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“A descolonização das mentes é algo extremamente necessário. Ainda hoje”, diz Ondjaki

A descolonização “não é uma data”, mas, sim, um “longo processo”, e a arte pode ter um papel relevante nessa transformação. Quem o diz é Ondjaki, cuja obra acaba de ser distinguida com o Prémio Vergílio Ferreira 2023, pelo seu contributo para que o português seja “língua de reconciliação”.

Texto de Isabel Patrício

Fotografia de Malba

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Poemas, contos, livros infantis, romances, peças de teatro. Nos cerca de 20 anos que se passaram desde a sua estreia, o escritor angolano Ondjaki tem experimentado vários géneros, servindo-se das memórias coletivas para dar um cunho autobiográfico às palavras que vão saindo da sua pena. Essa arte, diz, pode ter um papel importante na descolonização, mas defende que ainda falta reflexão, quer por parte dos países colonizadores, quer por parte dos países colonizados.

Nascido em Luanda, em 1977, Ondjaki – pseudónimo literário de Ndalu de Almeida – veio estudar Sociologia para a capital portuguesa, mas foi na escrita que encontrou a sua vocação. Hoje tem obras traduzidas em múltiplas línguas, como o francês, o inglês e o italiano, e distinguidas como diversos prémios, como o Prémio Saramago, em 2013, e mais recentemente o Prémio Vergílio Ferreira.

Em entrevista por escrito ao Gerador, Ondjaki conta como a escrita entrou na sua vida, o que lia quando era mais jovem, o que o alimenta hoje enquanto artista e que sonhos que ainda tem para concretizar. Garante que quer continuar a melhorar o seu trabalho, mas também ajudar a melhorar o dos outros. E afirma que, sobretudo, quer contribuir para que a cultura do continente africano seja reconhecida além fronteiras.

Nasceu em Luanda, mas veio estudar para Lisboa, onde se licenciou em sociologia. Neste percurso, onde, quando e de que modo entra a escrita? Foi algo que sempre esteve presente na sua vida?

A escrita chegou antes de ir para Portugal. Acho que a escrita vem porque, de repente, entra-se nesse vasto mundo das literaturas de ficção, e parece que faz sentido. Creio que também estar exposto à realidade angolana pode ter trazido ideias e ritmos.

Nos seus anos formativos, que autores lia e preferia? Porquê?

A razão não sei, lemos aquilo que nos atrai, que dialoga com o nosso mundo interior. Comecei pelos africanos, lidos nas escolas públicas em Angola. É muito forte a escrita de Luís Bernardo Honwana e de Manuel Rui, mesmo quando éramos crianças sentíamos isso. Aquela escrita estava relacionada com o nosso quotidiano de Luanda. Depois vieram os autores de contos latinos, mas também [Níkos] Kazantzaki, [Eugène] Ionesco, Sophia [de Mello Breyner] e outros nomes da poesia portuguesa.

E hoje esses gostos diferem? Que autores são os seus preferidos?

Hoje penso mais em livros do que em autores. Mas há autores aos quais é bom regressar: Erri de Luca, García Márquez, Afonso Cruz, Manoel de Barros, Luandino, Ruy Duarte, Paula Tavares, Conceição Evaristo, Conceição Lima. E o próprio Manuel Rui.

Aliás, o que o inspira? O que o alimenta enquanto artista? 

Sobretudo, as pessoas. É sempre perto desses olhares humanos ou dos seus comportamentos que nascem as ideias. Continuo a gostar de contos. E de contar. Mas tenho menos tempo para ler, infelizmente.

Sei que parte da sua escrita é autobiográfica. Que relação têm a realidade e a ficção? A primeira determina a segunda, sem que a segunda afete a primeira ou há algum laço simbiótico?

Creio que há uma certa paz no momento em que deixamos de nos preocupar com essa fronteira. Eu não faço emissão de verdades absolutas. Mas, para mim, não existe mais divisão. Vivo e assisto a coisas que me confirmam isso um pouco por todo o lado no continente africano. A realidade está cheia de ficção e é uma questão de perspetiva de como olhar ou como viver. No caso da minha escrita autobiográfica, ainda mais: trabalho com memórias coletivas que nem sempre são apenas minhas. São apenas também minhas. E estou em paz com isso.

Em cada tradução, vejo um pequeno milagre cultural. Os tradutores deveriam, claro, ser mais valorizados e bem mais pagos.

Ondjaki

Hoje está traduzido para múltiplas línguas. O que sente o autor ao ver as suas palavras transformadas e a chegarem, assim, mais longe?

Sinto que se devia traduzir e ler Ruy Duarte de Carvalho e Paula Tavares, em vez de outras coisas. Mas sobretudo, em cada tradução, vejo um pequeno milagre cultural. Os tradutores deveriam, claro, ser mais valorizados e bem mais pagos.

