Nem sempre existe espaço numa reportagem para dar vida a todos os temas recolhidos junto dos intervenientes que lhes dão forma. Neste sentido, partindo da reportagem “Formar cidadãos, formar públicos: que caminho(s) para a cultura em Portugal?”, publicada no número 26 da Revista Gerador, recuperámos o diálogo com as entidades para levantar temas que acabaram por não chegar ao papel.
Assim, regressámos ao arquivo para reler conversas com o Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), o Centro Cultural de Belém (CCB), a Culturgest, o Teatro Municipal do Porto – Rivoli e Campo Alegre (TMP), a Materiais Diversos e a Ondamarela. Tendo em conta que as mesmas se encontram inseridas num espetro que vai das instituições públicas e privadas às independentes, ressaltam pontos de contacto entre si, igualmente necessários de auscultar.
Enquanto no papel as atenções se viraram para os desafios de programar cultura em Portugal, a proximidade com os públicos, a ligação com os territórios e a importância de dessacralizar espaços, neste artigo mergulhámos no peso dos artistas nacionais nas programações, na gestão de orçamentos e na importância da criação de sinergias.
A preponderância dos orçamentos na hora de fazer escolhas
Os pontos de contacto começam, precisamente, no caminho que a programação tem de percorrer desde a fase em que é planeada pelos programadores até entrar em cena. Sabendo que o modus operandi é distinto — por muito que, por vezes, se aproxime — nas diferentes entidades, prevalece a noção de que um dos grandes fatores de decisão é o orçamento.
“Os limites da programação do CCB são os limites do orçamento. Nós [programadores] fazemos um projeto de programação que é apresentado ao Conselho de Administração e sujeito à avaliação do mesmo”, refere Fernando Sampaio, programador da instituição. Realça, no entanto, que essas métricas não são um entrave à liberdade de escolhas e são importantes “para que não haja derrapagens orçamentais”.
Para a Culturgest, as métricas não são tão definidas quanto para o CCB, ainda que se encontrem segmentadas nas diferentes áreas que a instituição engloba. Com mais ou menos métricas, parece haver um fator essencial ao êxito da fase inicial da programação: o trabalho e diálogo em equipa, como corrobora Cláudia Belchior, presidente do Conselho de Administração do TDMN II.
Para entidades independentes como a Ondamarela e a Materiais Diversos, centradas em territórios mais periféricos, as métricas orçamentais são igualmente importantes. A Ondamarela destaca, contudo, a importância de não prejudicar o processo de trabalho e o resultado final na criação de experiências e na “capacitação das comunidades envolvidas” em prol de um orçamento mais reduzido.
Elisabete Paiva, diretora artística da Materiais Diversos, considera ainda fundamental reservar uma parte do seu orçamento para o apoio à criação, seja através de residências ou de bolsas.
O apoio à criação ilustra também o apoio a artistas nacionais no planeamento das novas temporadas. Tiago Guedes, diretor do TMP, destaca “o apoio e a coprodução a companhias e artistas locais — que decidiram viver e trabalhar no Porto”. Na mesma linha, Fernando Sampaio realça que “o CCB sempre teve atenção à produção nacional nas várias áreas, sendo que grande percentagem da sua programação é feita com artistas portugueses, principalmente nas áreas do teatro e da música clássica”.
O território como espelho da (falta de) mediação cultural
Na reportagem “Formar cidadãos, formar públicos: que caminho(s) para a cultura em Portugal?”, as disparidades entre os grandes centros urbanos e os territórios mais periféricos foram inevitavelmente realçadas. Neste âmbito, Cláudia Belchior destaca a criação da Rede Eunice, através da qual “o Dona Maria sai de Lisboa e vai para municípios em que deteta uma falta de oferta de teatro”. Este é apenas um exemplo de como as grandes instituições procuram cada vez mais levar a sua programação a diferentes localidades.
Não obstante, essa é uma marca de água da Materiais Diversos e da Ondamarela, que trabalham para (e com) as comunidades. O coletivo de Guimarães salienta as diferentes leituras e realidades que se encontram no litoral e interior do país: “Nos grandes centros e cidades do litoral, assistimos a uma maior valorização da cultura, nomeadamente pelas novas estruturas artísticas que têm nascido. No interior do país, a realidade é bastante diferente. Há equipamentos culturais em quase todas as cidades, mas que estão vazios ou com uma programação pontual e de qualidade questionável”, o que ilustra uma “falta de mediação cultural”.
Também a Materiais Diversos observa uma lacuna no que toca ao investimento de autarquias e empresas numa programação que deixe lastro sendo, por isso, “importante a cooperação entre agentes culturais”, bem como com “artistas cujo trabalho possa ser mais significativo nessa aproximação aos lugares e às pessoas”.
