Há anos que já não pisava o chão de Tomar. Dos meus caminhos regulares entre Coimbra e Lisboa, raramente faço paragens. Sou filha de uma terra e divido-me entre esta mãe e uma outra adoptiva - Lisboa. E raramente há meios termos. Mas porque é no meio que está a virtude, aceitei o convite dos Caminhos e deixei-me levar na rota dos Caminhos da Pedra.
Assim que chego a Tomar e me vou aproximando do centro, ouço o som de fundo da música: é a música das festas de Santa Iria. Mas quem foi Iria?
Conta a lenda que nasceu em Nabância (Tomar) uma jovem bela e muito inteligente que cedo sentiu a vocação religiosa e por isso foi viver para um mosteiro. O príncipe da região, Britaldo, ao conhecê-la ficou perdidamente apaixonado por ela. Iria, sempre fiel à sua vocação, pediu que Britaldo a esquecesse. O príncipe acedeu ao seu pedido, mas fê-la jurar que nunca pertenceria a nenhum outro homem. Sabendo desta história, o monge director espiritual de Iria fica com ciúmes e dá uma poção a Iria que a engravida. Ao saber da sua gravidez, Britaldo manda apunhalar Iria e o seu corpo é atirado ao rio Nabão. Reza a história, que o corpo se manteve intacto até ser encontrado, mais tarde, nas areias do Tejo. Agora, todos os anos e pela procissão em honra de Santa Iria, crianças e adultos deitam pétalas de flores ao Rio Nabão.
Até pode parecer que esta história não importa nada. Mas já explico mais à frente. Então, chegada à residencial onde ia dormir, parecia que me tinha transportado para outro tempo. O chão de madeira e o mobiliário antigo fizeram-me sentir como se tivesse chegado a casa.
Jantámos e fomos até ao Complexo Cultural da Levada. Aquele espaço, que em tempos tinha sido um lagar, transformou-se no palco que Lula Pena tomou como capitã de uma viagem tão doce como o açúcar. “Não correm risco nenhum, eu é que corro. Tento construir pontes entre as coisas. Só vos tenho a desejar boa viagem e levar-vos a bom porto”, confidenciou-nos Lula. E assim fomos numa viagem: de Espanha para o Brasil, até França ou Itália – são tantos os idiomas, mas sempre quentes, sempre como se fosse em casa. Foi impossível não nos deixarmos levar. A noite cerrou, e nós com ela. Passei pelos lençóis que estavam a secar no terraço e fui dormir.
O sábado começou com o percurso sonoro “Iria”. Da autoria de Tiago Correia, que nasceu em Tomar e que vive hoje no porto, Iria é uma história que ouvimos ao mesmo tempo que percorremos a mata dos Sete Montes. Inspirada da lenda de Santa Iria (eu disse que explicava mais à frente), conta-nos de uma rapariga que regressa a Tomar depois de 15 anos a viver fora. A acção passa-se no percurso que fazemos e mesmo sem vermos, sentimos aquelas personagens e toda a acção à nossa volta. Nesta viagem, temos uma experiência que entra em relação directa com o lugar. O percurso terminou na charolinha de uma forma tão intensa que todos precisamos de uns segundos para respirar no final.
Saímos da mata, pegámos no carro e fomos em direcção ao Sardoal, onde almoçámos aquelas que devem ser umas das melhores pataniscas do mundo. À tarde o Teatro Instável trouxe-nos Catabrisa: uma história com um jogo de sombras complexo que encanta qualquer criança mas também incapaz de deixar qualquer adulto indiferente. A curiosidade e a descoberta são o mote desta performance: quem diria que, numa tenda montada nas instalações dos Bombeiros Municipais do Sardoal, se podia ganhar tanto mundo e que a imaginação nos poderia levar tão longe quanto nos levou Filipe Caldeira.
Regressámos a Tomar para para vermos Mulier, da companhia espanhola Maduixa. Um espectáculo de dança quase tão forte na música como na expressão das 5 mulheres que invadiram a Praça da República de andas nos pés. Elas trouxeram-nos uma narrativa sobre a libertação da opressão da mulher, que ganhou ainda mais intensidade com o cenário da praça: nenhum dos transeuntes ficou indiferente ao espetáculo das 5 mulheres.
O dia seguinte começou com uma das surpresas mais deliciosas da programação do Caminhos: lembram-se do Bicho Papão ou do Homem do Saco? Pois é! Como eles há mais uma mão cheia destes bichos que os nossos avós usavam para nos fazerem portar bem. Nuno Matos Valente pegou nestas histórias e compilou-as no livro “Histórias do Bestiário Português”. A manhã de domingo trouxe-nos a história e interpretação de Maria Gancha: o monstro que vivia nos poços e que atacava as crianças que se aproximavam muito deles. Nesta edição, foram várias as personagens do bestiário que andaram por Tomar, Ferreira do Zêzere e Entroncamento.
Regressámos ao Sardoal para o percurso de Ana Bento. Pedra a pedra, fomos seguindo caminho com Ana, como guia: “se vocês repararem todas as pedras contam histórias”, diz-nos Ana. E assim começa a visita com o Senhor Joaquim, que nos conta as histórias do tempo da primeira grande guerra”. Passamos a rua com chão de pedra, pedras que eram chamadas de pedras da tortura.
Mais à frente Ana conta-nos a história da fonte da vila que tem duas lajes: conta-se que uma guarda ouro e outra a peste. Um dia, um rapaz apaixonou-se por uma menina rica e para conseguir que ela ficasse com ele, levantou as lajes. O que aconteceu depois? Ana diz-nos: perguntem às pessoas que encontrarem! Eu não vos direi!
Mas eu conto, parece que depois do rapaz destapar uma das lajes viu que não havia lá nada. Ao levantar a outra encontrou o ouro, que tirou da fonte. Ninguém sabe se ele casou ou não com a rapariga. Mas depois de ter retirado o tesouro da fonte, o Sardoal foi invadido por uma onda de doenças e zaragatas. Ao saber que o rapaz tinha retirado o conteúdo das lajes, o povo obrigou a colocar tudo, de novo, na fonte. E aí a vila voltou a ser o que era.
Depois de mais algumas histórias e versos de Ricardo Reis cantados – “Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas”, Ana encerra a visita: “há quem diga que o Sardoal não se chama Sardoal por causa dos sardões. Há quem diga que é segredo e os segredos não se contam”.
A minha viagem acabou e fiquei com a sensação que segredo bem guardado de Portugal são os Caminhos do Médio Tejo. Foi um fim de semana com os olhos abertos para o mundo, mas sem tirar os pés do chão que nos fez. Esta programação gratuita dividida em dois fins de semana, três vezes por ano, traz aos 13 concelhos desta região não só artistas internacionais como também trabalhos e autores que preservam a memória desta nossa geografia.
O programa vai continuar no próximo ano, nos 13 concelhos. E nós esperamos estar lá para ver. Podes saber mais sobre os Caminhos do Médio Tejo aqui.