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De INTERFERÊNCIAS o Palácio Pancas Palha vive: um diário cheio de tudo e de todxs

Estávamos no dia 17 de agosto de 2021. Pelas 17 horas, depois de um atraso…

Texto de Patricia Silva

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Estávamos no dia 17 de agosto de 2021. Pelas 17 horas, depois de um atraso à mistura, o primeiro contacto – oficial porque os telefones tocaram e os emails chegavam à caixa de correio desde o início do mês – entre o INTERFERÊNCIAS e o Gerador aconteceu. Naquele exato momento, sentia-se um silêncio profundo no Palácio Pancas Palha, ainda que por pouco tempo. Os jardins estavam vazios, mas não sozinhos; as salas soltavam ecos, e a campainha não parava de tocar. Marcou-se assim o primeiro dia de ensaios, sinergias e preparações que, durante cerca de três semanas, abraçavam oito projetos de criadorxs das mais diversas áreas. Com uma programação assinalada para os dias 3, 4 e 5 de setembro, o espaço que acolhe a Companhia Olga Roriz é agora palco da 2.ª edição da plataforma de apoio à criação e prática das artes performativas. 

Distinguindo-se pelo seu lado “plural, experimental e transversal a várias práticas artísticas”, o INTERFERÊNCIAS, nesta edição, completa-se com xs nomes: Natacha Campos, Bibi Dória, Alice Azevedo, Lila Tiago, Elizabete Francisca, Kino Sousa, Gaya Medeiros e Ary Zara, Connor Scott, Beatriz Valentim, Mercedes Quijada, Gisela Ferreira e Mário M. Fonseca. 

Olga Roriz. Bruno Alexandre. Joana Horta. Cárin Gerada. António Quadros Ferro. Gisela Casimiro. Estes são alguns de uns tantos outros nomes que também edificam a programação do projeto. Contando com artistas, técnicxs de som, de imagem, de fotografia, assistência e apoio nos detalhes que podem passar despercebidos a um público concentrado, é também destas pessoas que é feito o processo de criação de cada um dos projetos que acompanham. 

Hoje, dia 3 de setembro, as primeiras apresentações acontecem. Fruto de um tempo de residência convertido em quinze dias que retirou ideias do papel e da cabeça fazendo-as acontecer. Já outras partiram de uma experiência antiga ou serviram de mote para que diversas visões e leituras se sucedessem. O Gerador acompanhou o desenvolvimento dos projetos, performances e acontecimentos que se registaram em cada uma das residências, levando-nos a percorrer invisibilidades, sejam elas quais forem. 

INTERFERÊNCIAS, um palácio cheio delas

Nascida em 2019, mas já pensada uns anos antes, a plataforma de apoio à criação e prática das artes performativas já se fizera ouvir na cabeça de Olga Roriz, diretora do projeto. Tudo começou ainda antes de se designar como “INTERFERÊNCIAS”. O mote foi a vontade de Olga em alargar as atividades da Companhia Olga Roriz para além da criação e a produção de espetáculos, que, na realidade, se iniciaram ainda na Rua Prata, o antigo local onde a companhia habitava. “A única coisa que nós podíamos lá fazer era abrir a residências artísticas, portanto, o espaço ficava aberto depois da Companhia ensaiar a partir das 18 horas, ou quando a companhia não estava em criação abríamos durante o dia para dar mais condições aos artistas. É certo que a dança precisa mesmo de estúdios. A partir desse momento, nós começámos a pensar mais na formação. Abrir as aulas para alunos, na comunidade, começámos a dar aulas a seniores, ali, daquela freguesia e, por sua vez, surgiram as residências artísticas. Mas também não podíamos fazer muito mais do que isso, porque só tínhamos um estúdio”, conta-nos Olga. 

Foi depois de falar com a vereadora Catarina Vaz Pinto e de chegar ao Palácio Pancas Palha que a ideia começou a ganhar corpo. “Há uns três ou quatro anos, eu começo a falar sobre a possibilidade de um apoio a criadores. ‘Ah, eu gostava muito’. Dizia isto numa ou outra reunião, passava-o aos bailarinos”. Olga, sentada na secretária, no seu gabinete, envolvida numa conversa em que o nascer do INTERFERÊNCIAS se tornava cada vez mais presente, viaja até à chegada de Bruno Alexandre à Companhia. Ele tinha um ano de contrato como bailarino, isto é, não só um contrato específico para criação, mas sim um ano na sua totalidade. Depois da diretora da Companhia Olga Roriz partilhar as suas motivações com Bruno e com um outro bailarino, percebeu que ele tinha ficado muito entusiasmado com a ideia, sendo que começou desde logo a partilhar pensamentos que surgiram de forma vasta. Além de bailarino é também advogado e, como tal, o seu conhecimento para a regulamentação foi essencial. É então que o INTERFERÊNCIAS nasce a partir de uma necessidade de “interferir”, “intervir” e muitas outras palavras que naquela reunião que determinara o nome do projeto diziam tudo e nada. Eram sinónimos infindáveis. Cruzaram-se e interferiram. 