“Temos de nos juntar para lutar contra a homogeneização cultural, de um lado, e a cristalização das identidades, do outro”, sustenta Elisabete Paiva. Uma perspetiva bem resumida também por Tiago Guedes, fundador da Materiais Diversos e hoje diretor do TMP, que sustenta: “Pretende-se cada vez mais que não haja uma arte isolada, mas que seja uma arte convocatória e com um número mais alargado de pessoas.”
https://www.facebook.com/materiaisdiversos.associacaocultural/videos/2300660133345093/
A Materiais Diversos realiza há 10 anos um festival que cobre as suas zonas de atuação
Abraçar a comunidade e pensar em conjunto
Numa lógica de preocupação com os territórios, destaca-se também um maior âmbito comunitário materializado nas escolhas dos programadores. Esse sentido de comunidade é, aliás, um aspeto fundamental no trabalho da Materiais Diversos que atua em Minde, Cartaxo e Alcanena ou do TNDM II que viaja até Vila Real, Sardoal e Funchal.
A Ondamarela encontra-se também profundamente enraizada nesta matriz. “O que pretendemos criar, sempre, é a ideia de comunidade. Muitas vezes, trabalhamos com pessoas que não estariam no mesmo palco se não fosse pelo projeto e que vêm de sítios muito diferentes, no que diz respeito à arte e à participação cívica, que não fazem parte dos mesmos círculos”, contam. No mapa das suas colaborações, abrangem territórios tão distintos quanto o Norte de Portugal continental e o arquipélago dos Açores, e é precisamente nessas diferenças que vêm a importância de assumir uma postura que vá contra uma mentalidade paternalista.
Para grande parte dos intervenientes, é comum a ideia de que ainda prevalece um estigma que associa a cultura a um certo elitismo. Fernando Sampaio dá como exemplo “uma certa distância das pessoas” relativamente à música clássica e à ópera, contudo sente que há cada vez “mais públicos com inputs culturais de gosto e que são críticos quando se aproximam de um objeto artístico”, independentemente do tipo de linguagem artística.
Já no caso do teatro, Cláudia Belchior sustenta a ideia de que, ao mesmo tempo, se tem feito um trabalho de desconstrução “com espaços a abrir como o Teatro Maria Matos ou o São Luiz, que ajudaram a que houvesse uma nova corrente de público interessado e ávido”.
De acordo com o coletivo Ondamarela, existe, todavia, “uma vontade e sensibilidade política e programática diferente”, que deve passar por uma maior proximidade aos públicos. Só assim “todo o trabalho de envolvimento, participação, mediação cultural e artística contribui para a quebra de preconceitos”.
Para a Ondamarela os projetos só fazem sentido quando despidos de preconceitos
A comunicação como chave para o sucesso
Todo este trabalho em rede só é possível por intermédio de parcerias e de uma boa estratégia de comunicação. Com uma utilização cada vez mais corrente dos novos média e das redes sociais por parte das instituições culturais, tornou-se mais fácil chegar a diferentes públicos. Ainda assim, qualquer estratégia deve ser pensada e comunicada conforme os objetivos da entidade cultural.
Mark Deputter defende que “a comunicação é fundamental, através de um leque de canais cada vez mais diversificado, para a divulgação da Culturgest”. Por sua vez, é no sentido de divulgar a oferta e abrir portas que o D. Maria II tem apostado em conteúdos audiovisuais que contam, na primeira pessoa, com a experiência de diferentes espectadores na sua ida ao teatro nacional.
“A comunicação é imprescindível, não só para dizer que existimos, mas para dizer como existimos”, acrescenta Elisabete Paiva.
https://www.facebook.com/TNDMII/videos/211497559761909/
"O Lugar de..." é uma série de vídeos do TNDM II que conta estórias de diferentes espectadores
Mas nem só através de comunicação se reflete a estratégia destes intervenientes culturais, que também procuram estabelecer parcerias com escolas e universidades. A Culturgest mantém uma colaboração ativa com várias universidades da cidade de Lisboa, sobretudo no programa de conferências e debates, enquanto, na mesma direção, o TMP procura estabelecer relações com escolas superiores especializadas. Também o TNDM II tem feito um trabalho de mediação, centrado nos jardins de infância e escolas públicas através do programa Boca Aberta, cujo objetivo é que em 2021/2022 cubra “toda a rede pública de jardins de infância de Lisboa”.
Sendo a programação um exercício “plural e complexo”, como afirma Jorge Barreto Xavier em entrevista ao Gerador a propósito desta mesma reportagem, os desafios presentes na forma como as instituições planeiam a sua oferta não se esgotam. No final, as preocupações convergem numa mesma temática: programar cultura com um acesso cada vez mais facilitado, capaz de envolver um leque cada vez mais abrangente de públicos.
Podes ler a reportagem “Formar cidadãos, formar públicos: que caminho(s) para a cultura em Portugal?” na íntegra no número 26 da Revista Gerador, disponível numa banca perto de ti ou em gerador.eu.