As luzes a indicar que a época festiva se aproximava já brilhavam nas ruas desde o início de Novembro. Ou será que foi no fim de Outubro? Se calhar ainda era Setembro quando comecei a ver as filas de presentes a montar-se entre azul e rosa nos grandes supermercados.
Bonecas para as meninas que inclui barbies, nenucos (será que ainda se chamam nenucos às imitações mais ou menos realistas de bebés que fingem que choram, comem e fazem cocó?), mas também o conjunto de cozinha que tem o forno todo equipado ou o kit limpeza que junta balde, esfregona e vassoura. E carrinhos para os meninos, quando digo carrinhos quero dizer legos, figuras de ação e pistolas, claro. Não podem faltar as pistolas.
O meu sobrinho de três anos tem todos os legos maxi alusivos a temas como, construção e obras, polícia e bombeiros. A brincadeira que mais gosta é a de matar, de pistola em punho diz:
- Estás morta, tia Axanda. Morre tia!? — e eu tenho de fingir estar sem vida, normalmente deitada no sofá ou ir caindo, em câmara lenta para cima do tapete da sala.
Talvez me venham dizer que estou a exagerar, (não sei quantas vezes mais vou ouvir que se eu fosse mais querida/fofinha, se não fosse tão radical a falar dos assuntos talvez as pessoas me ouvissem, dessem atenção ou aprendessem mais comigo) que há meninas que também brincam com carrinhos e que gostam de jogar futebol e meninos que têm bonecas e que pedem pelo natal as tais cozinhas com fogão incorporado.
Infelizmente, as exceções não são a regra que permitem que qualquer criança brinque com o que quer brincar, goste do que gostar e não ajudam a que os supermercados deixem de se organizar por azul e rosa nesta altura do ano para que todos os brinquedos possam ser de todas as crianças. Nesta altura do ano pergunto quantas crianças vão ainda ouvir da do tio, da tia, do avô ou da avó:
- Isso não é um brinquedo para ti, isso é brinquedo de (o género oposto ao da criança)?
Quantas vezes a criança vai ouvir isto até que desista de brincar com o que quer, como quer?
As festas são os momentos em que as famílias se juntam para que, pelo menos naquele dia, nos lembremos de que existe uma coisa chamada família. No entanto, todas as pessoas têm histórias de momentos embaraçosos com as famílias que mal se falam durante todo o ano, mas que neste dia se juntam às dezenas numa cozinha onde mal cabe toda a gente para que não se esqueçam que são família, ou seja, para a tia não ficar chateada, para a avó não ficar triste e o sobrinho receber prendas de toda a gente, porque no Natal o que conta são as crianças, mesmo que a gente não fale, brinque, telefone durante o resto do ano todo.
Este ano pandémico a coisa muda de figura, temos de ser menos. Temos de escolher melhor com quem vamos passar esta data, porque, como somos um país laico mas só no papel, até temos medidas menos restritivas no Natal e mais apertadas na passagem de ano. O vírus dá folga desde que abençoado por deus.
Era bom que com esta mudança, mudasse também a forma como vivemos as famílias e a obrigatoriedade destes momentos. Como muitas vezes somos sujeitadas e/ou sujeitamos as pessoas a relações tóxicas por crença firme que as famílias são assim. ‘Não existem famílias normais’ é o que ouvimos como desculpa para a disfuncionalidade. Acreditamos que as famílias de origem, nucleares, de sangue, são a base de todas as coisas nesta sociedade. E essa não é a verdade para todas as pessoas. E esse tem de deixar de ser o mote para as nossas vidas. A mudança tem de acontecer para que possamos nutrir relações de amor, aceitação, compreensão e comunicação efetiva, sem pressupostos e que vão para além dos laços sanguíneos e da ideia de que ‘família há só uma’.
Famílias são aquelas pessoas que se cuidam, se apoiam, constroem e acompanham. Aquelas que comunicam e vivem nas vidas umas das outras sem se atropelarem, que nos presenteiam e enriquecem para além das obrigatoriedades. Não sou contra as festas. Sou a favor de festas em que possamos celebrar-nos verdadeiramente, em que possamos, em vez das piadas racistas, partilhar sonhos e vidas. Sou a favor de festas em que não existem normas e papéis de género, em que as mulheres é que cozinham e limpam, e os homens são servidos e não se levantam nenhuma vez da mesa para arrumar.
Eu quero festas e famílias que sejam o que precisamos que elas sejam, ninho, casa. E que estes momentos sejam muitos, vários, com as pessoas que amamos, que cuidamos e que nos cuidam. Festas felizes, com as famílias que somos e construímos.
-Sobre Alexa Santos-
Alexa Santos é formada em Serviço Social pela Universidade Católica de Lisboa, em Portugal, e Mestre em Género, Sexualidade e Teoria Queer pela Universidade de Leeds no Reino Unido. Trabalha em Serviço Social há mais de dez anos e é ativista pelos direitos de pessoas LGBTQIA+ e feminista anti-racista fazendo parte da direção do Instituto da Mulher Negra em Portugal e da associação pelos direitos das lésbicas, Clube Safo. Mais recentemente, integrou o projeto de investigação no Centro de Estudos da Universidade de Coimbra, Diversity and Childhood: transformar atitudes face à diversidade de género na infância no contexto europeu coordenado por Ana Cristina Santos e Mafalda Esteves.