Encontro-me em estado de vigília! Será que, no momento em que escrevo, o mundo pode verdadeiramente mudar? Não tenho uma visão catastrofista da existência humana, porque acredito que aquela lhe é inerente. O Homem transporta em si o seu próprio thánatos! Nas palavras de Buchner: “Todo o Homem é um abismo, e alguém é capaz de ter vertigens se olhar para baixo”. Todavia, neste momento, joga-se além Atlântico mais uma partida de xadrez que definirá, sem dúvida, o nosso futuro. E a palavra futuro, está hoje, como nunca, carregada, diria mesmo, sufocada de significado.
Não será, decerto, a primeira vez que se instala na Humanidade esta insónia angustiada, mas, talvez, nunca tenhamos tido tanto a perceção de que estamos globalmente suspensos, expectantes da resposta de um povo. Haverá um povo por detrás desta escolha? Sobreviverá ainda nos nossos dias este sinónimo de coletivo, de construção, de escolha e decisão.
O cinismo europeu, mantendo a necessidade de uma amizade malgré elle même, tem, ao longo de décadas esboçado um retrato de uma América puerilmente maniqueísta, como nos western e nos dramas clássicos de Hollywood. O que se passa, porém, neste terceiro dia do mês de novembro do vigésimo ano do segundo milénio está, como todas as coisas profundas e absolutas, para além do bem e do mal.
Fala-nos eloquentemente de uma sociedade próxima do seu estertor em que o aniquilamento ontológico cavado por anos de distanciamento entre governantes e governados, cedeu passo à voragem do espetáculo permanente. O que presenciamos, então, é uma gigantesca náusea, um mal de vivre avassalador que prenuncia uma sentença de morte. A física evidentemente, mas além desta individual, íntima e solitária, a monstruosa morte dos ideais.
O match será provavelmente trágico nesta luta de irrisórios titãs. Por um lado, o clownesco, o non sens, a efabulação e a mentira, por outro um discurso cansado em que o desfiar dos valores humanos não é mais do que mera forma. O vazio hipnotizante da forma contra o vazio anestesiante do conteúdo. A vontade de poder manobra na sombra.
Na mitologia nórdica o lobo é assimilado a Cronos, devorando os filhos e o tempo que passa. Creio que nunca estivemos globalmente tão perto da carnificina e do fim do tempo. As imagens que nos chegam diariamente são disso prova: a indigência tomou conta da cidade, disformes são os rostos, terríficos são os esgares, trágica a boçalidade. Como nas pinturas de Ensor! Quando o pensamento trai a vida, a vida vinga-se e perde-se com ele.
A Hora do Lobo paira sobre toda a terra, estaremos vigilantes ou paralisados, capazes de mergulhar no abismo de nós mesmos salvando-nos? Para além dela…. Nascimento ou morte, danação ou salvação?
Será que despertaremos?
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.