Existem cada vez mais ativistas climáticos e / ou ambientais dispostos a serem detidos, presos, e, especialmente em áreas do mundo como a América Latina, onde são mais assassinados, a arriscarem a sua própria vida pela causa. É uma questão de liberdade – pois afinal, se ser livre é não ter medo, porque é que estou aterrorizada?
Eis uma citação de um indígena anónimo, de um artigo sobre os desafios pelos quais a sua comunidade passa face à crise climática: “Os inuítes são as pessoas do gelo ártico. Como poderemos ser as pessoas do gelo ártico sem o gelo?”. Esta frase é poderosa pois expressa a perda de conhecimentos e histórias de populações profundamente ligadas ao seu ambiente: a perda das condições materiais leva à perda de sentidos de identidade.
Como ter liberdade para sermos quem somos sem os nossos lugares de memória, com a nossa cultura a arder ou derreter, e com os nosso próprio corpo a ter os seus limites físicos ultrapassados?
Era Agosto de 2023 quando após um dia superior a 40ºC liguei ao 112 pela primeira vez, num ataque de pânico diferente dos normais (Fraqueza, suor excessivo...). Não adormecia por estar calor e a casa da minha avó não tinha boas condições nem para os “antigos” verões. Passei duas horas a gritar na sala de espera do hospital, e num momento precisei de cadeira de rodas. Quando fui atendida e após a prescrição, o médico disse-me “É meter ar condicionado”. Existe uma expressão facial para a emoção “pobreza energética”? Nesse dia, era para ter ido ao Museu do Neorrealismo com alguém. A nova realidade obrigou-me a ir ao hospital. No meu Alentejo (zona rural do distrito de Beja) a água torna-se mais escassa. A fonte onde ia à água na minha infância perdeu qualidade e passámos a ter de comprar garrafões. A horta da família requer mais rega. As galinhas dão menos ovos (efeito do calor), e nas ondas mais intensas as mais velhinhas chegam a morrer. Eu luto pelas minhas galinhas.
Talvez o ultimo parágrafo tenha sido uma tentativa de me humanizar enquanto ativista, num mundo onde em cada aviso, grito de palavras de ordem, manifestação, ou ação de desobediência civil, me sinto cada vez mais desumanizada, como se não tivesse uma experiência de vida e leituras sobre teoria de mudança em movimentos sociais que informam a minha crença nas táticas que uso e na necessidade de parar a normalidade.
Por vezes na comunicação sobre crise climática é difícil fazer a ponte entre a perceção de uma pessoa menos informada que poderá pensar que isto se resolve a apanhar lixo ou a plantar árvores (importante mas insuficiente), e entre a ideia da crise climática como uma emergência de desestabilização planetária com pontos de não retorno e como agente multiplicador de problemas já existentes (ambientais, sociais...) que nos condicionam. Os conflitos e guerras por recursos, e consequentes crises políticas, não estão no horizonte – já chegaram ontem. A guerra na Síria, não pretendendo varrer contextos sociais para debaixo do tapete, foi também fermentada por uma seca, um evento extremo que sabemos vir a surgir em maior número e intensidade em vários pontos do globo. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados, num artigo sobre migrações e crise climática, em 2022 os perigos ligados a eventos extremos pontuais obrigaram à deslocação de pelo menos 32 milhões de pessoas e dizem ser mais complexo quantificar quantas pessoas no planeta já deixaram e terão de deixar as suas terras devido à fome induzida por questões como a acidificação dos oceanos e consequente perda de espécies, ou solos menos férteis. A maior necessidade de recursos para colmatar estas consequências, coloca, no geral, o sul global e comunidades mais sistemicamente empobrecidas, como as indígenas, numa posição cada vez mais frágil. Voltemos ao gelo. Durante muitos anos, em discursos mais populares sobre Clima, falou-se na perda do gelo como material enquanto “as pessoas do gelo” eram esquecidas (quanto muito, mostravam ursos polares). Esta mentalidade de herança colonial é um dos pilares que nos trouxe ao caos que vivemos.
Todas as crises e lutas do planeta estão ligadas – se o ativismo não é interseccional, perdemos tudo – numa época de escassez de recursos, existirão cada vez mais pessoas a criar bodes expiatórios em minorias ou a delegar o problema para populações mais marginalizadas ou menos ouvidas (minas). A justiça climática tem que passar, necessariamente, por lutas como o anti-racismo, até porque a desumanização das pessoas que mais têm sofrido contribuiu para o atraso da consciência desta emergência. Grupos ativistas informados são necessariamente anti-fascistas e lutam em todas as frentes. Não faltam exemplos: Tal explica o Climaximo ter estado frente a frente a arriscar violência policial na manifestação contra o ajuntamento neo nazi no 3 de Fevereiro, a presença e discurso por justiça racial da Extinction Rebellion na manifestação anti-racista dia 24 do mesmo mês, ou as lutas mais interseccionais da Greve Climatica Estudantil, da habitação ao transfeminismo. Por isto, tendemos a acreditar que grupos como associações e ONGs ambientalistas que usam a via da sensibilização ou negociação com empresas e governos, serão sempre, não descurando a importância de algumas iniciativas, insuficientes por si só - é necessária uma frente combativa das mentalidades do sistema que nos trouxe aqui.
Acredito que sistemas são mais sustentados por mentalidades do que vice versa (embora num ciclo vicioso). Assim, é necessário cultivar uma consciência global como terreno fértil para as soluções que propomos e que ainda estamos por descobrir. Consciência global pois nada é verdadeiramente nacional. Respiramos ar que nasce nos vários oceanos, pó que vem do Saara, e micro-plásticos americanos. Se isto não nos une para semearmos canções no vento e lutar por continuarmos a ser quem somos, para manter as nossas culturas, não nos tornarmos ‘refugiados climáticos’ e para derrubar o fascismo, qual será a nossa esperança?
No mundo do ativismo existe uma cultura de transformação de raivas e tristezas em ações. Este texto foi uma ação.
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