A sua experiência artística não se esgota, contudo, na escrita. O teatro e a pintura também fazem parte do seu currículo. Essas experiências impactam de alguma forma o modo como escreve e o que escolhe escrever? De que modo?

A escrita é a raiz de quase tudo o que faço atualmente. Já não faço teatro, como ator, há muitos anos. E até gostaria um dia destes de voltar a fazer. Com alguma calma e um ou uma encenadora que me ajudasse com as minhas limitações. Mas gosto de escrever para teatro e vou continuar a fazer materiais cinematográficos. 

Venceu o Prémio Literário Vergílio Ferreira. Que importância teve para si essa distinção?

Creio que é um prémio muito importante e, mais uma vez, com a contribuição do escritor que sou, fica o nome de Angola associado a algo positivo. Isso deixa-me feliz. Artistas como Kiluanji Kia Henda, e outros da nova geração de criadores angolanos estão a representar Angola com muita qualidade e dignidade. Isto é o mais importante.

Ela [língua portuguesa] está a ser reinventada todos os dias, pelo menos em Moçambique, Brasil e Angola. A língua vai sendo reinventada pelos povos, pelo uso diário, pela intervenção e modulação – uso intencional – que sofre

Ondjaki

Numa entrevista em reação a esse prémio, disse que a língua portuguesa não precisa de proteção, mas de manutenção, imaginação e reinvenção. De que modo pode uma língua ser reinventada?

Ela [língua portuguesa] está a ser reinventada todos os dias, pelo menos em Moçambique, Brasil e Angola. A língua vai sendo reinventada pelos povos, pelo uso diário, pela intervenção e modulação – uso intencional – que sofre. Mas há o acompanhamento que a Academia, os escritores, mas também os professores e as crianças fazem. Creio que é por aí. Com algum arejamento.

Falar na língua portuguesa (e da sua difusão) é também invocar, de certa forma, o passado colonial. Que papel pode ter a arte na descolonização?

A descolonização das mentes é algo extremamente necessário. Ainda hoje. Se articularmos a arte com outros propósitos, sejam académicos, sejam sociais, creio que estaremos no bom caminho. Dialogar, com todos os povos; com o povo de cada um; e dentro de nós. A descolonização vai levar tempo a ser reconhecida, por todos, como um processo. Não é uma data. É um longo processo.

A propósito, chegou a dizer que falta uma reflexão mais profunda sobre esse passado. O que está a impedir que se faça essa reflexão?

Esta é a pergunta que cada um de nós, e também cada um dos nossos países, se deve colocar. O que apontei, se não estou em erro, é que também os sistemas educativos de todos os nossos países devem adotar estratégias de reflexão em torno do passado colonial.

Portugal tem feito o suficiente para que essa reflexão aconteça ou tem de algum modo ignorado o passado e as suas responsabilidades?

Preferia que fossem autores e pensadores portugueses a responder a esta questão. Mas, na minha opinião, falta reflexão, sim. Por parte de todos os países colonizadores e igualmente por parte dos países colonizados.

Numa entrevista, referiu que a colonização é ainda vista como expansão e desenvolvimento. O problema começa nas escolas e no modo como a própria história é ensinada? O que poderia ser feito a esse respeito?

Propor conteúdos de ensino que fossem abrangentes no que toca aos mais diferentes aspetos do processo colonial. Não escamotear, não branquear erros históricos, não minimizar os processos de violência. E sobretudo não optar por dizer que a colonização x foi pior ou melhor que a colonização y

Hoje vive novamente em Angola, salvo erro. Porque decidiu voltar e que meio artístico encontrou?

Decidi voltar pelas mesmas razões que decidi sair: apenas razões pessoais. Não foram políticas nem financeiras. Encontro um meio artístico muito vivo em Luanda, e dentro desse meio, e com outros camaradas artistas, estamos a tentar desenvolver esforços para que a cultura saia também das fronteiras de Luanda.

O que está para sair? Que objetivos tem por e para cumprir, enquanto artista?

Vai sair agora pelo Teatro Nacional Dona Maria II uma pequena peça de teatro, que escrevi como parte do projeto PANOS, um projeto cultural que é preciso elogiar. Digo isto porque abrange muitas escolas e trabalha o teatro. Infelizmente, no mundo, estamos quase a esquecer o papel fundamental do teatro e da poesia. Por isso, valorizo, busco ajudar, busco divulgar toda e qualquer instituição que trabalhe com teatro e ou poesia. Enquanto artista, quero melhorar o meu trabalho; ajudar no trabalho dos outros; e contribuir para que a cultura do continente africano seja reconhecida pelo seu valor e qualidade. Há muita gente, no continente africano, felizmente, a trabalhar nesta direção. Isso também me deixa feliz.

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