“Não foi fácil”, continua Olga. Chegar à 2ª. edição da plataforma com o mesmo coordenador, atendendo às suas ocupações e projetos, segundo a diretora, mas o “mês calhou bem” e permitiu que o atual coordenador do projeto continuasse a desempenhar o seu cargo por mais um ano. 

Partindo de uma necessidade, o projeto também se preocupa em dar espaço, voz e corpo a artistas que ainda não tiveram oportunidade de mostrar o seu trabalho como criadorxs partindo de um contexto intimista, sem hierarquias ou demasiadas formalidades institucionais e burocráticas à mistura. “É muito importante para estes artistas, que estão um bocadinho desamparados e alguns deles ainda nem começaram bem a criar, ou que querem criar, mas nunca foram apresentados publicamente, terem a oportunidade de criar um contacto com o público da própria companhia, nomeadamente programadores”. Para Bruno, as palavras da artista fazem todo o sentido. “É uma semente”. E essa mesma semente, a partir da sua simplicidade, permite que as coisas comecem a crescer, “porque às vezes ou têm de se fazer grandes saltos ou então temos muito poucas possibilidades de ter estes momentos para podermos mostrar o nosso trabalho”. Quem nos diz é Olga que nos conduz no mesmo panorama de conversa anteriormente referido. Já Bruno, está sentado num lugar perto do poço, no exterior, voltado para nós num local que se inunda de energia vinda de uma tarde onde o sol não se esconde. Ainda que em espaços diferentes, as suas ideias nunca estiveram tão próximas. É também disto que o INTERFERÊNCIAS é feito. De tudo e de todxs. 

2ªedição do INTERFERÊNCIAS: de que se trata?

Eduardo Galeano, jornalista e escritor, dizia que "Somos o que fazemos, mas somos principalmente, o que fazemos para mudar o que somos". De forma indireta, talvez, estas palavras se cruzem com um dos focos principais do INTERFERÊNCIAS que, além de trazer a palco os diferentes artistas permite também pensar, (re)pensar e, por sua vez, perceber o conceito de programação. Bruno diz que talvez seja demasiado ambicioso olhar para o INTERFERÊNCIAS como um local para (re)pensar a programação, no entanto, concorda que continua a ser uma semente pronta a acompanhar, passo a passo, o INTERFERÊNCIAS.

O desejo sempre foi abrir o espaço. "Visitar os jardins; fazer uma mostra; ser mais um dos lugares em Lisboa que permite axs artistas mostrar o seu trabalho, atendendo ainda às questões programáticas mais ou menos institucionais.

Bruno considera ainda que é importante pensar o conceito de emergência e jovem, dentro daquilo que é o INTERFERÊNCIAS. "Creio que são projetos muito diferentes. Esta edição é especial como a de 2019. São pessoas com desejos muito fortes de nos mostrar aquilo que têm e querem dizer, com discursos emergentes - aqui sim, usaria a palavra emergente - sendo que há algo de muito intemporal nesta programação que permite trazer à tona uma necessidade de serem vistos". Assim se traz o conceito de escalas de invisibilidade, acredita Bruno.

Ainda sobre a programação no seu significado, "Acho que há muitos bons exemplos de programação que são laterais às instituições, cada vez mais por todo o país. O que me parece à priori muito mais interessante, porque sabe que inclui logo uma ideia de trabalho horizontal e uma ideia do coletivo, de comunidade que está a construir um projeto com um nível hierárquico de decisões, parecendo uma utopia", acrescenta.

Sobre o que será a 2ª. edição do INTERFERÊNCIAS, "eu queria ter feito uma espécie de mesa redonda à falta de melhor nome, e nunca encontrei o nome certo para o evento. Na verdade, a mesa redonda não se iria chamar mesa redonda, mas também não tinha o nome. Era um evento em que eu queria trazer várias pessoas, de vários lugares do país, não só de Lisboa, mas seria algo que iria exigir mais a nível financeiro. Portanto, tinha em mente convidar várias pessoas para falar sobre programação, essa ideia de reprogramar, programar, mas, depois, comecei a abandonar essa ideia porque eu tinha uma escala muito grande, na verdade, e comecei a achar que não era adequada para o INTERFERÊNCIAS, apesar de ser uma coisa que eu acho que é urgente. E que tem vindo a acontecer, nomeadamente, a Rede Artéria, o que é também importante destacar de maneira que nem tudo acontece numa rede elitista ou em grandes cidades", acrescenta.

Na falta de oportunidades, Bruno transformou assim essa 'mesa redonda' em Conversas de jardim, que vão acontecer além das apresentações e das visitas aos jardins. "Encontrei um dispositivo que partisse de uma ideia de conversa intimista; encontrei pessoas que eu considero interessantes para conversar e isto, porque muitas vezes existe esta ideia de que é impossível chegar a estas pessoas, quase como uma espécie de deuses. Por exemplo, muitas vezes, enquanto estudante sentia dificuldades em chegar às pessoas e poder conversar com elas. Saber onde o podia fazer e como. Assim, propus às pessoas haver uma caixa de perguntas que reserva questões sobre a ideia de trabalho. Na sexta-feira temos connosco a Olga Roriz; o David Marques no sábado e a Claúdia Galhoz, no domingo", finaliza Bruno.

