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“Coleção de Espectador_s”: um espetáculo com testemunhos que se fazem ouvir

De uma amante para amantes; de uma colecionadora para colecionadores; de uma artista para artistas;…

Texto de Patricia Silva

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De uma amante para amantes; de uma colecionadora para colecionadores; de uma artista para artistas; de uma espectadora para espectadorxs. Nasce assim um espetáculo pelas vozes, pelas mãos e pelos pensamentos de todxs e de Raquel André.

A partir da "Coleção de Espectador_s", a colecionadora, performer e criadora apresenta aquela que é a quarta criação e última da tetralogia iniciada pela artista Raquel André, em 2014, que deu já origem a outros três espetáculos: Coleção de AmantesColeção de Colecionadores e Coleção de Artistas. Coleção de Espectador_s é um espetáculo, mas também um museu. Este grande encontro entre a artista e as testemunhas e interlocutores que se deixam afetar pela criação artística estreia hoje, 16 de julho, e estará em cena no Teatro D. Maria II até dia 18, encerrando a Temporada 2020-2021 da Sala Garrett.

Raquel, através dos vários projetos que compõem a sua Coleção de Pessoas, tem vindo a colecionar espectadorxs, que são convidados a ativar uma relação direta com a artista. Essa relação tem gerado um arquivo do efémero, composto pelas memórias e histórias de pessoas. Coleção de Espectador_s, que parte do espaço aberto pelas centenas de contribuições que a artista tem vindo a recolher ao longo dos últimos anos, reflete também a necessidade de pensar e debater o agora, enquanto espectadorxs das artes e da vida.

A atual doutoranda bolseira no Centro de Estudos de Teatro na Faculdade de Letras — Universidade de Lisboa e mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em Artes da Cena esteve à conversa com o Gerador, na qual a partilha de cena, os exercícios de pensar o lugar, as vozes e observar quem nos rodeia foi o ponto de partida para uma pequena conversa sobre a criação de um arquivo de testemunhos e de experiências artísticas.

Gerador (G.) - Fazendo parte de uma tetralogia relacionada com o teu projeto Coleção de Pessoas e tendo por base as três criações anteriores, como é que descreves o processo criativo e construtivo desta peça?

Raquel André (R.A.) - Desde a "Coleção de Amantes", que é a primeira coleção, que venho a colecionar os espectadores dos espetáculos todos — "Coleção de Pessoas", "Coleção dos Amantes", "Coleção de Colecionadores" e "Coleção dos Artistas" — portanto, já tenho uma coleção de espectadores desde a "Coleção de Pessoas". Aqui, estou a trabalhar com os espectadorxs em palco, o que também é uma novidade nestas coleções, ou seja, sempre estive sozinha em cena a contar as histórias das pessoas com quem me encontrei, desde os amantes, os colecionadores aos artistas e, aqui, são os espectadores a contá-la na primeira pessoa. Ao todo, são cerca de 11 pessoas, isto porque nós fizemos duas oficinas, a última em contexto do Teatro Nacional, em que se inscreveram cerca de 70 pessoas. Nós convidámos 20 para passarem os dois dias connosco, para virem aqui (contexto de teatro), e 11 pessoas para estarem em palco.

G. — A importância da relação entre a obra e o espectador é algo característico na tua peça. A necessidade de criar essa ligação, para ti, nasce a partir de que forma?

R.A. — Eu acho que este espetáculo tem como questão principal 'o que é ser espectador?' E, para mim, o que pode não ser unânime, ele é o último criador de uma obra, ou seja, o último como que o primeiro no sentido em que a obra também acontece quando ela chega ao espectador e, essa relação, entre os artistas e os espectadores, é ainda uma relação de impotência, porque o mundo vai mudando e essas relações entre as pessoas sofrem também alterações. No meu ponto de vista, é urgente que essa relação mude, entre xs espectadorxs, as obras e xs artistas que eu considero estar ainda muito engessada, no sentido que ainda é muito formal, muito distante. Xs espectadores ainda são muito anónimos, e nxs artistas têm esse nome, tal como também o trabalho. Este espetáculo faz também uma homenagem aos trabalhadores das Artes do Espetáculo, que não são só xs artistas. Sem essas mãos de trabalho estes projetos não aconteceriam e é também para trazer aos espectadores essa noção de que para eles poderem ser espectadores [muito] tem de acontecer por detrás do pano; quantas pessoas trabalham e quantas profissões existem para que eu possa ser espectador ou espectadora? E sim, a minha urgência é que essa relação permita que o espectador se aproxime, que também possa subir as escadas, estar no palco e ter voz sobre aquilo que está a acontecer.

G. — Uma das coisas que mencionas é que este espetáculo também se transforma num museu. Questionar o lugar é também um ponto de partida para desmistificar este conceito, na tua peça?

