A quinta edição do Festival Política arranca amanhã, 22 de abril, no Cinema São Jorge, em Lisboa, e também online. Durante quatro dias, as “Fronteiras” serão debatidas – não só as físicas, mas também as psicológicas e políticas, que se apresentam como entraves à inclusão das pessoas no território ou na comunidade. São elas o fio condutor de cerca de vinte atividades gratuitas, de várias formas de expressão política e artística, que vão de debates, a performances, sessões de cinema, espetáculos, conversas e workshops.
Os destaques recaem sobre três propostas desenvolvidas especialmente para esta edição: o stand-up sobre racismo e direitos humanos do humorista Carlos Pereira; o solo do encenador, dramaturgo, cenógrafo e intérprete André Murraças, “Fronteiras”; o espetáculo de “Homens que são como fronteiras invadidas”, de Valério Romão e José Anjos, uma reflexão sobre os limites que a pandemia nos veio impor a título pessoal. Mas há muito mais.
Este ano, serão exibidos 18 filmes, que retratam realidades tão diferentes como as fronteiras da cidade de Lisboa, os conflitos sociais que atravessam a Europa, a ascensão dos nacionalismos e as migrações. Há workshops, que, pela primeira vez, decorrem online, como a sessão dedicada à participação cidadã na democracia ou o workshop de escrita criativa, que tem por base a Enciclopédia dos Migrantes, livro que reúne 400 cartas, e que é a base e origem do espetáculo Foguete de Emergência, de Paloma Fernández Sobrino. De regresso à programação está também o Cara-a-Cara com Deputados, encontro entre cidadãos e deputados representantes dos partidos eleitos para a Assembleia da República, que, devido à Covid-19, se realiza via videoconferência.
Como nos explica Bárbara Rosa, um das diretoras artísticas, o Festival Política mantém, desde a primeira edição, o compromisso de levantar questões que convidam à discussão e consciencialização cívica, individual e colectiva, com o propósito de “fomentar uma cidadania participativa construtiva”, assente “nos valores democráticos”, “todos aqueles que combatem, ou que não permitem, as discriminações”.
Gerador (G.) – Por que escolheram este tema, “Fronteiras”, para este ano?
Bárbara Rosa (B. R.) – A escolha foi óbvia, infelizmente. Aliás, vai ser um tema sempre pertinente nos próximos anos. Não é alheio a esta crise migratória e à resposta insuficiente que a Europa tem dado a este fenómeno de ver pessoas a fugirem das suas vidas infernais e de miséria extrema e tentarem, aqui, ganhar alguma dignidade no território – que, pelos vistos, nem sempre está disponível para as acolher – e tendo em conta as imagens que nos assolam constantemente. Aquele Mediterrâneo parece que está a ser transformado, já há algum tempo, num cemitério. Foi assim que despoletou este tema, mas, vendo bem, no festival falamos sempre dessas fronteiras, porque as fronteiras não têm de ser só, não são infelizmente só, as fronteiras territoriais. Temos fronteiras políticas, ou seja, que são vertidas pelas políticas públicas, na medida em que parece que não tratam de forma adequada os mais vulneráveis, e também temos fronteiras psicológicas, que todo o cidadão – ou a maior parte, ou grande parte, ou uma parte deles – tem em relação aos outros, e que se expressa através das discriminações várias que todos assistimos e que alguns, ou muitos, sentem no quotidiano.
O Festival Política é um festival que pretende fomentar uma cidadania participativa construtiva, e construtiva no sentido de defender e pretender contribuir para reforçar os valores democráticos. Os valores democráticos, resumindo, para nós, são todos aqueles que combatem, ou que não permitem, as discriminações, e isso é um núcleo que temos em todas as edições. O Festival Política acontece desde 2017, em Lisboa. Há dois anos levámo-lo para outras cidades, e estamos agora em Lisboa e em Braga – já no ano passado estivemos em Braga também e há dois anos. No fundo, temos um tema anual, mas temos sempre o nosso coração naquilo a que achamos que não podemos ficar indiferentes, em nome de uma sociedade mais justa e mais igual, que, no fundo, quando falamos de democracia é disso que temos de falar.


