Do olhar incauto de Oliveira, à câmara transportável de Campos e à visão poética de Reis e Cordeiro, o cinema documental português é um espelho do passado que se transportou para a contemporaneidade. Na época em que a distinção entre ficção e documentário é cada vez mais discutida, quisemos aprofundar o nosso olhar sobre o segundo formato, que tem tido uma contínua importância e presença no retrato das realidades portuguesas.
É a partir desta premissa que, no número 29 da Revista Gerador, nos propusemos a falar do percurso do documentário na história do cinema português. Uma odisseia que começa ainda no século XIX, mas que ganha relevância na primeira metade do século XX pela mão de criadores visionários, cujo nome está para sempre eternizado nas imagens que nos deixaram.
A viagem começa com Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira, passa por Vilarinho das Furnas, de António Campos, a Senhora Aparecida, de Catarina Alves Costa e hoje, no quarto artigo que dedicamos ao documentário português, voltamos à terra. Da terra dos nossos avós, onde reencontramos os primos que o resto do ano vivem em França ou na Suíça, à terra que já fomos no tempo da ditadura, até à terra que por algum motivo já não sentimos nossa, mas à qual ainda pertencemos. Pelos olhos de Miguel Gomes, Miguel Gonçalves Mendes, Susana Sousa Dias e João Pedro Plácido voltamos, de alguma forma, à terra que nos une.
Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes (2008)
É agosto, o calor sente-se em cada milímetro da pele e ao longe ouve-se uma banda a tocar os clássicos da música pimba portuguesa. Aproximam-nos e encontramos o primo que só vemos no verão porque vive em França o resto do ano, a amiga que passa o dia connosco a apanhar sol no rio e os habitantes de um lugar que é tão nosso sem o ser ao mesmo tempo. Aquele Querido Mês de Agosto é uma docuficção de Miguel Gomes estreada em 2008, com argumento do realizador, de Mariana Ricardo e de Telmo Churro, que leva para a tela a realidade do mês dos emigrantes e as camadas que o compõe em qualquer aldeia do interior do país.
Rodado entre os verões de 2006 e 2007, o filme passa-se entre as aldeias de Arganil, Oliveira do Hospital, Góis e Tábua e o elenco compõe-se por um grupo de não-atores que assumem a sua posição de não-atores perante a câmara e desafiam constantemente os limites entre a ficção e o documentário. Tendo como ponto de partida os múltiplos cenários encontrados em cada querido mês de agosto, Miguel Gomes salta para a história da banda “Estrelas do Alva”, na qual se encontram pai, filha e sobrinho, e afunda-se no enredo da vida pessoal de cada um deles.
Com Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes reúne traços de personalidade do povo português e apresenta um retrato antropológico que continua atual dez anos depois.
À semelhança de outros filme de Miguel Gomes, nesta docuficção há um constante questionamento do próprio cinema e da sua indústria
José e Pilar, Miguel Gonçalves Mendes (2010)
Depois de reinventar o documentário biográfico com Autografia, o filme que eterniza o seu encontro com Mário Cesariny, Miguel Gonçalves Mendes volta a dar a volta aos cânones com José e Pilar. Entre Portugal, Espanha e o Brasil, Miguel Gonçalves Mendes lança-se ao universo de José Saramago e Pilar del Río, sem que muitas vezes nos apercebamos desta terceira presença em cada cenário.
Com José e Pilar conhecemos um Saramago que até então não conhecíamos, e entendemos a força natural de Pilar del Río, a sua companheira em todas as frentes. Entre a vida e a obra do Nobel da Literatura, recebemos, do lado de cá do ecrã, um retrato do que o movia, das questões mais fraturantes ao longo dos seus últimos anos de vida e de um quotidiano que tem tanto de banal como de extraordinário.
Miguel Gonçalves Mendes acompanhou José e Pilar entre 2006 e 2009 e, ao mesmo tempo, o caminho persistente de Pilar para que José escrevesse “A Viagem do Elefante”. Saramago morreu a 18 de junho de 2010, pouco tempo antes da estreia do filme.
Segundo a sinopse do filme, José e Pilar "desfaz ideias feitas e prova que génio e simplicidade são compatíveis"
48, Susana Sousa Dias (2010)
Foi no processo de filmagem de Natureza Morta que Susana Sousa Dias percebeu que precisava de fazer outro filme. 48 surge quando a realizadora descobre os álbuns das fotografias de reconhecimento dos presos políticos no arquivo da PIDE/DGS e percebe que só as pode filmar se tiver a autorização de cada um. A partir daí começa a falar com os protagonistas das fotografias para Natureza Morta, sobre as imagens e as suas memórias enquanto presos políticos, num processo de pesquisa e diálogo de uma densidade que tornou possível que, a partir dali, se fizesse um outro filme - 48.
A fotografia de cadastro como ponto de partida para a condição de preso político e como elemento simbólico que permite “entrar dentro do que se passou na prisão”, "ver qualquer coisa lá de dentro”, como explica a realizadora numa entrevista que deu no Matadero, em Madrid.
Ainda que todas as entrevistas tenham sido filmadas, 48 compõe-se por fotografias de arquivo e o testemunho em áudio das pessoas representadas em cada uma dessas fotografias. Com este documentário, Susana Sousa Dias vira a lente do questionamento sobre o Estado Novo para os presos políticos, que até então haviam sido pouco abordados em filmes deste género, e questiona os limites da imagem em movimento.
A investigação contínua de Sousa Dias pelo período do Estado Novo levou-a mais tarde a realizar o filme Luz Obscura, estreado em 2017, desta vez com fotografias pertencentes ao núcleo familiar do militante comunista Octávio Pato.
Através dos seus filmes, Susana Sousa Dias pretende evitar o revisionismo histórico do
período ditatorial
Volta à Terra, João Pedro Plácido (2014)
Voltar à terra de origem, ao ponto onde tudo começou, é o mote do filme Volta à Terra de João Pedro Plácido. No lugar de Uz, em Cabeceiras de Basto, constrói uma narrativa com não-atores que têm o amor à terra e aos animais como fator unificador de uma comunidade que se rege por valores que perduram há centenas de anos.
Pela voz de Daniel, um jovem pastor que faz o papel de si mesmo, João Pedro Plácido levanta uma série de elementos da ruralidade - alguns deles que também conseguimos encontrar n’Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes.
Criado pelos avós naturais da Uz, o realizador vê Volta à Terra como uma forma de mostrar os valores e a filosofia de vida assentes numa economia de subsistência desta comunidade que encontra valor nas coisas e nos momentos mais simples. Se os passarem juntos, melhor ainda.
Em entrevista ao Gerador a propósito da Revista Gerador 29, a realizadora Leonor Teles destaca-o entre os documentários ou docuficções que, de alguma forma, marcaram o seu percurso, a par de Tabu, de Miguel Gomes, e No Quarto de Vanda, de Pedro Costa.
Volta à Terra foi o primeiro filme de João Pedro Plácido
Os filmes aqui destacados serviram de referência para a reportagem Cinema Documental: uma lente sobre as realidades portuguesas?, publicada no número 29 da Revista Gerador, disponível numa banca perto de ti ou em gerador.eu.
Todos os documentários de que te falamos hoje podem ser vistos na plataforma de streaming Filmin, à excepção de 48, de Susana Sousa Dias. Podes encontrá-los na Coleção Gerador, acompanhados de outros filmes que lançam diferentes olhares sobre a cultura portuguesa, reunidos pela equipa do Gerador.