Ainda sobre as visitas aos jardins, Raquel Barata irá coordenar as mesmas, nas quais a organização propõe uma viagem pela vida da invisibilidade. Partindo pelo contexto e pela significação da palavra, Raquel irá abordar as diferentes lendas, mitos e a importância daquilo que não se vê através da forma como os nossos olhares se cruzam com as plantas, árvores e todos os elementos que habitam os jardins do Palácio Pancas Palha.

'Somos Criadorxs'. "O processo de criação, de residência, delxs e nosso"

"Acho que é super importante essa partilha dos processos criativos, quase tanto ou mais do que ver espetáculos. Sabermos a fundo do que se trata o processo criativo é mostrar às pessoas que há imensos caminhos, alguns deles até comuns. Não se trata de cópias ou inspirações, mas de todo o trabalho que vai acontecendo para um objeto final", Olga Roriz, 1 de setembro de 2021. Gabinete da Direção.

27 de agosto de 2021. Natacha Campos. THEFRUIT – an occidental title (work in progress).

Natacha Campos. THEFRUIT – an occidental title (work in progress)

É do caos que o seu processo criativo nasce. Embebeda-se de tudo a partir do nada.
Cruzou-se com o Open Call do INTERFERÊNCIAS a partir de uma sugestão que lhe chegava no momento exato em que terminava de ler um email de uma outra candidatura em que a recusavam. "Estávamos numa altura difícil, oriunda da pandemia e de todas as questões que foram surgindo em torno. Mas creio que posso dizer, ainda que de forma fria, que, este primeiro contacto com o Open Call, foi um misto de acaso e conveniência." Estas palavras já se fizeram ouvir no dia de ontem, no entanto, o contacto do Gerador com a jovem existiu logo no primeiro dia, em que conhecemos xs artistas. O Jardim de cima é o seu local, mas as lágrimas de felicidade nos vários dias de ensaio propagaram-se pelo Dragoeiro, pelos outros jardins que compõem o Palácio e por todos os locais que a foram acompanhando. Tentando ultrapassar o espaço, não tornando a sua performance em site específic, Natacha procurou, a partir da sua teoria, tornar o seu processo ainda mais independente. Existia uma proposta e um corpo. Assinalando ainda o seu regresso, depois de se ter afastado durante um período de tempo da dança, este foi também um retorno ao seu corpo. Envolvendo um registo de vídeo e musical a acompanhar a sua performance, "A minha cabeça é um caos; o meu pensamento é um caos ainda que estruturado, com margens. Ou seja, eu comecei partindo de histórias minhas, de quando era miúda. Não era propriamente partir das histórias em si ou narrativas, mas do raciocínio que estava por detrás delas. Pegar em situações e refletir o quão absurdo e irrealista são. Portanto, este processo fez-me debruçar sobre esse questionamento sobre o raciocínio."

O Jardim de cima é o seu local, mas as lágrimas de felicidade nos vários dias de ensaio propagaram-se pelo Dragoeiro, pelos outros jardins que compõem o Palácio e por todos os locais que a foram acompanhando.

Partindo ainda sobre as questões de raça e identidade, explorar a linguagem, a importância da tradução e do próprio objetivo coreográfico trouxeram também a pano de fundo os seus interesses no mundo da literatura. Partindo desta procura e exploração transversal chega-nos o fruto. É assim que se intitula o projeto de Natacha. Construindo-se com uma música desenhada ao longo da performance e que o corpo de Natacha abraça, a artista partilha que "o conceito veio do debruçar-me sobre lógicas que estariam dadas como adquiridas que, na realidade, não são, porque podem ser sempre mudadas, transpondo-as para um conceito que me está muito perto, mas que eu não o percebo ainda, que é o processo de colonização e tentando descontraí-lo a um fruto. A nós próprios como um fruto e não à construção do que é feito a seguir a esse fruto. Trata-se de um convite ao questionamento." É ao longo do mesmo que a caminhada se mantém aberta durante toda a peça, por um jardim cheio de palavras, sensações e conhecimento.

27 de agosto de 2021. Gisela Ferreira e Mário M. Fonseca. FANTASMAS DE PRATA.

Gisela Ferreira e Mário M. Fonseca (da direita para a esquerda). FANTASMAS DE PRATA.

Estávamos sentados numa escadaria composta por três ou quatro escadas, nada mais do que isso. Antes de processos criativos, debatemos o calor do dia e a quase estadia diurna que se seguiria. O jardim superior também foi a escolha delxs.

Começando pelo INTERFERÊNCIAS, o seu contacto era novidade para Mário, no entanto, Gisela já conhecia a plataforma por se destacar como um apoio importante à criação de jovens emergentes - se bem que o conceito emergente é algo construído e descontraído em simultâneo pelo entendimento dos diferentes artistas, que questionam o que é, de facto, ser emergente, e-o-B-r-u-n-o-q-u-e-o-d-i-g-a - tendo em consideração a escassez desse apoio no sul do país e até mesmo no interior, "principalmente no contexto de residência mais longa", reforça Gisela.