R.A.— A palavra museu, para mim, é uma palavra muito importante que tem também de ser ressignificada, ou seja, a história do que é museológico — como é que esta ideia de museu se foi construindo? O que nós colocávamos nestes locais, o exótico, o especial, o diferente...  Eu acho que, hoje em dia, nós já temos ferramentas para podermos perceber que o exótico, o diferente e o especial somos todos nós, nas suas especificidades e subjetividades. Então, quando convido um grupo de espectadores que contam as suas histórias e a potência é, de facto, as suas histórias, independentemente do género, da idade, de backgrouds sociopolíticos ou socioeconómicos diferentes, é também um gestão de questionar o que é museu hoje e a urgência de o fazer. É usar essas palavras, trazê-las para aqui, hoje, e perceber o que querem dizer. O espetáculo também levanta muitas questões sobre isso, nomeadamente, os conceitos do lugar de fala e de escuta: nós observarmos onde é que nós falamos, o que é que dizemos e em que lugares o fazemos, trazendo essa responsabilidade para nós, enquanto espectadores. É importante questionarmo-nos sobre o que é que escutamos. Onde é que precisamos de estar para escutar as vozes e outras falas? Às vezes, corremos o perigo nestas relações entre a arte e a sua exposição, na forma como se relaciona com os espectadores. Somos sempre um grupo de privilegiados a falar e a ouvir, então, como é que nós também podemos falar em outros lugares, dar vozes a outras pessoas e estarmos em outros locais para escutarmos essas outras vozes e para podermos, então, reparar a história e conceitos como museu ou museologia.

G. — Partindo dessa diversidade de conceitos e realidades e atendendo à importância da sua reflexão, estas diferentes vozes que se fazem ouvir abraçam a diversidade no seu todo ou têm alguns pontos em comum?

R.A. — Na verdade, eu gostava que houvesse mais diversidade num sentido não das histórias, porque  eu acho que cada umx delxs tem histórias muito individuais e muito potentes, mas é só um grupo de pessoas brancas, cisgénero e binárias. Isso trouxe-me algumas questões porque, de facto, acho que não é representativo do que é ser espectador. Acho que este contexto de espectador é muito mais alargado porque somos todos nós. Por essa razão, acho que deveria existir muito mais diversidade. No entanto, quando recebi as inscrições desta oficina, dos setenta participantes, lidei com este problema. Essa diversidade não chegou. E, aí, temos de nos questionar porquê. Discutir e perceber onde está o problema. Será que os espectadores que vão teatro ou ao Teatro Nacional são só pessoas brancas? São só pessoas cisgénero? São só pessoas binárias? Por outro lado, será que essas pessoas acham que isto não é delas? Ou o meu projeto não chega a essas vozes? Enfim, esse foi logo o problema inicial e, durante o espetáculo, eu abordo essa questão política, acho que é até fundamental questionar. Ou seja, existe diversidade porque cada um tem sua história e o ponto em comum entre elxs é serem espectadorxs, mas em perspectivas muito diferentes. Existe também uma grande elasticidade de idades. A pessoa mais velha tem 73 anos e a mais nova tem 21 anos. Têm profissões diferentes, de lugares muito diferentes e elxs não se conheciam. Há texturas e  histórias muito diversas, diferentes. No caso, não têm é outras perspectivas históricas de vida que, de facto, não são tão privilegiadas como nós somos, incluindo-me também que sou uma mulher branca, cisgénero e binária.

G. — Acreditas que, depois da apresentação do espetáculo e desta reflexão chegar aos espectadorxs que o vêm pela primeira vez, poderá ser um ponto de partida para se questionarem perante essa realidade?

R.A. — Espero que sim. Eu escrevi e falo sobre isso no espetáculo. Espero que seja uma das coisas que as pessoas possam pensar depois do espetáculo estrear. Depois, ao irem para casa, que passem a observar, cada vez que entram numa sala de espetáculos, os restantes e percebam — "Pronto, quem é que nós somos, aqui, a escutar?" E também pensar o porquê de estar ali, naquele local, a falar, e depois fazermos exercício — 'quem somos nós que estamos aqui nesta sala?'. Acho que é um exercício muito simples — não só em salas de espetáculo como também nos restaurantes que frequentamos, os lugares onde vamos. [É importante] observar, porque acho que, nós, pessoas brancas, cigénero e binárias somos tão privilegiados que nem sequer temos este nível de pensamento. Não nos passa pela cabeça que estarmos ali já é um lugar de privilégio e, muitas vezes, esse tipo de noção, esta consciência é-nos trazida por pessoas que não têm esses privilégios. A verdade é que já vamos muito tarde, mas ainda é tempo de podermos fazer essa mudança e de começarmos a tornar-nos conscientes. Então, eu faço esse exercício no espetáculo. Questiono o aqui e o agora e, sim, eu queria muito que essa mensagem fosse para casa.

Texto por Patrícia Silva
Fotografias de Filipe Ferreira

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