G. – A pandemia veio evidenciar estas fronteiras?
B. R. – Claro. Todas as crises. A pandemia é uma crise sanitária com consequências económicas, mas, antes de ter consequências económicas, é uma crise sanitária e, como todas as crises, expõe as fragilidades do sistema, agudiza as fragilidades das pessoas que são mais vulneráveis e, sim, esta pandemia, vem infelizmente contribuir para aumentar o fosso, ou a desigualdade, que, nomeadamente, em Portugal, já existia há muito tempo, antes de todas as crises a que vamos assistindo. Esta pandemia só veio evidenciar isso, infelizmente, e agravar.
G. – Falaste na questão da participação construtiva, que assenta em valores democráticos. Vivemos atualmente numa sociedade, em que, muitas vezes, há muita participação, mas esta participação, às vezes, é quase tóxica. O principal propósito do festival é este mesmo, de discutir estas questões na sociedade civil, de forma construtiva?
B. R. – Claro que sim. Aliás, o nome Festival Política, que não é nada atrativo, é repelente para muitos, e levámos algum tempo a tentar que as pessoas percebessem – a primeira e a segunda edição foi esse o nosso trabalho – que não era um festival de nenhum partido, porque temos uma sociedade em que ainda associa muito a política aos partidos, e esse é um dos nossos défices.
Temos um défice de participação cívica, e nós fizemos este festival, porque temos como pressuposto que todo o cidadão é um agente político. Nós somos detentores de direitos e deveres, direitos e deveres civis, políticos e sociais, só por aí todos nós temos um papel, aliás, obrigam-nos a pagar impostos, portanto, fazemos parte do Estado, mesmo aqueles que não pagam. Todo o ser humano tem direitos que são alineáveis e que devem ser protegidos e defendidos pelo Estado de Direito, que não discrimine e, por isso, entendemos que a cidadania, este “ser político” do ser humano não se deve limitar, não se pode limitar, ao voto.
Todos nós temos um papel construtivo no dia-a-dia e, cada vez mais, com as redes sociais, temos um papel que podemos escolher qual é, se é construtivo ou destrutivo, se é tóxico. Há muita toxicidade, sim. As redes sociais ampliam, no fundo, aquilo que as pessoas sentem e pensam e, efetivamente, não é alheio o facto de assistirmos em Portugal e na Europa, mas, em Portugal, que agora é isso que nos interessa, a fenómenos de movimentos e até de um partido que, muito com base num discurso de ódio e de erguer muros entre as pessoas, ou entre certos grupos de pessoas, empodera indiretamente este ódio nas redes e até nos cafés. Não vou a cafés, porque a pandemia não deixa, mas, passando na rua, ouvimos já uma verbalização de, se calhar, pensamentos que sempre lá estiveram, mas que não sentiam à vontade para o expressar. Temos tido algumas manifestações de ódio extremo, como a morte daquele ator Bruno Candé. Se calhar não há coincidências, se calhar, se fosse há cinco anos, aconteciam uns insultos, como acontecem mais frequentemente do que uma pessoa imagina. Mas se calhar também acontecia, portanto, a ideia aqui é incitar à reflexão e, passo a presunção, mostrar um bocadinho qual é o caminho, ou qual é o caminho para o qual não devemos ir, e depois aí, claro, cada um tem a liberdade de escolher qual é o caminho que quer caminhar, mas numa sociedade mais justa. Nós, pelo menos, pretendemos não fazer parte do problema. É para isso que o Festival Política pretende contribuir.
G. – Como é que acham que as expressões artísticas podem contribuir para esta aproximação, ou reaproximação, das pessoas à política?