Gisela Ferreira, fotografia de Rute Leonardo

Já se conheciam antes. A Fantasmas de Prata contava apenas com '10 minutinhos' quando chegou ao Interferências. Hoje, dia 3 de setembro, tem 30, "queríamos aumentar o tempo da peça, continuar a trabalhar nela e foi, de facto, uma boa oportunidade para ela", continua Mário.

Acompanhar o processo criativo dos jovens artistas é também perceber que o seu desenvolvimento advém também de um processo de auto-descoberta, "esta peça surge também num contexto em que nos estávamos a conhecer. À partida, é sempre um desafio que se vai construindo e até vivendo, percebendo o que somos, o que está a acontecer e em que temos ou devemos trabalhar", acrescenta.

Mário M. Fonseca, fotografia de Rute Leonardo

A importância da dramaturgia é algo assente na peça dos artistas, mas a principal questão é: de onde é que a mesma parte? Mário respondeu-nos. "De um ponto inicial, acho que a nossa referência base do que está a acontecer no interior do país e vem desta ideia de estarmos muito afastados, ou seja, de permanecermos na cidade e estarmos muito afastados do que está a acontecer no interior, quer por vias de meios de comunicação quer por afastamento físico. De alguma forma, eu já estava a explorar este tema num projeto documental com uma amiga, a Mariana Alves, da exploração mineira em Portugal. Foi então que compartilhei este projeto com a Gisela e daí surgiu integrar este tema na peça. Pelo meio, encontrámos um vídeo incrível da Belmira, de Rosário Frazão, que escreveu um poema e canta-o neste vídeo. Este vídeo faz parte de um documentário do Tiago Pereira e de Catarina Feijão, em que eles têm uma série de vídeos para a Música Portuguesa a Gostar de Si Própria e quando ouvimos e vimos este vídeo sentimos que nos fazia todo o sentido conectar-nos com esta geração antiga, estas tradições e, ao mesmo tempo, estávamos neste processo de nos conhecermos aos dois e a trabalharmos juntos."
Partir deste ponto, num momento das suas vidas em que a própria descoberta entre ambos partia para uma peça que explora essa significação de conexão, quer com as comunidades quer com a terra em si.

Assim como todxs xs artistas, passar por diferentes espaços, desde o estúdio central ao jardim, foi algo que lhes permitiu, através dos corpos, co-habitar o espaço e cada detalhe que os envolvia. Do piso do estúdio Rio passaram para o chão coberto de terra do jardim superior, onde o vento, as sombras e a luz perdida os envolviam num contacto universal e sentido por qualquer público que os acompanhe. O estímulo de ver a terra, explorar o contexto corporal e humano com tudo aquilo que a natureza lhes dá. Ouvem-se as duas vozes. Difundem-se num poema em jeito melódico que transportam quem os ouve para uma dimensão de reflexão, não só perante o que se vê, como também pelo que se ouve. Momentos vividos. Momentos sofridos. A memória. 'senti-me bem, senti-me verdadeira', diz Belmira.

27 de agosto de 2021. Bibi Dória. Nome de filme.

Bibi Dória, Nome de filme.

Cruzámo-nos na escadaria que já não nos é desconhecida, mas voltámos a encontrar-nos na sala de reuniões, também conhecida como sala de pesquisa. Bibi passava lá a maior parte do seu tempo, mas o seu destino são as ruínas, uma das zonas exteriores do Palácio.
Partir da premissa que um filme contado é muito diferente de um filme assistido foi o que a levou até Copacabana Mon Amour. A dança, a performance e o cinema cruzam-se na voz, no movimento e no corpo de Bibi. Com o apoio de um rolo de 5 metros, todo ele escrito à mão, a artista memorizou o filme de ficção e, agora, relata-o do início ao fim.

O projeto partiu de um desejo que Bibi teve em 2020, "acabei por ser convidada para trabalhar num museu e o meu trabalho tinha que se ligar, de alguma forma, com a linguagem audiovisual. Então eu planejei algo que me veio na cabeça e que me deu um desejo enorme de realizar, só que não aconteceu devido à pandemia. Acabei por ficar com esse projeto na cabeça e na ideia durante muito tempo. Ao longo da pandemia, da quarentena e de tudo o que se foi desenvolvendo, o desejo de realizar este projeto foi-se tornando ainda maior. Cada vez mais fazia sentido na minha cabeça, até porque tem que ver com acervo e memória, mas o que aconteceu foi que durante o ano de 2021 comecei a tentar encontrar outros espaços que o acolhessem porque eu precisava de espaço, tempo e apoio financeiro para poder trabalhar e criar um suporte de forma a transformar esta ideia em objeto. O Interferências foi o primeiro lugar onde eu consegui trazer isso para mim. Chamo-o de primeira residência de criação, sendo assim a primeira tentativa deste projeto", partilha.

