Do olhar incauto de Oliveira, à câmara transportável de Campos e à visão poética de Reis e Cordeiro, o cinema documental português é um espelho do passado que se transportou para a contemporaneidade. Na época em que a distinção entre ficção e documentário é cada vez mais discutida, quisemos aprofundar o nosso olhar sobre o segundo formato, que tem tido uma contínua importância e presença no retrato das realidades portuguesas.
É a partir desta premissa que, no número 29 da Revista Gerador, nos propusemos a falar do percurso do documentário na história do cinema português. Uma odisseia que começa ainda no século XIX, mas que ganha relevância na primeira metade do século XX pela mão de criadores visionários, cujo nome está para sempre eternizado nas imagens que nos deixaram.
Numa série de artigos, que iniciámos há duas semanas, destacamos alguns o nome de alguns cineastas, tendo por referências alguns dos documentários mais marcantes que nos deixaram. No segundo capítulo falamos de António Campos, António Reis e Margarida Martins Cordeiro, e Rui Simões, que entre os anos 70 e 80 traçaram um retrato de Portugal e das suas gentes nas aldeias e cidades, não deixando de fora o 25 de Abril de 1974 como acontecimento marcante na história recente do país. Para o artigo desta semana continuamos este percurso cronológico de análise sobre alguns dos principais documentários portugueses, desta vez pelas lentes de Paulo Rocha, Catarina Alves Costa, Pedro Costa e Sérgio Tréfaut.
A Ilha de Moraes, Paulo Rocha (1984)
Neste documentário lançado em 1984, Paulo Rocha debruça-se sobre a vida do escritor português Wenceslau de Moraes (1854-1929), que viveu em diversos territórios do Extremo Oriente. O filme marca o regresso do realizador à vida desta figura depois de ter rodado em 1982 A Ilha dos Amores (1982), que se inspira na biografia do autor de Dai-Nippon (1897), Relance da História do Japão (1924) e Relance da Alma Japonesa (1926).
Para retratar a vida e obra de Wenceslau de Moraes, Paulo Rocha coloca em diálogo fotografias, filmes de actualidades e imagens de Lisboa, Macau, Kobe e Tokushima da época de Moraes, com os seus textos e a ficção de "A Ilha dos Amores". Além disso, o filme passa por locais onde se mantém viva a memória do autor, incluindo entrevistas com familiares, conhecidos e estudiosos.
Senhora Aparecida, Catarina Alves Costa (1994)
Neste filme de carácter etnográfico, Catarina Alves Costa documenta as conhecidas festas à Senhora Aparecida - celebradas no concelho de Lousada, no distrito do Porto -, marcadas por uma procissão de andores, onde se insere uma outra procissão, em que os fiéis são deitados em caixões simulando um rito de morte.
O filme relata os acontecimentos que se seguiram à proibição, feita pelo jovem padre, da realização desta ultima procissão, colocando em evidência um clima de confronto, em que a população acusa o pároco de pôr em causa a identidade local e dos habitantes que pretendem manter esta tradição. Assim, ao longo do filme, a cineasta recolhe o depoimento de membros da população mas também do padre, no meio deste clima de discórdia e tensão.
No Quarto da Vanda, Pedro Costa (2001)
Entre a ficção e o documentário, Pedro Costa constrói em No Quarto da Vanda uma narrativa em que explora a injustiça social que afecta a vida de jovens marginais ou imigrantes, radicados em Lisboa. O filme materializa a segunda parte de uma trilogia onde se incluem os filmes Ossos (1997) e Juventude em Marcha (2006).
Neste filme, Pedro Costa regressa ao bairro das Fontainhas - que começa gradualmente a ser destruído pelos buldózeres da Câmara de Lisboa - para nos relatar a história Vanda Duarte, uma jovem tóxico-dependente que vive isolada do mundo exterior, fechada no seu quarto despido de grandes artefactos, com mágoa e desconforto pela sua difícil condição.
Ao ver No Quarto da Vanda entramos num universo que não é o nosso, mas que de alguma forma nos parece familiar. No quarto com Vanda ou Zita Duarte, esquecemos que existe uma outra presença no espaço, a do realizador, e sem nos apercebermos alteramos o tom da nossa respiração para o de cada personagem, como se com ela vivessemos por momentos.
Recentemente muito premiado por Vitalina Varela, o filme que lançou em 2019, Pedro Costa foi construindo um caminho do qual No Quarto de Vanda ocupa um papel determinante.
Lisboetas, Sérgio Tréfaut (2004)
Em Lisboetas, Sérgio Tréfaut apresenta um documentário político sobre a vaga de imigração que nos últimos anos mudou Portugal. Um retrato acutilante que evidência a transformação da própria cidade através de novas realidades, com diferentes modos de vida, mercado de trabalho, direitos, cultos religiosos, identidades.
Pelo olhar de Tréfaut acedemos às franjas da sociedade, questionamos o que é afinal ser lisboeta e carregamos o testemunho que jamais conseguiremos largar.
Com o filme, o cineasta recebeu o Prémio de Melhor Filme Português na primeira edição do IndieLisboa.
Os filmes aqui destacados serviram de referência para a reportagem Cinema Documental: uma lente sobre as realidades portuguesas?, publicada no número 29 da Revista Gerador, disponível numa banca perto de ti ou em gerador.eu.