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A “Travessia” de refugiadas, mães solteiras, até chegar a Portugal. Na primeira pessoa

Ajor, Hiba, Wasan, Saidia, Salwa e Blessing atravessaram continentes, desertos, mares e fronteiras, até chegarem…

Texto de Flavia Brito

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Ajor, Hiba, Wasan, Saidia, Salwa e Blessing atravessaram continentes, desertos, mares e fronteiras, até chegarem a Portugal. Vieram do Iraque, da Nigéria, do Sudão e do Sudão do Sul. Fugiram da guerra, e não só. “Travessia” é o podcast e livro que conta as suas histórias, na primeira pessoa.

Falámos com Maria de Azevedo Brito e Rose Dekker, as responsáveis por este que é o primeiro projeto da Ambigular, em Portugal, uma organização que trabalha técnicas de storytelling com comunidades em situação de exclusão social e cultural, de forma a cocriar, com essas comunidades, produtos para criar “uma representação mais justa”.

“Por um lado, lidamos com os preconceitos e estereótipos sobre as pessoas e, por outro lado, ao contar e partilhar as suas histórias, elas sentem-se mais incluídas na sociedade, e a sua narrativa torna-se parte da narrativa do país.” Porque, como estas pessoas, “não estão tão presentes ou representadas nestes media, é mais fácil de se gerar preconceitos e de se alimentar preconceitos.”

Gerador – Percebemos, dos excertos que já partilharam, que as razões que levam estas mulheres a fugir dos seus países são diferentes. Podem-nos falar um pouco disso?

Maria de Azevedo Brito (M. A. B.) – As razões não são todas bastante diferentes, algumas são diferentes. Temos casos de pessoas que fugiram da guerra, que é o caso das três mulheres do Sudão. Depois temos o caso da Blessing, que vem da Nigéria, e que se viu de repente numa situação muito precária, após a morte do pai. O pai era a fonte de sustento da família, a mãe não era capaz de a sustentar a ela e às irmãs, e a partir daí a vida dela mudou muito e chegou a um ponto em que sentiu vontade de ajudar a ela e à família. Quando alguém a abordou e perguntou se ela queria ir para a Europa, ela resolveu aceitar e fez aquela rota. Primeiro, foi da Nigéria para o Níger, depois para a Líbia, atravessou o mediterrâneo, e, depois, esperou num campo de refugiados, em Itália, para vir para Portugal. A história dela é um bocado diferente das outras, por esse motivo.

Rose Dekker (R. D.) – Mas, além da história dela em particular, é mais a questão da guerra, ou de se encontrarem numa situação muito pouco segura. No geral, é uma situação pessoal, devido a guerra, ou, por exemplo, devido a razões religiosas. Não é seguro para a pessoa permanecer no seu país. Simplesmente não é possível para sobreviver. É mais seguro partirem, porque existe uma ameaça à sua segurança no país de origem.

M. A. B. – Nem todas eram mães, na altura em que abandonaram o país, mas, no caso das que já tinham filhos, havia o desejo muito forte de os protegerem, de os levarem para um lugar onde eles pudessem ter uma vida normal e não viver durante a guerra, ou sob o risco da guerra.

G. – O que é mais surpreendente nestas histórias?

R.D. – Para mim, é o peso e intensidade das histórias. Por um lado, não é “surpreendente”, porque se sabe o que se passa, mas, mesmo assim, ao ouvir estas histórias e ao conhecer estas mulheres, é pesado, é mesmo muito. Felizmente, para mim, são situações inimagináveis. É muito pesado e intenso. Não foi muito “surpreendente”, mas fui atingida por estas histórias.

M. A. B. – “Surpreendente” talvez não seja a palavra indicada. Não sei se terá alguma coisa realmente surpreendente, mas algo que, logo, me chamou muito a atenção é a coragem e a força destas mulheres e como elas não são só pessoas a quem aconteceram uma série de coisas e que estão aqui. Não. Elas tomaram decisões muito difíceis e com imensa coragem para chegar até aqui.

R. D. – Agora, ao pensar um bocado mais nisso, são também as dificuldades por que elas passam por serem mulheres, durante o caminho, ao fazerem esta viagem, e todas as coisas têm de passar, porque são todas mulheres. Sim, torna tudo mais difícil. Mas, como a Maria disse, é uma demonstração de coragem, e este instinto de protegerem as suas crianças, a vontade de as levar para um lugar seguro.

M. A. B. – Eu trabalhei com pessoas refugiadas, no passado, e fiz projetos de storytelling, mas a verdade é que nunca fiz um programa só com mulheres. E, realmente, nota-se que, apesar de terem vindo de países diferentes, de terem passado por situações diferentes e terem abandonado os países por razões diferentes, o facto de serem mulheres traduz-se numa série de situações que todas elas partilham. E todas elas passaram por situações, por serem mulheres, ao longo do seu percurso. Isso é algo que não tinha reparado tanto em grupos onde não estava a trabalhar só com mulheres.

G. – É diferente, ou ainda mais difícil, ser-se uma mulher refugiada?

M. A. B. – Elas estão expostas a muito mais violência.

R. D. – É difícil dizer se uma coisa é mais difícil que outra, porque qualquer uma das situações é incrivelmente difícil. Mas acho que existem situações que acontecem a mulheres que não acontecem tanto a homens, isso sim.