A ideia concreta era decorar um filme. Este era o seu dispositivo, no entanto, questionada sobre o lugar e o espaço em que o mesmo pode habitar, ou não, Bibi reconhece que "se vou levar essa mesma ideia para outros espaços? É algo que dependerá de outras coisas, mas para já o objetivo que eu tinha para cá era de tirar do papel ou da cabeça e trazer para o corpo para ver o que iria acontecer."

"Na verdade foi muito interessante de ver que eu aproveitei essa possibilidade, que não é possível em qualquer lugar, poder escolher um espaço em ruína", Bibi Dória. Fotografia de Jennifer Pais.

Num momento inicial, a ideia era que o seu projeto se abrisse para um espetáculo de dança, teatro ou algo mais extenso, no entanto, quando a jovem percebeu que o mesmo poderia voltar-se para outros lugares, "mais específicos, envolventes e interessantes para poder conversar com a ideia de dispositivo" elucidou-se também que, em duas semanas, provavelmente, não lhe permitiriam chegar a uma dimensão que, na sua cabeça, faria sentido inicialmente. Nesse momento, as 'ruínas' coincidiram não só com um espaço que lhe chegava à memória como o ideal e em que por pura poesia se difundiam com algumas especificidades que o filme em si debatia e debate atualmente: "fazia muito sentido que escolhesse um espaço em ruínas. Do palácio, escolhi o lugar mais em ruínas e tendo em conta esse contexto, podemos dizer que é um site específic porque existe uma relação com o espaço e com o filme. De repente, comecei a entender que tinha uma relação muito forte entre o lugar que eu escolhi, o que eu prefiro e o que vem a performar-se nisso. Na verdade foi muito interessante de ver que eu aproveitei essa possibilidade, que não é possível em qualquer lugar poder escolher um espaço em ruína. Talvez se estivesse num estúdio seria mais difícil (risos)."

Durante todo o seu processo de pesquisa, Bibi deparou-se com acontecimentos muito relevantes no que toca ao filme escolhido. Na primeira semana, dedicou-se exclusivamente a desenvolver o seu dispositivo decorando. Em cada dia que passava concentrava-se em aspetos diferentes e contextos que o filme apresentava. Não sabe ao certo quantas vezes viu o filme, mas foram várias. Demorou 2 dias a escrever o rolo de 5 metros e a palavra acompanhava-a sempre. Ao longo dos dias foi retirando-se, isto é, a forma como traduz cada detalhe, o relato de cada espaço, personagem e momento leva-nos numa viagem visual e convida-nos a uma construção mental elucidativa daquilo que imaginamos ser em cada uma das suas palavras. Levou-se a um lugar um tanto fiel quanto abstrato, onde a fala e palavra podem caminhar também para um cansaço mental em cada descrição afirmada. O que é certo é que cada leitura que se constrói se ergue por um momento transversal, ainda que diverso para quem a vê e ouve.

Rolo de 5 metros escrito pela artista.

Ainda sobre o filme e a sua importância, o mesmo estava presente na Cinemateca Brasileira que sofreu um incêndio em julho de 2021, o que na verdade não seria novidade, tendo acontecido também em 2016. Esta situação deve-se ao corte de financiamento no Brasil a instituições como universidades, museus, arquivos e bibliotecas que, por sua vez, não conseguem financiar os empregados e cuidados necessários com os documentos existentes na mesma. Desta forma, não existe capacidade para repor ou cuidar o acervo físico da Cinemateca Brasileira. O filme Copacabana Mon Amour foi um dos que sofreu danos. A Bibi partilhou com o Gerador algumas das informações que contribuíram para a sua pesquisa e numa delas é possível ler-se que "a restauração do filme Copacabana Mon Amour partiu de um levantamento de todo o material existente, referente ao filme, em diferentes suportes e mídias. O acervo de Rogério Sganzerla encontrava-se na Cinemateca Brasileira quando se iniciou o trabalho de restauração do filme. Num primeiro momento, foram recebidos da Cinemateca Brasileira rolos referentes aos negativos de imagem e som originais, processados pelo Laboratório Líder em 1970 e um material magnético referente ao som."  

27 de agosto de 2021. Gaya Medeiros e Ary Zara. O Atlas da Boca.

Gaya e Ary (da esquerda para a direita), fotografia de Rute Leonardo

Voltamos novamente à escadaria. Gaya aguarda Ary enquanto fala com o Gerador. Começa por explicar-nos que o Atlas da Boca é uma investigação de dois corpos trans que partem da boca como um lugar de intersecção entre a palavra, a identidade, a voz, o público e o privado, o erotismo e a política.