B. R. – A arte tem esse papel fabuloso de interpelar consciências, de uma forma atrativa, dentro das suas mais variadas formas artísticas. Por isso é que tentamos ter o máximo de expressões artísticas disponíveis, porque é uma forma, a arte é um instrumento de educação, passo a expressão, de formação, porque interpela consciências e obriga-nos a pensar. Essa é a principal função da arte, interpelarmos o pensamento, incitarmo-nos ao pensamento, portanto, entendemos que a arte aqui é um ótimo veículo para incitar essa reflexão política. Ao mostrarmos um filme – que é cinema, é uma forma de expressão artística – que seja de um minuto, a falar sobre discriminação, ou uma mulher que retrata um exemplo de discriminação de género, estamos, sem debates, sem conversa, sem nada, a incitar a essa reflexão, àquela condição daquela pessoa. A música igualmente. A poesia, como vai estar vertida no Valério e no Miguel Ângelo. O próprio humor, repara, introduzimos o humor há três anos, porque, para nós, no fundo, é um bocado “tudo é política”, política a partir do momento em que pensas na tua dimensão enquanto cidadão, enquanto ser, com direitos e deveres. Mas a arte tem sempre essa função, ou esse papel fantástico, ou essa capacidade de atrair, como não tens numa conversa, numa entrevista. Foi por isso que enveredamos por este caminho, porque senão seríamos mais um, quer dizer, “debates há muitos”, “conversas há muitas”.
A arte pode e deve ter uma mensagem política, e estas bolsas [artísticas jovens] são criadas para incitar, para promover a criação artística, que não seja só de entretenimento – nada contra e adoramos todos –, mas que também tenha uma mensagem. E, cada vez mais, com este mundo, que já percebemos, quer da pandemia, quer antes, com a crise migratória, com as discriminações que existem, várias, o racismo, discriminação de género, da própria orientação sexual… Isto é um trabalho quotidiano que vamos fazer e a arte aqui deve ser um instrumento útil para isso.
G. – O Festival Política, quando foi criado inicialmente, e penso que mantém essa linha, definia como um dos principais objetivos aproximar a população, principalmente, mais jovem da política. Sentem que é uma população mais afastada, mais desligada, por algum motivo, da política?
B. R. – Bem, os estudos assim o dizem. Nós não o sentimos no festival, exatamente, por esta programação incidir muito nas expressões artísticas. Não sei se a pandemia também afastou pessoas mais velhas. Atenção que somos um festival e vimos isso na inscrição para os deputados há três anos, o mais novo tinha 11 ou 12 anos e a mais velha tinha 70 e muitos. Isso é altamente gratificante para nós, o objetivo então está cumprido. Mas, no ano passado, percebemos que temos um público eminentemente jovem e, sim, inicialmente definimos logo, porque segundo estudos, como estava a dizer, o grupo que mais se abstém – vamos ver a taxa participativa eleitoral, voto, votante, eleições – é o grupo dos 18 aos 25 anos, é o maior grupo abstencionista. Depois muda um bocado o seu comportamento, começam a ter outras preocupações, claro, é a Segurança Social a pagar, é toda uma série de questões que lhes faz pensar. Mas isto é preocupante. É preocupante porque é o futuro. O que se faz hoje, o que se aprova hoje, aqueles que são eleitos hoje, quem vai sofrer maior impacto disso são os jovens de hoje, portanto, é um bocado paradoxal que isso aconteça e que eles se abstenham.
Mas compreendo, por motivos vários, somos uma sociedade que não fomenta isso nas próprias escolas. Os programas não fomentam, o próprio poder político com o seu discurso é um bocado repelente e, por isso, há aqui todo um trabalho a fazer e, sim, essa é uma faixa etária… Até porque eles não são o futuro, eles são o presente. Basta pensar no Brexit. São os que menos votaram e são os que mais sofrem, aliás, são os que mais usufruem da Europa e são os que mais vão sofrer e estão a sofrer com o facto de não fazerem parte do projeto da União Europeia. Isso é preocupante, por isso é que nós tentamos, temos esse alvo, porque precisamos de jovens e de cidadãos, de forma geral, pelo menos, com as “bitolas” afinadas dos valores democráticos. Pelo menos isso. Depois para onde vão não nos interessa, mas que garantam que isto não vai descambar mais do que tem descambado.