A Clara chegou pontualmente às 12h30. Enquanto esperava que eu encontrasse a chave do escritório, olhou pela janela e disse: “isto agora são só indianos. É impressionante. Está a ficar impossível”. Não fosse o facto de ser amiga da Clara desde os oito anos – e já terem passado alguns desde que ambas festejámos o 40o aniversário – e talvez tivesse inventado que a chave se encontrava em parte incerta e que, sem poder fechar o escritório, o almoço teria que ser cancelado. Porque o que é impressionante, na verdade, é a enxurrada de comentários ignorantes que todos os dias ouço e leio. E isso, sim, está a ficar impossível.
André Ventura, por favor, estás a arruinar a minha vida social. Nos últimos seis meses, as sementes que foste plantando desde que trocaste o Benfica pela Assembleia da República estão a crescer avassaladoramente entre pessoas “comuns”. Chamo-lhes “comuns” por não saber outra forma de qualificar amigas, colegas ou familiares que (mais à direita que eu, é certo, mas ninguém com a cabeça rapada) passaram a proferir comentários racistas e xenófobos como quem diz “prefiro esparguete a fusilli”: com naturalidade, sem um pingo que seja de vergonha e, o pior de tudo, com propriedade. E sabes, André, não há nada que me irrite mais do que pessoas que falam com propriedade sobre assuntos que desconhecem. Pessoas que te ouvem em looping na televisão a vociferar impropérios fáceis de decorar, meia dúzia de chavões simplórios, e repetem- nos como se fossem especialistas.
André, André... De cada vez que alguém que gosto diz “o gajo é doido. Mas até tem razão em algumas coisas” morre um golfinho. E morro eu, de bocadinho em bocadinho, desesperançada, cada vez com menos ar para respirar. É isso que me fazes, André. Tiras-me oxigénio de cada vez que falas.
Na semana que escrevo estas linhas, imigrantes foram atacados no Porto, André. Tão perto de onde vivo com a minha família, bandidos que levam a sério o que propagas (ódio e estupidez) espancaram pessoas imigrantes na sua própria casa, invadindo-a aos pontapés. Entendes porque sou intolerante com intolerantes? Porque não sei o que mais poderei fazer para travar o mundo em que me queres obrigar a viver: violento, ignorante, inseguro para quem já está tão frágil, para quem já se subjuga tanto.
Sabes, de cada vez que passo por pessoas magrebinas ou indostânicas olho-as bem nos olhos e sorrio-lhes. Devem achar que sou doida, com certeza. Mas, de que outra forma poderei “dizer-lhes” que não votei em ti, que o teu partido, para mim, é inconstitucional, que todas são bem-vindas, que lamento tanto, mas tanto o que os meus concidadãos e concidadãs estão a fazer-lhes?
André, tenho a confessar-te que os meus almoços têm sido solitários. Não quero deixar de ser amiga da Clara, que não vê noticiários porque “são só desgraças”, não ouve podcasts sobre a atualidade política porque não tem tempo e não lê jornais porque, afinal, quem lê?
A Clara é mãe solteira de três adolescentes. E quando digo solteira o que quero realmente dizer é que os filhos veem o progenitor de seis em seis meses, com sorte. Ou azar, depende da perspetiva. Obviamente que a fonte da atualidade da Clara é a “Bilbia mt engarsada” quando, à noite, se atira para o sofá estourada. De meme em meme, a Clara vai fazendo scroll down e é aí que tu entras em campo, André, porque o algoritmo adora-te, não é? Seja no Instagram, no Tik Tok, no YouTube ou no Facebook, não há forma de a Clara te ignorar. Há quem diga que a qualidade (aka impertinência) dos teus vídeos é o motivo para se tornarem virais. Mas não é verdade. A imagem é péssima e as edições são uma anedota. Pagando (e não é pouco), qualquer conteúdo nas redes sociais se torna viral. E a pobre da Clara, cansada de sustentar quatro pessoas sozinha, de fazer almoços e jantares, de passar a ferro, aspirar e pôr duas máquinas de roupa e uma de loiça a trabalhar, dá de caras contigo. Ei, André, calma, não te regozijes já: a Clara nunca votou em ti. Mas, de almoço em almoço, sinto-a mais longe de mim. Um comentário xenófobo aqui, uma palavra racista ali e a amizade de 35 anos começa a esfriar e eu respondo aos convites da Clara para almoçar com “hoje não posso, tenho trabalho atrasado”.
André, estás a tornar a vida um bocadinho insuportável, sabes?
O meu tio Quim combateu na guerra colonial. Matou e viu matar. Sempre o soube racista, mas um certo pudor fazia-o demonstrar o preconceito sob a forma de anedotas. Depois do cumprimento oficial nos encontros de família, sem falhar, lá vinha: “primaça (é assim que me trata), já sabes aquela do preto...” E ria-se. Ria-se muito. Eu não achava piada às anedotas, mas as suas gargalhadas, como um gaiato que sabe que disse um palavrão e não devia, sempre foram capazes de me arrastar com elas.
Hoje, não consigo estar com o meu tio Quim. As anedotas continuam a ser contadas, mas em vez de virem acompanhadas pelas suas gargalhadas sonoras, têm como companhia comentários racistas, mesquinhos, insolentes, ignorantes. O meu tio já não tem pudor em ser descaradamente racista. E a culpa é tua, André. Tu legitimaste o racismo. E ao fazê-lo, tornaste desesperadora a vida de quem o rejeita, de quem o condena.
Tu, os 49 elementos que levaste para a Assembleia e, mais recentemente, a caricatura de candidato que escolheste para o Parlamento Europeu, conseguem provocar-me ansiedade severa todos os dias. Não me agrada nada ser dramática, acredita, mas tu e a grupeta que te segue metem-me medo. Medo porque ninguém sabe como agarrar a tua popularidade e despejá-la na sanita. Organizam-se fóruns, mesas de debate e palestras e, da direita à esquerda, não há quem conheça os ingredientes do antídoto que faça desaparecer as sementes que plantaste e que estão a dar tantos frutos podres.
Gostas de memes, André? Conheces aquele do Toy? Não? Uma criança pede-lhe, no meio de uma festa onde o Toy cantava: “cala-te só um bocadinho...” Por favor, André, cala-te só um bocadinho.