A ideia começou com uma parceria com João Imediato. "Ele criou o Atlas do Trabalho. Pegou em vários verbetes e ressignificou através da imagem. Na altura, o João fez uma parceria com um ator da minha cidade, Belo Horizonte. Achei incrível o trabalho dele e a partir daí tive a ideia de fazer um espetáculo com a temática da boca."
Gaya conta-nos que, na altura, estava a criar algumas estampas, até porque antes de tudo isto, existe a Plataforma Brava, que cria e apoia iniciativas protagonizadas ou direcionadas a pessoas trans, ou seja, "iniciativas criativas geralmente focadas na arte do design e da moda, mas onde tudo isso, de alguma forma, se remeta à comunidade. E aí tentamos criar a partir da boca. Acabámos por pegar em várias frases e começámos a trabalhar antes do INTERFERÊNCIAS. Quando chegámos aqui, concluímos um argumento e convidei o Ary como parceiro, que já tem trabalhado comigo em outras coisas".

Gaya e Ary, fotografia de Jennifer Pais

Através do "desejo de pensar a boca", Gaya e Ary refletem-na por um prisma de uma pessoa trans: como é que se ressignifica a própria boca; como a boca é também lugar de ressignificar a própria existência, no sentido de, através da boca, dizemos quem somos; boca como um lugar erótico, político, de muitas fricções sociais, íntimas, e identitárias.

27 de agosto de 2021. Elizabete Francisca e Kino Sousa. A besta, as luas.

Elizabete Francisca, a besta, as luas

Chegámos ao estúdio central um pouco antes do horário de ensaio. Abertas as portas do lado esquerdo do estúdio, estávamos perante o estúdio ao comprido. Sentámos-nos à conversa com a Elizabete e o Kino e questionávamos sobre como nascia o seu processo criativo. É caso para dizer que olhar para a sua performance é refletir fundamentalmente na heterossexualidade como regime político.

Elizabete começa por explicar-nos que "o projeto surgiu a partir de contexto inicial que permitiu criar este objeto ou começar a pensar sobre ele e efetivá-lo de forma física e material. O próprio contexto influencia a forma final do objeto e o seu percurso que, de certa forma, se foi gerando ao longo do tempo. Creio que se pode dizer que se definem muito pelo facto de ser ao ar livre, o facto de ser um solo muito frontal e ter um espaço circunscrito, ou seja, aconteceu tudo muito no mesmo lugar e, tudo isso, teve que ver com as etapas dos sítios onde fomos passando e onde fomos trabalhando este projeto. Ele começou através de proposta de Alexandre Vidal, As Damas Bar, que é um bar cá em Lisboa. É um sítio muito interessante que está muito mais virado para a música e para a programação de concertos de Djs, muito ligada à música e à voz. E houve já um interesse da parte deles, também no contexto de Lisboa e de criar outras plataformas e outros lugares para os artistas das artes plásticas experimentarem coisas fora do teatro ou fora de sítios que são mais programados para a dança ou para as áreas performativas, o que acho interessante porque também permite testar outras coisas. A Alexandra pensou num programa, creio que de quatro meses, e convidou por mês uma artista mulher para desenvolver uma performance pequena de forma a apresentar lá, nas Damas. Estamos a falar de um palco pequenino com 2 ou três metros. Nessa altura, convidei a Mariana Barros, coreógrafa e bailarina, para as duas fazermos alguma coisa. Convidei também o Kino para trabalhar o som. Nessa altura apresentámos um objeto que se chamava Não obdecemos porque somos molhadas, que é uma frase de uma canção escrita pela Tulipa Ruiz, uma escritora e compositora muito reconhecida no Brasil, interpretada pela Elza Soares", conta-nos.
Neste contexto, apresentaram duas performances, dois objetos inacabados, onde a primeira parte era uma dança que eu fazia, que foi, sim, o embrião para aquilo que hoje trabalho no INTERFERÊNCIAS e a Mariana apresentou uma coisa dentro do mês tema com voz e texto. Este foi o mote para o que viria a ser a besta, as luas.

Partindo da ideia em que se posicionam enquanto mulheres, as suas experiências e a relação com a sua família, a performance assenta assim num questionamento não só da divisão e categorização de género, mas que também se impõe em termos de conflito de classe. Estas mesmas categorias que, segundo xs artistas, "são categorizações que perpetuam sistemas de opressão sobre as mulheres e sobre comunidades à margem, como a LGBTQI+, e que inviabilizam a existência de comunidades cada vez mais interseccionais, múltiplas, justas e livres, na tentativa de, a cada dia, escaparmos a extremismos, a guetos e sobretudo à violência". Estas são palavras que se têm na sinopse da peça, mas que se fazem ouvir através daquelas que são questões essenciais ao pensamento estando ele ligado à construção do corpo ou como fazê-lo, e de como esse mesmo corpo é apresentado política e socialmente.

É a partir de uma peça coreográfica que os gestos e sons se difundem, sendo assim parte de uma representação possível daquela que é a geografia política de um corpo não submisso. A partir de uma partilha que se foi construindo ao longo do processo de residência é nos elucidada por Elizabete de que "esta não é uma peça sexualizada. Ela parte para mim deste 'cosmos, cabeça e ideia', ou seja, a energia vital feminina que é sexual e sexual não tem que ver com sexo. Até porque o prazer tem que ver com a autocura energética e é também por aí que este trabalho vai. Isto é, não fiz uma dança em que eu me mostro como mulher e a minha sexualidade, ou seja, as minhas mamas, o meu cu que é uma coisa sexualizada", explica.

