"Árvores são poemas que a terra escreve no céu”
Gibran Khalil Gibran
“Enganam-se os que julgam que as árvores estão quietas.”
Joana Bértholo – Natureza Urbana
As “palmeiras andantes” são uma espécie de árvores que se deslocam do seu lugar à procura de solo e sol. Criam novas raízes junto às velhas que apodrecem fazendo com que o tronco se desloque até 20 metros por ano. Não foi por acaso que esta história foi partilhada por um grupo de mulheres imigrantes, que, como eu, estão na sua andança infinita à procura de uma terra e luz.
Estas árvores andantes não estão quietas. Estão numa caminhada constante à procura de si. Fazem pequenos passos até nunca chegarem. O seu lugar está sempre acontecendo, tal como as suas raízes que não o são. São, sim, árvores, apesar de não ficarem. Têm tronco, folhas e raiz, mas à sua maneira. Correm sem mexer num permanecer constante que voa. São a verdade inquieta que assimila a ficção.
Estes seres empurram no meu corpo muitas perguntas: quantas raízes velhas terão já apodrecido em mim? Quantos passos ainda serão necessários para sossegar a inquietação da árvore andante da minha existência? Que outras árvores hão de acontecer neste meu ser palestiniano? Haverá dentro do meu ventre também uma oliveira?
Poucos anos após a Nakba – a catástrofe de 1948, que resultou no apagamento de cerca de 530 vilas e aldeias palestinianas – a ocupação israelita plantou um pinhal europeu nas ruínas dos lugares que foram etnicamente limpos, escondendo assim a sua existência histórica. Estes pinheiros altos, inadequados ao clima e ao solo palestiniano, foram plantados como forma de integrar psicologicamente o colonizador sionista, dando ao lugar um caráter europeu. Estima-se que desde 1967, Israel tenha arrancado mais de 800.000 oliveiras, fazendo com que apenas 11% do território ocupado em 1948 – hoje Israel – contem espécies de árvores indígenas. Os pinheiros substituíram o carvalho que existia naturalmente nestas aldeias, as amendoeiras e as oliveiras plantadas pelo povo palestiniano.
Mas as oliveiras que existem em nós, resistem e regressam. Sempre.
Alguns destes pinheiros, plantados no escombro de olivais dividiram-se literalmente em dois, e no meio do seu tronco partido surgiram oliveiras desafiando as árvores colonizadoras plantadas em cima deles! Adormecidas estavam, mas regressaram para gritar bem alto: aqui havia uma vila palestiniana.
Talvez por isso, é que, em mim, o ramo de oliveira rasga a garganta para sempre dizer: palestiniana. O cato que há em mim, diz a mesma palavra.
Os catos são uma outra planta que faz renascer uma aldeia palestiniana nos olhos de quem encontra um aglomerado deles. Foram utilizados antes da ocupação para desenhar fronteiras entre terrenos. As casas desapareceram. Os catos ficaram. Assim os catos reescrevem a história palestiniana: por entre os seus picos, aparece a doçura dos seus figos da Índia. Há em mim picos e figos. Cato em árabe, sabr, quer dizer: paciência. É o que eu ganho com os catos que me atravessam. Uma paciência até ao dia em que a minha liberdade se tornará verde como eles. Voltarei a desenhar fronteiras apenas com plantas.
Ao lado do cato haverá sempre em mim, sempre em mim, sempre em mim uma amoreira. Foi ela que devolveu a memória. Cinquenta anos de exílio passaram, antes do regresso do meu tio Suleiman à sua vila natal. O seu retorno temporário foi permitido pelo seu colonizador com um carimbo de “visitante”. O meu tio não encontrou o caminho até a sua terra Al-Muzayri’a, apagada da sua existência. Perdeu o lugar e o lugar o perdeu. Estradas, colonatos, colonos e árvores que não são nada parecidos com ele. O seu mapa foi afogado. Caminhou até a nossa vila que dantes tinha a configuração de uma estrela, mas não encontrou a sua forma. Pensou que o seu regresso à história era em vão até que: uma amoreira.
Lá estava ela, em pé, precisamente no mesmo lugar onde a plantou em criança em frente da casa. Na sua solidão, estava ainda à sua espera. Era ela, sem dúvida com o seu tronco onde permanecia a mesma bala que há uma vida penetrou o seu tronco. O meu tio encontrou uma árvore como quem se encontra a si mesmo. Tocando-a acordaram as ruínas de uma aldeia que por muito esperou o seu regresso. Uma amoreira que ainda espera o meu regresso.
Perceber a árvore que há em mim é uma tarefa complicada, há raízes andantes no meu ser exatamente como aquela palmeira. Outras nunca mutantes, não desaparecem exatamente como a oliveira. Das minhas fronteiras faço o pico e o fruto do cato e da sombra de uma amoreira teço a minha memória. O meu corpo é o seu tronco. Uma palmeira andante, uma oliveira, um cato e uma amoreira. São os poemas escritos em mim.
- Sobre Shahd Wadi -
Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010). Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua.