Do olhar incauto de Oliveira, à câmara transportável de Campos e à visão poética de Reis e Cordeiro, o cinema documental português é um espelho do passado que se transportou para a contemporaneidade. Na época em que a distinção entre ficção e documentário é cada vez mais discutida, quisemos aprofundar o nosso olhar sobre o segundo formato, que tem tido uma contínua importância e presença no retrato das realidades portuguesas.
Nos dias que correm, e talvez mais do que nunca, falar de cinema implica o debate acerca da sua própria definição. A par da evolução da sociedade, as categorias cinematográficas com que estamos familiarizados dissolvem-se. No universo das imagens em movimento, este esbater de fronteiras pode parecer cada vez mais evidente do ponto de vista dos criadores, mas sê-lo-á aos olhos dos espectadores? Facto é que, não só para a fruição de cinema, mas também para a sua produção e distribuição, estas convenções ainda prevalecem.
Reflexo disso é a forma como ao longo do último século se foi olhando para a ficção e o documentário como polos opostos dentro da mesma família. A ideia de documentar o real surge associada a uma noção de responsabilidade cívica da construção de um imaginário coletivo. Desta forma, almeja-se que um documentário surja como um espelho da diversidade de acontecimentos e da forma como estes nos podem impactar. Além disso, o documentário tem tido uma importância para o cinema português sobre a qual nos propomos a refletir.
A tímida descoberta do cinema em Portugal
Quando em 1896, Aurélio Paz dos Reis pega numa câmara para filmar Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, num claro piscar de olho aos primeiros registos dos irmãos Lumière, nada o fazia prever o poderoso ato simbólico que ali inaugurava. Mais tarde, este gesto ganha força com Manuel Maria da Costa Veiga que filma, de acordo com Manuel Faria de Almeida no seu livro Cinema Documental: História, Estética e Técnica Cinematográfica (1982), o primeiro documentário português: Aspectos da Praia de Cascais (1899), onde se via o Rei D. Carlos na praia e em visita ao Sporting Club. Seria também Costa Veiga a fundar a primeira produtora a que chamou de Portugal Filmes, sendo de acordo com Luís de Pina, em A Aventura do Cinema Português (1977), que «a ele pertencem as imagens de um país timidamente descoberto para o cinema».
No início do século, o documentário torna-se num formato estabelecido com novos autores. Em 1922, Robert J. Flaherty filma Nanouk – O Esquimó, comummente assinalado como o primeiro documentário dentro duma estrutura reconhecida do género. A este se seguiram os filmes de Dziga Vertov ou Walter Ruttmann. Em Portugal, à tradição iniciada por Costa Veiga, que durante anos continuou a filmar acontecimentos do quotidiano português, é já na década de 30 que, com José Leitão de Barros, o documentário nacional tem a sua afirmação com o filme Nazaré, Praia de Pescadores (1929), seguido de Maria do Mar (1930), que inaugurava em território nacional uma outra categoria, a chamada docuficção.
A estes filmes sucedem-se diversas produções ao longo da década, destacando-se o aparecimento de um jovem cineasta, natural do Porto, que filma Douro, Faina Fluvial (1931). De seu nome Manoel de Oliveira, tornar-se-ia num dos mais icónicos realizadores portugueses e, por sua vez, o cinema documental assumia uma presença vincada no panorama cinematográfico nacional.
Ao caráter etnográfico – referente aos filmes que retratam o povo e seus costumes –, aqui lançado por estes cineastas, juntar-se-ia também a tradição do cinema propagandístico ao serviço do Estado Novo e dos filmes industriais, que de acordo com Paulo Miguel Martins, professor universitário e autor de diversos livros sobre cinema, «é o tipo de documentário que procura retratar processos de fabrico, onde também se veem representadas as relações laborais» – como é exemplo o filme O Pão (1959), de Manoel de Oliveira.
Do Novo Cinema à geração de Abril: uma mudança de paradigma
Nos anos 60, com a chegada do movimento do Novo Cinema, aparecem nomes como António Reis e Margarida Cordeiro, António Campos, Alberto Seixas Santos ou Fernando Lopes. Este último, com Belarmino (1964), que, segundo Luís Mendonça, investigador cinema e cofundador do site À pala de Walsh, «é um objeto lapidar de uma dada realidade social e política» com influências do movimento da Nouvelle Vague em França. É a partir desta vaga que se assiste a um movimento vanguardista e disruptivo de uma tradição cinematográfica, mudando-a indubitavelmente.
Sob a alçada deste grupo mais vasto de cineastas, é criado, em 1969, o Centro Português de Cinema (CPC), cooperativa ancorada pela Fundação Calouste Gulbenkian que, desta forma, passava a apoiar produções cinematográficas de autores nacionais numa clara mudança de paradigma. «O CPC foi a forma como alguns cineastas se conseguiram unir e arranjar forma através dessa cooperativa para poderem financiar os seus filmes», sustenta Raquel Rato, investigadora da Universidade Nova de Lisboa, destacando este momento como o início de um sistema de apoios para o cinema português.
À dimensão etnográfica, que se vai aliando pontualmente à ficção, criando a etnoficção, e ao cinema propagandístico e industrial doutros tempos, o 25 de Abril de 1974 abre espaço para uma nova abordagem no cinema documental, reflexo da situação política e social que a revolução gerara. Assim, e até aos anos 80, foram muitas as produções de filmes, hoje considerados de intervenção. João Sousa Cardoso, artista e docente português, chama-lhe mesmo «um cinema de vocação militante, ideológico e de cartilha», que à época dominou o panorama cinematográfico e deixaria um lastro que se mantém presente no documentário contemporâneo.
Uma vaga de cineastas de olhar renovado
Mais recentemente, a partir dos anos 90, o documentário em Portugal volta a ganhar ímpeto à boleia de novos realizadores e pelo incremento de apoios estatais. Em 1999, a Cinemateca Portuguesa dedica um ciclo a esta nova geração, a que chamou «O Novo Documentário em Portugal». Foram mostradas cerca de 20 obras, de autores como Pedro Sena Nunes, Catarina Mourão, Manuel Mozos, Catarina Alves Costa e Graça Castanheira.
É por via deste conjunto diversificado que começam a despontar temas que não estavam tão patentes no cinema português. O pós-colonialismo, aliado a uma reflexão sobre a memória coletiva, o desenvolvimento da etnografia para a questão das migrações, são apenas alguns horizontes que aqui se anunciam. Pelas mãos deste grupo de cineastas surge também em 1998 a Apordoc – Associação pelo Documentário que, através de «um trabalho associativo muito forte», abre caminho para um olhar renovado sobre o documentário português, refere Catarina Alves Costa.
Esse novo caminho reflete-se num aumento de apoios financeiros, no advento de festivais dedicados ao formato, assim como na conceção do documentário numa visão mais ampla que se assume com um caráter autoral, largando as amarras de uma visão pedagógica ou meramente política, sentida no pós-revolução.
Já em pleno século xxi, este novo rumo deu lugar à profusão de novas abordagens. A biografia, o trabalho sobre a memória pessoal ou coletiva – muitas vezes com recurso ao arquivo –, bem como a uma crescente hibridez do próprio género, em que a ficção e o documentário se fundem, levantando novas questões cimentadas por este trabalho contínuo. É neste sentido que João Sousa Cardoso olha para o documentário como «um território indomado, inclassificável, onde cabem os objetos que estão muito próximos da pulsação da vida e podem ter algo que vem da ficção, mas não ficam presos a esse género».
Assim, cineastas como Miguel Gonçalves Mendes, Cláudia Varejão, João Salaviza, João Pedro Plácido, Leonor Teles ou Paulo Carneiro ocupam hoje um espaço mais amplo, sem fronteiras limitadoras, que ainda assim mantêm nos seus filmes o comprometimento e a pertinência de enquadrar os tempos em que vivemos. É perante este cenário que, mesmo numa época onde as definições parecem ter menos relevância, o conceito de John Grierson, que vê a prática documental como «o tratamento criativo da atualidade», continua a encontrar ligação com os fundamentos originários deste cinema.
Documentário, cinema do real?
«O documentário puro não existe, tal como a ficção pura também não existe. É importante lembrarmo-nos disso: de que há sempre alguém por detrás de uma câmara. Que ela não dispara sozinha, que ela não escolhe o ângulo para ver e dar a ver o mundo», Luís Mendonça.
«Todo o cinema é espelho do real e da ficção. O cinema é o espelho da vida. E a vida é una, não se pode separar. É na realidade que encontramos a fantasia. Mas é também na fantasia que encontramos o real. O cinema é a linguagem do olhar, da procura daquilo que aparentemente não se vê», Cláudia Varejão.
«O que acho interessante é que o documentário não é um género, pode ser um território; uma espécie de território da alteridade. Acho que pode ser essa poética, em que há formas híbridas, onde formatos e meios de produção standard não têm lugar e por isso chega a qualquer coisa mais próxima do real», João Sousa Cardoso.
«A relação do cinema com o real é um ponto de partida, não de chegada», Edgar Pêra.
Portugal, um país de câmara na mão
Muito se pode perspetivar acerca do lugar que a câmara ocupa na hora de filmar. Em diferentes épocas, a visão sobre o papel do cinema documental divergiu em função da realidade vivida. Se no Novo Cinema português se tentou romper com a vertente propagandística e mostrar o país “real”, também no documentário mais recente se reflete sobre a nossa identidade coletiva.
Como uma arma ou simplesmente como um espelho, ambas as formas conduzem para uma reflexão mais introspetiva do cinema documental português, que como diz Luís Mendonça se pode traçar entre os filmes «Acto de Primavera (1962), de Manoel de Oliveira, e o No Quarto da Vanda (2000), de Pedro Costa». «Esta dimensão artesanal, esta vocação para um trabalho com as pessoas, se não mesmo um trabalho para com as pessoas, é notável no nosso cinema», sublinha.
Catarina Alves Costa completa a ideia identificando essas pessoas – o «povo português» –, como o grande tema do documentário nacional, nas suas várias vertentes: «uma é estritamente etnográfica, que tem que ver com os costumes, as romarias, numa espécie de documentário de arquivo científico. Depois, diria que há uma vertente documental, que é o caso do Campos. Há uma vertente poética, que é o caso do Reis, em que a matéria é a mesma, mas transpõe um imaginário medieval de um tempo cíclico. Outro olhar, diria que é o revolucionário, mas a matéria é sempre o povo.»
Porém, embora Catarina reconheça a existência de um cinema independente forte em Portugal, considera que o mesmo não se reflete no documentário. Já Dario Oliveira, diretor do Porto/Post/Doc, acredita que «o cinema documental português está numa fase de grande afirmação e reformulação do que pode ser».
Com ou sem essa reformulação em curso, o cofundador de À pala de Walsh reconhece hoje um maior alinhamento com os temas universais, ainda que «eventualmente o tal grande tema seja, muito simplesmente, Portugal. Para onde vamos? Quem nos salva do nosso destino? Entra aqui o fatalismo, o fado, a amargura de viver ou a dor de pensar, como diria Pessoa».
Festivais: o espaço privilegiado para a circulação de filmes
A existência de um filme está ancorada na perceção de um duplo movimento compreendido entre o criador e os espectadores. Assim, uma das etapas fundamentais do circuito cinematográfico é o momento em que ele é partilhado com o outro, criando a oportunidade de conhecer uma realidade retratada, mas também a de encontrarmos os nossos ecos do outro lado do espelho. Nesse sentido, os festivais de cinema continuam a ser o espaço privilegiado para a circulação de filmes, inclusive de documentários, onde se apresentam a públicos heterogéneos e há a expetativa do reconhecimento e possível migração dos mesmos para as salas de cinema ou televisão.
Com, pelo menos, 20 festivais de cinema em Portugal, existem três que se destacam pela atenção dada ao formato do documentário: o Doclisboa, organizado pela Apordoc, o Porto/Post/Doc, e o MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço, organizado pela associação Ao Norte.
A Apordoc surge com o objetivo de promover o reconhecimento do documentário em Portugal. A proposta de trabalhar esta valorização incide quer na «sociedade em geral», quer pelos «apoios públicos que apenas abrangiam filmes de ficção e a televisão não tinha nenhuma política em relação a isso», sustenta a sua direção. No seio da sua atividade, assinalam-se três grandes núcleos de ação – Doclisboa, Lisbon Docs e Docs Kingdom – que assumem um papel importante para que o «cinema documental seja apoiado, reconhecido e promovido».
Já no Norte do país, inaugurado em 2014, o Porto/Post/Doc propõe-se a tratar o «cinema do real», em que não se fala só da realidade, mas também «do story telling, da forma de contar, sendo que a realidade pode ser imaginada, vivida ou sonhada», clarifica Dario Oliveira. O responsável salienta ainda a importância do público destes festivais que se carateriza por ter o «documentário como ponto de partida e de chegada».
Também o MDOC privilegia a sua programação no documentário, uma vez que em Melgaço existe o Museu do Cinema Jean Loup Passek, «considerado o segundo maior arquivo privado de cinema existente na Europa, sendo que o festival seria uma maneira de chamar à atenção a este património», partilha Carlos Viana, o diretor. Nesta linha, a associação Ao Norte tem feito um trabalho prolongado nas áreas da formação e da produção de filmes.
Das salas de cinema aos cineclubes
Sendo os festivais um palco de descoberta de muitos filmes, Dario defende que, embora o cinema possa ser visto em casa, «deve ser sobretudo visto na partilha de uma sala escura, num contexto como existe no Cinema Trindade, no Passos Manuel e nos próprios festivais», no caso do Porto. Desta feita, para além dos festivais, é importante relembrar a existência de salas de cinema com uma programação atenta ao formato de documentário e à produção nacional. Em Portugal, existem cerca de 97 salas de cinema, de acordo com a filmspot.pt, algumas das quais integram uma programação que inclui o documentário de forma regular.
Outra dimensão de relevo é a existência de uma rede de cineclubes. A Fundação Portuguesa de Cineclubes (FPCC), fundada em 1978, é a estrutura representativa dos Cineclubes Portugueses, assim como a sua representante legal nacional e internacionalmente. Com uma rede que conta com cerca de 31 cineclubes em território nacional, a FPCC promove ações de promoção da cultura cinematográfica, ações de formação, seminários e apoios à criação de novos cineclubes. A existência destes espaços, segundo Daniel Ribas, professor universitário, «permite que um conjunto de pessoas se encontre e possa discutir filmes». «É uma comunidade presencial que, no meu entender, continuará a fazer sentido, tanto como espaço de partilha, como espaço para exibição e divulgação de cinematografias menores, que não têm espaço nas plataformas de streaming», acrescenta.
Outro organismo relevante, inclusive pelo seu extenso arquivo, é a Cinemateca Portuguesa, tutelada pelo Ministério da Cultura, cuja missão é salvaguardar e divulgar o património cinematográfico. No entanto, no que concerne a disponibilidade de arquivos, João Sousa Cardoso defende que «o arquivo seja vivo, seja trabalhável por diferentes pessoas, em diferentes lugares, por profissionais ou não; que o acesso aos arquivos seja muito mais amplo e não uma espécie de tesouro que vive em segredo, limitado a um grupo de iniciados». «O património arquivista», defende, «não pode ser uma arma de poder que vive do sigilo, do segredo ou do acesso limitado».
Aprender a treinar o olhar — o ensino do documentário
«Como se ensina o documentário português?» Já em 2010, a publicação do Panorama – 4.ª Mostra do Documentário Português abordava a presença deste formato no ensino em Portugal. Na sua introdução, a cineasta e programadora Inês Sapeta Dias realçava o incremento das «ações de formação dedicadas ao cinema, e ao documentário particularmente», tratado sob diversas formas: artística, técnica ou teórica.
Num retrato que passa, obrigatoriamente, pelas licenciaturas em cinema, pelos cursos de artes ou de ciências sociais e até pelas escolas profissionais ou de cursos livres, o documentário faz hoje parte de um léxico mais aberto ao cruzamento de diferentes áreas. No entanto, existem exemplos específicos deste universo no qual o documentário é o foco principal.
É o caso do Instituto Politécnico de Tomar (IPT) que, em 2008, deu início à licenciatura em Cinema Documental, «no sentido de colmatar a inexistência de um curso superior que incidisse especificamente no documentário», explica João Luz, docente e coordenador do mesmo. Ao nível da sua estrutura, o curso consiste numa «predominância da reflexão teórica e da aplicação de metodologia próprias de um modo cinematográfico que veio romper convenções e questionar modelos de produção instituídos», acrescenta.
A perspetiva agradou a Patrícia Neves Gomes, jovem natural do Porto, que depois de ter estudado Comunicação Audiovisual na Escola Artística de Soares dos Reis, optou por este curso que decorre em Abrantes. A formação anterior motivou-lhe o interesse pelo documentário, não tanto pelo processo técnico deste formato, mas pela reflexão inerente do que é «produzires uma imagem e na relação que estabelece com a pessoa que filmas», conta.
O curso, com uma abordagem teórica inicial – em áreas como a antropologia ou a história da arte –, deu-lhe ferramentas para pensar no documental como um formato em que «tens de trabalhar com aquilo que tens à frente, em vez de criares o contexto e a oportunidade de filmares, que é o caso da ficção».
O curso de licenciatura do IPT é o único em Portugal centrado apenas no cinema documental. De forma genérica, o documentário aparece também representado na oferta curricular dos cursos em cinema, como acontece na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, ou na Universidade da Beira Interior, na Covilhã.
Na Universidade Lusófona de Lisboa, a oferta formativa em termos de cinema num regime de licenciatura, deu lugar à criação do mestrado de Realização para Cinema Documental, que, entretanto, se fundou num curso do mesmo regime, mas de caráter internacional, o Doc Nomads – Documentary Film Direction. A partir deste último, a Lusófona juntou-se a outras duas instituições, uma na Bélgica e outra na Hungria.
Victor Candeias, diretor do mestrado Doc Nomads, conta que o «projeto original deste curso não surge por acaso, uma vez que este tipo de cinema tem vivido um bom momento ao longo dos últimos 15 anos». «O documentário esteve durante algum tempo na sombra da ficção, relegado para a televisão, sendo que o aumento do número de produções é um sinal da sua relevância acrescida», aponta.
O diretor ressalva ainda o facto de muitos cineastas iniciarem o seu percurso pelo documentário, «onde as estruturas de produção e financiamento são bastante diferentes, não querendo com isso dizer que se trata de uma linguagem mais fácil».
É nas formações livres ou de caráter técnico-profissional que o formato tem ganhado mais espaço. Em Lisboa, foi criado, em 2012, o KINO-DOC, que conta atualmente com dois cursos: o de Documentário e o Avançado de Documentário. Desde junho passado, existem ainda oficinas de Super 8, como contributo para «manter viva a cultura do analógico».
«São cursos que propõem uma passagem por todo o processo cinematográfico no desenvolvimento de um filme próprio, uma curta no 1.º curso e uma média ou longa-metragem no 2.º», afirma Jorge Carvalho, diretor e docente do KINO-DOC.
Para uma perspetiva atual sobre o ensino do cinema em Portugal, é necessário falar-se do documentário com uma presença relevante e natural que tem dado frutos no olhar de novos autores.
Documentário, o parente pobre do cinema nos apoios?
A temática dos apoios no cinema tem sido, ao longo dos anos, um tema trazido para cima da mesa, quer por cineastas, quer por produtores. Em Portugal, o modelo estatal tem contribuído, no entanto, para um sistema de apoio que abrange diferentes áreas: Novos Talentos e Primeiras Obras, Audiovisual, Multimédia e Cinema (Escrita e Desenvolvimento, Produção, Coprodução, Inovação), Internacionalização, Exibição e Formação de Públicos nas Escolas.
O ICA é um instituto público criado em 1971 com o objetivo de legislar e apoiar as atividades cinematográficas e do audiovisual em Portugal. Ao longo dos anos tem sido reformulado, sob diferentes nomenclaturas, e adquire a atual em 2007.
A criação de uma secção de apoio ao documentário surge nos anos 90, tendo-se apoiado um primeiro filme no ano de 1992 – Madeira, de José F. Asseisseiro. Atualmente, os apoios do ICA para o cinema documental podem chegar, nas longas-metragens, até aos 90 mil euros, sendo que na ficção estão tabelados até um máximo de 600 mil euros. A discrepância dos tetos orçamentais nas duas categorias é, desde há anos, um tema de discussão entre criadores.
De acordo com dados do ICA, enviados ao Gerador, os montantes totais de apoio têm vindo a aumentar gradualmente: 17 654 000 em 2014 para 20 600 000 em 2019. «As leis que regulam as atividades cinematográficas têm sido melhoradas, mas há ainda um grande trabalho a fazer. Apenas os profissionais envolvidos têm plena consciência do subfinanciamento em que são obrigados a trabalhar e dos problemas de distribuição existentes», refere a Apordoc.
Dados disponibilizados pelo ICA a partir de 1990
Ano |
Documentários apoiados |
N.º total de filmes apoiados |
1990-2003 |
92 |
377 |
*2014 |
10 |
27 |
2019 |
18 |
62 |
*Este ano foi escolhido por ser o que sucede os anos de crise em que houve, inclusive, a suspensão dos apoios do ICA no ano de 2012, ficando conhecido como «ano zero». O ano de 2014 assinala a data em que a «Lei do Cinema» (Lei n.º 28/2014) foi alterada, passando a incluir a criação duma taxa de subscrição sobre os operadores de serviço de televisão por subscrição, com vista a aumentar a receita do ICA.
Da parte dos realizadores é consensual a perspetiva de que existe uma «discrepância clara» entre orçamentos, assim como uma predileção pela ficção. «A aposta no documentário é francamente residual, e tenho muita pena que isso aconteça», advoga Miguel Gonçalves Mendes. Também Cláudia Varejão refere que «não faz qualquer tipo de sentido a décalage» entre apoios e que os seus últimos filmes só têm sido finalizados graças às coproduções internacionais.
Os aspetos técnicos e a apreciação sobre os custos dos mesmos são, aliás, um dos pontos centrais deste debate. Sobre isso a Apordoc defende inclusive que «os filmes documentais quase sempre precisam de mais tempo de edição, mais horas de tratamento sonoro ou de ajustes de cor e, portanto, de mais apoio. Os materiais de arquivo são geralmente muito caros, e não há razão para uma história real precisar de menos música do que uma ficcional. Com o desenvolvimento, pesquisa e escrita passa-se o mesmo».
Numa outra perspetiva, Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema, considera que «os apoios do ICA já são interessantes e significativos», propondo ainda a existência de «um sistema paralelo de financiamento em termos de investimentos privados» para o cinema, independentemente da categoria. Pedro Fernandes Duarte, fundador e produtor da Primeira Idade, contrapõe sublinhando que «o problema não está na desproporção, mas em não haver dinheiro suficiente» para o setor.
A voz de Leonor Teles acrescenta a este debate uma possível solução: «O que deveria acontecer era haver uma adequação dos meios ao tipo de projeto. Ou seja, perceber o filme que se tem em mãos, independentemente da categoria, e ver se o dinheiro chega, se é suficiente, e se é possível fazer o filme com esse montante.»
Como um possível complemento ou alternativa aos apoios do Estado têm surgido concursos por parte de outras instituições que visam o apoio ao cinema e ao audiovisual, nomeadamente a Europa Criativa, o Instituto Camões, o IndieLisboa e o Ibermedia, entre outros. Sobre a discrepância nos apoios entre documentário e ficção, o ICA, contactado pelo Gerador, não prestou declarações.
O (tão intenso) agora, aos olhos dos autores de hoje
A necessidade de documentar o real remete-nos para o princípio da história da humanidade. Através de diversos recursos que se vão alterando, e alguns deles mantendo, a posição voyeurística de quem nos circunda e de nós mesmos vai surgindo com a construção do eu e do outro. Para João Sousa Cardoso, pensar a história do cinema hoje é falar «num arco de tempo muitíssimo ambicioso», no qual cabem «as gravuras do Paleolítico, que são já imagem animada, que se via à luz intermitente das tochas».
Foi esse impulso de documentar o «agora» e, naturalmente mais tarde, refletir o que está para trás, que levou cineastas a optarem pelo documentário como formato. Rui Simões é um dos casos em que a intenção de filmar a realidade de uma época falou mais alto, ao ponto de regressar da Bélgica para Portugal. «Pela minha parte, eu sabia que tinha essa missão, sendo realizador como é que eu não ia filmar uma revolução que estava a acontecer no meu país? Era ridículo não o fazer. É aí que nasce o Deus, Pátria e Autoridade, que estreia em 1976 e acaba por ter um sucesso gigante», conta o realizador.
O caminho até ao documentário nem sempre é o mais óbvio. No caso de Catarina Alves Costa, o cinema vem de um legado transmitido pelo avô, Henrique Alves Costa, cinéfilo do Porto, mas só mais tarde começa a ser visto como opção para um futuro. Depois da licenciatura em Antropologia segue para Londres com uma bolsa da Gulbenkian para continuar a estudar esta área e cinema, dois universos que até lá não pensou que pudessem andar de mão dada, e depara-se com uma «forte vaga de filme etnográfico como ferramenta da antropologia», de onde traz «uma hipervalorização da ética» que se reflete nos seus filmes.
Não muito distante de Alves Costa está Miguel Gonçalves Mendes, com formação inicial em História, cujo primeiro filme documental, Autografia – Um Retrato de Mário Cesariny, já fazia prever a sensibilidade para ouvir e filmar o outro. Esse é, na verdade, um dos maiores desafios ao criar um enquadramento do real: perceber os limites. «Não podemos forçar a barra ao ponto de podermos perder completamente a nossa personagem. Ao filmar, estou a criar uma relação de confiança em que aquela pessoa sabe que não lhe quero mal, sobretudo quando vivemos num mundo de manipulação e em que podemos destruir a imagem de alguém em cinco minutos. É preciso respeitarmos muito quem temos à nossa frente», partilha.
Tanto para Miguel Gonçalves Mendes como para Edgar Pêra, o documentário pressupõe de um retrato completo das personagens ou dos acontecimentos, com uma pluralidade de ângulos que permitam ao espectador tirar as suas conclusões. Edgar Pêra, que se olha enquanto arquivista de imagens, sublinha que o mais importante «numa boa estética», para si, «é que inclua vários pontos de vista e que haja ambiguidade suficiente para que as pessoas não saibam propriamente aquilo que o realizador pensa sobre o assunto».
Se o documentário é sempre um olhar sobre o real, prende-se naturalmente a ideia de representação de quem entra na narrativa escolhida por quem a conta. Leonor Teles explica que não se trata propriamente «de a pessoa se sentir representada», mas de se rever na representação. «Acho que não se pode dizer que a pessoa é 200 por cento ela, mas se gosta de se ver e sente que aquilo é um retrato justo, para mim é muito importante».
A cineasta premiada com o Urso de Ouro no Berlinale em 2016 com Balada de um Batráquio sente que a vontade de contar histórias reais é «uma caraterística de diversos filmes portugueses». «Tu encontras alguém, apaixonas-te por essa pessoa de certa maneira e tens vontade de fazer um filme com ela. Faz-te sentir que tens de estar com esse alguém, filmá-lo e partilhar isso com ele; construir algo juntos.»
Com um leque de temas cada vez mais vasto, que pode ir criando rimas com o legado deixado por Manoel de Oliveira, por António Reis e Margarida Cordeiro, António Pedro Vasconcelos ou até por Pedro Costa, as histórias chegam aos cineastas das mais variadas formas. No caso de Cláudia Varejão surgem como «peças de um puzzle». «Os filmes são peças que encaixo aqui e acolá nesse puzzle maior de interesses e inquietações. São ideias que surgem a partir de uma soma de movimentos, como procurar saber mais sobre determinado tema, ou olhar recorrentemente para o mesmo tipo de imagem, ler livros que se completam uns aos outros», explica. «Os filmes e as obras de arte em geral são os fósseis que ficam dos nossos pensamentos e experiências.»
Rui Simões filma há cerca de quarenta anos e, ao olhar para trás, nota que o «arrumaram numa prateleira do cinema militante» e o «silenciaram». Ainda assim, olha para o documentário que se faz hoje pelas novas gerações com agrado. «Há muitas linguagens diferentes, muitos territórios inovadores na forma de abordar os assuntos. A Cláudia Varejão ou o João Salaviza são exemplos. A narrativa e a forma abriram territórios que antes eram inimagináveis, e hoje há uma cultura do documentário.»
Produtoras e produtores: a responsabilidade de fazer acontecer
É pela força das novas gerações que têm surgido produtoras em cena, como a Terra Treme, Uma Pedra no Sapato, a JumpCut ou a já referida Primeira Idade. Pedro Fernandes Duarte, produtor desta última, explica que a necessidade de abrir uma produtora surge em 2014, num momento em que «havia outras instituídas no meio, mas que não tinham abertura quer para novos realizadores, quer para aqueles que pelo seu nome ou por falta de currículo não tivessem investimento».
Pedro refere que ser produtor hoje é ter uma manta de retalhos para resolver, que passa por «tratar de faturas, fazer recados» e dedicar-se a tarefas que nem sempre caberiam à produção. «Um produtor hoje é alguém que está a servir de carne para canhão, que o Estado usa como saco de pancada e acusa de o filme não estar a ser distribuído».
Uma outra figura que não é desconhecida no meio cinematográfico português é Abel Chaves Ribeiro, fundador do Bazar do Video e sócio-gerente da OPTEC Filmes. Produtor de cineastas como Pedro Cabeleira, Pedro Costa, João Dias e Tiago Pereira, conta já com um percurso de décadas, no qual foi ajudando a lançar filmes reconhecidos dos últimos vinte anos – de Genesis Encore Cascais 75 (2005), de João Dias, a Vitalina Varela (2019), de Pedro Costa.
Para Chaves Ribeiro, «um produtor tem a função fundamental de assegurar que as coisas possam acontecer». «Normalmente, tenho uma noção muito real e sei quais as ferramentas necessárias para atingir os objetivos», acrescenta. Para isso contribui o sentido crítico que lhe é natural e que se reflete na forma como fala com orgulho dos filmes que produziu.
Entre o passado e o presente, nas vozes de cineastas, produtores e investigadores, existe hoje a confirmação de um cinema documental plenamente coerente com o avanço dos tempos. Mais do que isso, ao longo das últimas décadas e à boleia de uma nova geração de criadores, a marca do documentário tem-se mostrado mais aberta, com a adaptabilidade necessária a um terreno cada vez mais difícil de classificar e onde cresce de dia para dia a democratização do acesso ao audiovisual.
A noção de tempo, tão importante para o documentário, altera-se a uma velocidade difícil de acompanhar, dificultando o distanciamento de que – sempre – precisamos para olhar o nosso tempo. Quem sabe se no cinema documental estará a ferramenta de que precisamos para ir construindo o futuro.
Com a próxima Revista Gerador à espreita e para te aguçar a curiosidade, partilhamos a reportagem "Cinema documental português: um olhar sobre o espelho da realidade?" contigo, originalmente publicada na Revista Gerador 29. No dia dia 6 de março podes encontrar a próxima revista nas bancas, com uma reportagem dedicada ao conceito de lusofonia. Podes saber mais, aqui.