Kino (lado esquerdo) e Elizabete (lado direito).

Elizabete dança com todas as partes do seu corpo, sem que uma possa ter mais ou menos valor que outra. A acompanhá-la está Kino, a produzir a banda sonora em diálogo com o corpo, de forma constante. Todo o seu processo surgiu à base de improvisação e a música que se faz ouvir é feita em direto. "Isto torna a performance mais orgânica, penso eu. Sinto uma linha precária, mas que é boa e interessante. Claro que existe uma estrutura escrita, no entanto, dentro das fases há muito espaço para acompanhar este diálogo", partilha o músico.

30 de agosto de 2021. Beatriz Valentim e Mercedes Quijada. self.

Beatriz Valentim e Mercedes Quijada, Self. Fotografia de Rute Leonardo.

Pouco antes do aquecimento de Beatriz e Mercedes encontrámo-nos com elas no Estúdio Rio. Falaram-nos de Self e de como a performance que, inicialmente era um solo, rapidamente se converteu num dueto, por ter na sua base conceitos como reflexividade e dualidade.

Oriunda de um workshop que Beatriz fez em Paris, no Centre National de la Danse de cerca de duas semanas, a ideia que a artista traz ao INTERFERÊNCIAS, juntamente com Mercedes, parte do conceito sociológico de self, no qual se propôs a pensar que perguntas fazemos a nós mesmos e que perguntas fazemos aos outros.

Inicialmente pensado para um solo, porque tinha que ser uma vez que o workshop assim o pedia, a ideia partia sobre o self-portrait e devia incluir a combinação entre dois campos que poderiam ser ou não artísticos. Sendo da área da Sociologia, a escolha foi unânime. Beatriz decidiu avançar com alguns conceitos sociológicos, focando-se na própria palavra. Além da conjugação de áreas, tinham de escolher um sítio em específico para habitar o espaço e a bailarina elegeu uns sofás azuis que, na sua cabeça rapidamente se formou uma realidade de barreira, associavam-se ao conceito de piscina e que se verifica, agora, no sítio eleito para a apresentação, a fonte. "Durante o tempo que estive lá, vi a Open Call do INTERFERÊNCIAS e pensei que seria uma boa oportunidade de continuar com o projeto, sendo que eles também tinham esta coisa específica de habitar um lugar do Palácio. Portanto, a minha escolha foi logo a fonte", explica a artista. De seguida chegou a ideia. "Todo o conceito nasce, depois, relacionado com a pesquisa da análise da sociedade através do self e a análise do self através da sociedade. Então achei que existia aqui uma dualidade que deveria ser representada, não podendo continuar a ser um solo", continua.

A vontade de trabalhar com outra pessoa era também um premissa que lhe fazia cada vez mais sentido. Foi então que convidou a Mercedes para trabalhar consigo, que conhecia do Porto. "Para mim é um dueto do início ao fim." É caso para dizer que a descontração do solo inicial se alimenta com outros olhares, pesquisas e trocas de ideias. Coisas permaneceram, outras alteraram-se dando espaço a um percurso de dualidade e dualismo.

Olga Roriz, Beatriz Valentim e Mercedes Quijadas. Fotografia de Jennifer Pais.

Já Mercedes reconhece que "o que está acontecendo a cada dia é que vamos trabalhando em coisas novas, ou não, e trabalhamos algo que já existe. É importante dizer e é curioso que, apesar de ser a primeira vez que trabalhamos juntas no mesmo projeto, estou a gostar muito porque o método de trabalho da Beatriz é muito organizado e acaba por ser bom, ao invés de ser algo totalmente aberto".

As relações de dependência em termos de ponto de vista social, que espaços e contextos habitamos é assim o foco chave de uma reflexão de um corpo-contorno que como um corpo vazio de significado está pronto a receber estímulos internos e externos, que serão constantemente analisados e experienciados pelas intérpretes. É assim que se parte para uma viagem com bilhete direto até ao INTERFERÊNCIAS.

27 de agosto de 2021. Connor Scott. to punch a cloud. 

Há um processo de interpretação de criação e da imaginação de final que se vai amplificando ao longo da peça.

Já no estúdio central ouvia-se Connor a falar, a escrever, a dançar e refletir cada movimento que seu corpo fazia. As paredes falavam por si, literalmente, e o equilíbrio era o seu propósito. Com uma residência que assenta numa investigação do equilíbrio, o artista pretende criar um encontro, talvez íntimo diz-se, entre o intérprete e o espectador. Olha-nos. Fala. Liga a alguém próximo de si. Faz referências a Célin Dion na voz da "Nanna".

Connor Scott, fotografia de Rute Leonardo

Há um processo de interpretação de criação e da imaginação de final que se vai amplificando ao longo da peça. Sobe escada. Desce Escada. Quando sobe estará na sua cabeça ou no ar? Quando desce pisa o espectro real? São questões que só o Connor nos poderá elucidar. Ainda que sem tempo para nos responder a grandes questões, o artista percorre as salas da COR e volta ao ponto de onde nunca partiu. Há a presença de uma (auto)descoberta onde a comédia de forma ousada, ou não, espreita para que os seus movimentos se estendam e se façam ouvir. É sobre diálogos, imagens, danças e um consolo de que Célin Dion não se ausenta, mesmo que seja do outro lado do telemóvel, com outra voz e em outra pessoa.

