sim”, conta.
Foi numa disciplina optativa na faculdade que mergulhou na ilustração, nas aulas do professor Pedro Saraiva, cujo acompanhamento aos projetos dos alunos era “muito bom” e permitiu a Inês ver que a sua linguagem “se encaixava nas premissas que ele introduzia nas aulas”. Percebeu que este podia ser O caminho quando fez o workshop da Catarina Sobral na Ar.CO, onde conheceu o Tiago e a Ana, com quem fundou a Triciclo — a editora que surgiu com uma vontade muito específica, criar uma revista para crianças. Há apenas 2 anos, em 2017, juntaram-se os três para formar um coletivo com bagagens diferentes, mas com um objetivo comum.
“Eles (o Tiago e a Ana) vêm de áreas muito diferentes da minha. O Tiago vem de letras e a Ana do design e da arquitetura. Acho que sermos três e virmos de áreas completamente diferentes faz com que o projeto se complexifique e também seja melhor por isso, porque as coisas são pensadas de outra maneira. O diálogo que se gera entre nós faz sempre com que as coisas avancem e traz pormenores que nunca me tinha passado pela cabeça, o que é muito bom. Tem sido muito boa essa aprendizagem com eles”, diz Inês com um ar pensativo, numa espécie de exteriorização de uma introspeção.
As revistas Triciclo têm vários pontos de venda no país e no estrangeiro
"ABC do Cinema", livro infantil pensado e executado pela Triciclo
O sucesso da Triciclo não era previsível, mas desde o começo que Inês acreditou que valia a pena investir. Previam fazer 40 exemplares da primeira revista, mas a ilustradora achava que deviam fazer 80. As 80 edições que fizeram esgotaram no dia do lançamento; a Inês estava certa. A euforia inicial repetiu-se na segunda edição, mas hoje sente que as coisas são um pouco diferentes. “Agora sinto que aquele interesse inicial não voltou a acontecer tão massivamente. Mas há sempre pessoas que compram — eu até diria que a maioria das pessoas que compram as nossas coisas são adultos que colecionam e que gostam de objetos deste género, se calhar nem chegamos tanto ao público infantil. Acho que há mais adultos-pais que compram para si, do que adultos-pais que compram para os seus filhos”, desmistifica.
Ao trabalhar com crianças frequentemente, Inês sente que consegue “criar conteúdos de outra maneira”. “Às vezes, consigo perceber melhor o que é que cada faixa etária apreende. Se calhar há coisas que eu acho que são muito básicas para crianças dos 3 aos 5, não são. No caso dos jogos, às vezes reparo que há coisas que são um bocadinho difíceis e tenho de simplificar mais.”
- Dominó da Triciclo
- “Praia das Maçãs”, jogo de tabuleiro da Triciclo
Conta que “a triciclo não surgiu de uma necessidade de ter um rendimento”. Surgiu antes de uma vontade de ter um espaço onde os três pudessem criar o que queriam. “Eu faço o que faço e se não chega, arranjo outro trabalho. Sempre gostei de ter liberdade para fazer o que me é natural. E claro que a Triciclo me dá essa liberdade”, confessa. Mantendo-se fiel a si e à sua linguagem — que lhe sai “naturalmente” e “não é simplificada por ser para crianças” —, vai desenvolvendo o seu universo artístico na Triciclo e no Museu Berardo, dedicada ao que mais gosta de fazer: trabalhar para e com crianças.
A ilustradora contou que graças à Triciclo várias portas se têm aberto para si e que, felizmente, “têm sido as portas certas”. Não só através dos livros que vai desenvolvendo na microeditora, mas também através das visitas que guia no museu, acredita que pode ir sensibilizando as crianças para o universo artístico. Ainda que sinta que há cada vez mais “falta de curiosidade”, que “não há o bichinho de conhecer”, pensa que “se as crianças tiverem uma boa memória afetiva do sítio visitado vão falar em casa e só o facto de gerar curiosidade, já é bom.”
Com apenas dois anos de existência, a Triciclo “ainda está a ver até onde pode ir” e a testar seus limites. Inês não sabe se a serigrafia e a risografia vão ser as únicas técnicas utilizadas nos objetos criados pelo coletivo, mas garante que, pelo menos para já, fugir dessas técnicas seria “fugir do projeto inicial e da sua identidade”. Sem conseguir adivinhar o futuro que lhe está reservado, sente-se bem com o que tem vindo a fazer e sabe que é este o caminho.
Despedimo-nos com um “até já”, com a certeza de um reencontro que acontece no sábado, onde a conversa vai passar a ser a três.
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Inês Machado vai integrar a conversa “Três Ilustradores Falam sobre Liberdade” no próximo sábado, dia 6 de abril, às 18h00 na Galeria Verney, em Oeiras. Junta-se a Ana Gil e Nuno Saraiva para uma conversa em que se pretende explorar o papel da liberdade no dia a dia de cada um de nós e, mais concretamente, no universo da ilustração. Sabe mais sobre esta conversa, aqui.