Muitas das principais instituições culturais portuguesas, estou certo, ou não têm estudos de públicos atualizados ou nunca os fizeram (não confundir com estudos de mercado, marketing, sondagens, etc.).
Na verdade, perpassa um espectro sobre muitos dos responsáveis dessas organizações: os públicos são um monstro ignaro e poliforme que mais vale não conhecer, pois é preferível inventar um destinatário (cliente?) modelo, que a seu bel prazer se molda, do que lidar, no concreto, com os constrangimentos (e possibilidades!) objetivos da sua estrutura.
Outras vezes, a lembrar um prestigiado encenador e diretor de teatro que me ligava amiúde assustadíssimo com a análise dos dados de um inquérito por questionário sobre os públicos da sua sala, temendo as repercussões de uma composição elitista, vive-se com a representação de que é impossível, em certos contextos, géneros artísticos e modalidades de apresentação, alargar públicos e com eles assumir compromissos. Finalmente, há quem se compraza com a seletividade das audiências, pois tal seria o indicador supremo de nobreza artística e distinção social.
Ora, mais do que nunca, importa colocar o conhecimento dos públicos no cerne da missão das instituições culturais, não como qualquer tipo de exigência burocrática, indicador de avaliação ou contrapartida, mas sim enquanto desiderato antropológico e sociológico de interconhecimento.
Tenho vindo a defender que, para fazer esse mapeamento de interações contextualizadas, importa mobilizar uma etnografia dos públicos em ação (Lopes, 2007). Não nego, é importante dizê-lo, a importância dos estudos tradicionais de públicos, em geral metodologicamente monolíticos. Saber a frequência e a intensidade das práticas é uma matéria-prima crucial para pensar os universos simbólicos da receção. Mas urge complexificar e indagar pelos mecanismos relacionais e situados de produção de sentido durante as ocasiões em que o espetador é agente de uma apropriação.
O espetador (leitor, ouvinte, voyeur) é sempre um espet - ativo, alguém que, no lugar e momento da receção apropria, recria, compõe, decompõe e produz uma apresentação/representação de si mesmo e desse processo. Sempre, é claro, dentro dos recursos (capital económico, mas principalmente cultural e simbólico) que acumulou e em maior consonância ou dissonância com o quadro de interação. Este define limites, dissemina pistas, alimenta “deixas”. Uma sala à italiana, um quarto ou uma sala de estar, uma biblioteca ou uma garagem, um velho teatro nacional ou uma praça são molduras distintas e produzem enquadramentos díspares.
O caso do teatro é exemplar. Importa perceber se a geografia do lugar (Fabiani e Ethis, 2003), incluindo o palco, mas para além dele, no que ela sintetiza de fisicalidade, mas também institucionalidade, memória e simbolismo, contribui para a uniformização do público ou para a sua divisão, se o repertório fecha ou abre possibilidades de fuga, contestação ou partilha, ruído ou silêncio: “o espectador nunca é o produto de um encenador demiurgo. Ele preexiste à representação, sobrevive-lhe e faz ouvir a sua voz” (Idem, ibidem: 26). Assim, tal etnografia comportaria pelo menos quatro momentos:
- a indagação sobre as regularidades das classes de práticas em que os públicos se encaixam (o que pode ser feito recorrendo a estatísticas já disponíveis ou partindo de um inquérito por questionário) e que remete para a interseção das localizações sociais (de classe, género, etnia) e para a sua correlação com intensidades e frequências;
- a observação dos contextos de interação, em seus encaixes sucessivos (local, instituição, dispositivo; fachadas ou bastidores…);
- a minuciosa análise das cadeias de atos recetivos, nos momentos mais ou menos ritualizados das apropriações enquanto atos de concretização da indeterminabilidade da obra;
- a biografia dos praticantes culturais (recorrendo aos retratos sociológicos, em que cada agente é entrevistado sobre a génese das suas competências e disposições face à cultura, tendo em mente a pluralidade de contextos de socialização, a singularidade de acontecimentos na história individual, as congruências e/ou dissonâncias entre quadros e princípios de socialização).
Deste modo, seria possível aproximarmo-nos da complexidade do recetor empírico, ao invés das mitificações do recetor imaginado ou desejado e que se traduz na fábrica de ilusões tão presente no conceito de “espetador modelo”, aquele que “reconhece todos os códigos do Texto Espetacular em questão, reconstruindo a sua Estrutura Textual geral no modo textualmente proposto pelo emissor: a sua leitura é pertinente por excelência” (De Marinis citado por Tota, 2000: 41). A aproximação etnográfica desilude, mas impede efabulações reducionistas.
Lopes, João Teixeira (2007), Da Democratização à Democracia cultural: uma reflexão sobre políticas culturais e espaço público. Porto: Profedições
Fabiani, Jean-Louis e Ethis, Emmanuel (2003), “O festival e a cidade: o exemplo de Avignon”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 67, pp. 7-30
Tota, Ana Lisa (2000), A Sociologia da Arte. Lisboa: Estampa
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas - Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura - Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão "Chevalier des Palmes Académiques" pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.