M. A. B. – A verdade é que todas elas, de uma maneira ou de outra, tinham situações de violência de género e violência sexual, ao longo do seu percurso, que é algo que eu nunca tinha ouvido tanto noutros grupos.  Muitas delas tiveram de abandonar o seu país… Por exemplo, no caso da Blessing, porque o pai morreu. O caso da Hiba, do Iraque, o facto de o pai ter morrido e do marido a ter abandonado,  isso colocou-a numa situação muito vulnerável. Ou o caso da Ajor, que, quando decidiu proteger os seus filhos, no Sudão, teve de ir contra a família toda e abandoná-la, porque a família não iria seguir a vontade de uma mulher. Ou seja, só o facto de ela decidir ir embora e proteger os filhos não significaria que a família a iria seguir a ela. Portanto, ela teve de abandonar e fugir da sua família. Há aqui uma série de situações que elas têm em comum, não só por serem refugiadas, mas mais até por serem mulheres.

R. D. – [Mais difícil] Em termos de violência contra elas e violência sexual, que acho que é menos comum entre refugiados masculinos. Pelo facto de as mulheres, em muitos países, não serem independentes ou encorajadas a serem independentes – poder decidir “quero ir-me embora” e “não posso ficar mais aqui" –, acho que talvez seja mais difícil. Porque não há qualquer apoio da família. De todo. Ninguém lhes diz “escolhe um futuro para ti própria”, toda a gente diz “mas, tu és mulher”.

M. A. B. – Claro que notamos aqui esta semelhança, mas isto são experiências individuais, e também algo que nos interessa neste trabalho é, precisamente, mostrar a experiência individual.

G. – Quais foram os principais obstáculos que estes refugiados enfrentaram na sua integração em Portugal, ou em Braga?

M. A. B. – Bem, quase todas chegaram recentemente a Portugal, e a pandemia tem sido aquilo que mais mencionam como obstáculo. Durante muitos anos, estavam à procura desta vida normal e, quando estavam a começar a tê-la, ou seja, quando os filhos estavam a começar a ir à escola, de repente, isso foi interrompido. Acho que é uma dificuldade, de repente, terem a vida suspensa, já depois, de tantas vezes, isso ter acontecido. Esta era a altura em que a vida delas ia recomeçar e que os filhos iam ter uma vida normal. Acho que existe essa dificuldade de, com o confinamento, ser mais difícil recomeçar uma vida. É mais difícil aprenderem a língua, começarem a trabalhar, de os filhos se integrarem mais na escola, porque acabam por passar mais tempo em casa… Não poso dizer que são as maiores dificuldades, mas são estas as dificuldades que elas mais expressam.

R. D. – Acho que ainda é difícil dizer, porque foram postas a viver num país que está em confinamento. Portanto, é uma situação difícil para toda a gente. Não sei se o processo de integração começou sequer, porque tem estado tudo tão fechado ainda.

G. – Como é que contar estas histórias pode contribuir para uma mudança social?

M. A. B. – Acho que, por um lado, pode contribuir para uma mudança na perspetiva das pessoas. Pode contribuir para a desconstrução de preconceitos e, com isso, derrubar algumas barreiras que são criadas por esses preconceitos. Barreiras no emprego, na escola, até no espaço público. Essa é uma das razões destas sessões, para que Portugal continue a acolher mais pessoas e que se criem mais estruturas para o acolhimento também.

Esperamos também que, em termos de mudança social, o facto de elas estarem a partilhar as suas histórias traga algo de libertador e que, ao mesmo tempo, ganhem mais perspetivas, para além das suas histórias.

R. D. – Para além de poderem contar as suas histórias e de se sentirem mais empoderadas por isso, que outras mulheres e refugiados com histórias parecidas – claro que nem sempre as mesmas histórias, mas com um percurso semelhante – não se sintam sozinhos neste país. Eles não estão sozinhos neste tipo de histórias, e existe um espaço que pode ser muito poderoso: ver alguém que esteve, numa situação semelhante, representado assim nos media convencionais. Acho que pode ser muito importante para promover um sentimento de pertença.

G. – Os media desempenham um papel importante na maneira como estas mulheres e os refugiados são percecionados?

M. A. B. – Acho que têm um papel, sim. Acho que é importante termos mais histórias e termos uma narrativa em que as pessoas são só o sujeito dessas narrativas, mas são também detentoras dessas narrativas. Porque, se as pessoas não forem detentoras das suas narrativas – como nós não passamos pelas mesmas experiências, porque temos uma vida diferente, uma identidade diferente – vai ser, se calhar, a nossa perspetiva e não a dessas pessoas que estará ali.

R. D. – Há duas grandes formas pelas quais pensamos que isto pode ajudar: uma é mudando a opinião das pessoas que ouvem este podcast sem estarem nesta situação, outra é as pessoas que participam sentirem-se mais incluídas.  Esperamos que essas duas coisas juntas tenham um grande impacto, em acabar com o sentimento de preconceito e, esperamos, o sentimento de exclusão que estas pessoas sentem.

M. A. B. – Que é real. Não é só um sentimento. É importante criar estes espaços de inclusão que podem, muitas vezes, começar por incluir estas narrativas nas nossas narrativas.

R. D. – Muitas vezes, sentimos que colocamos o problema nas pessoas, ao dizer “elas que não estão integrados”. O que estamos a tentar fazer é mudar um bocado a perspetiva da sociedade. Nós precisamos de mudar também. Acontece o mesmo problema com outras formas de exclusão e discriminação. Não são necessariamente as pessoas que são descriminadas que têm de mudar para se integrarem na sociedade, mas é também a sociedade que tem de melhorar para que haja espaço para essas pessoas existirem.

M. A. B. – Exato. Criar este espaço. Partilhar este espaço, talvez seja a melhor forma de dizer.

Texto por Flávia Brito

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