30 de agosto de 2021. Alice Azevedo e Lila Tiago. NŌS SUNT – Uma Exibição.

Alice Azevedo, NŌS SUNT – Uma Exibição, fotografia de Daniel Filipe

Agora chegara a vez de passar para o interior do Palácio numa noite onde o comboio e o vento se faziam ouvir mais do que nunca, ou talvez fosse a sala em que conversávamos com a Alice e a Lila que o evidenciasse.
A Alice e a Lila ja se conheciam antes. "Já éramos as duas famosas (riso)", diz Alice seguida de uma gargalhada. A Lila confirma que assim é, aliás, a Lila já conhecia a Alice antes de ambas se conhecerem mutuamente. Foi através do Fado Bicha que chegaram uma à outra. Lila decidiu escrever um fado sobre a Alice e desde então não se ficaram pelos cafés.

Lila Tiago, NŌS SUNT – Uma Exibição, fotografia de Daniel Filipe

Começaram a trabalhar em conjunto antes de chegar ao INTERFERÊNCIAS. O ano passado passaram pelo Teatro do Bairro Alto, através de um convite endereçado à Lila.
Com uma linguagem muito comum, ainda que para direções diferentes e interesses em que refletem cada vez mais, as artistas trazem a palco NŌS SUNT – Uma Exibição que se insere numa linha de trabalho de artistas trans e não bináries, numa sociedade de matriz patriarcal e cisheteronormativa, que dedicam a sua performance a um processo de procura e de um lugar de existência simultaneamente material, simbólico e criativo.

Temos uma Sátira e uma Sereia (e pouco mais podemos dizer). Alimentando-se de um espaço, ou melhor, espaços que se dividem por uma parede, entre um tanque e umas ruínas que restam de um casebre ou casa, as artistas mantêm-se em contacto com o público, sem se ver, em simultâneo. A terra, a água e o movimento que se insere num quase passeio recreativo por realidades das artes do circo e feiras de seres consideravelmente 'estranhos' que servem como meio de atração. É, desta forma, que a vivência do estigma imposto ao corpo trans e não binárie é "revisitada, assim como o cansaço e a conjuntura de um colapso estrutural".

Lila Tiago, NŌS SUNT – Uma Exibição, fotografia de Daniel Filipe

Passando por questões voltadas para a contracultura, no qual as artes mágicas e feitiçaria são também invocadas e ouvidas, "existe uma escolha nossa, de um dispositivo cénico em que não nos vemos uma a outra e tentamos perceber de que forma nos comunicaríamos estando em condições forçosamente distantes, nesta inclausura. A ideia de um feitiço surge da relação histórica de que as ideias de magia e feitiçaria têm com uma ideia de realidades de exclusão social, perseguição social, uma caça às bruxas, que é fenómeno misógino por excelência, isto porque as pessoas falam de uma caça às bruxas quando ouvem um homem branco que foi censurado por dizer uma coisa homofóbica na televisão, mas foi censurado e foi repreendido, porque nunca é realmente censurado. Essa censura que não se aplica a ele. O que é interessante, mas a caça às bruxas é um fenómeno misógino de controlo de corpos, de controlo de vivências e o contemporaneamente tem uma recuperação muito grande quer por comunidades feministas, mesmo de mulheres cis-hetero, quer da comunidade Trans, Queer, LGBTQI+ no geral, numa ótica de contracultura", explica Alice.

Lila acrescenta ainda que há também aqui uma importância da hereditariedade cultural, "houve ainda um outro processo relacionado sobre isso. Depois de conversas intermináveis e saltos conceptuais contínuos, chegarmos a falar, por exemplo, de imensas fórmulas que as pessoas falam ao longo do tempo e ainda hoje em dia usam que são simbólicas, que podem ter um peso histórico também simbólico, dotadas de proteção. Temos as rezas das igrejas católicas, mas também o 'quebranto' e o 'mau olhado', consideradas rezas que tinham exatamente esse propósito de retirar uma influência negativa que alguém tinha tido de outra pessoa, como proteção". Trouxe consigo recordações da avô Ermínia, na memória, para nos elucidar de alguns destes conceitos.

A ideia de um feitiço surge da relação histórica de que as ideias de magia e feitiçaria têm com uma ideia de realidades de exclusão social. - Alice Azevedo

Numa caminhada que vive do contacto, do contexto educativo e da reflexão constante dos corpos, as artistas pretendem levar o público a uma viagem "apropriada para toda a família".

Papel de Criador e Intérprete

"Às vezes é duro. Estamos a equilibrar o criador, o intérprete e a nós.", foram palavras de Gisela, mas que se tornaram unânimes nas vozes de todxs os artistas. Não é tarefa fácil.

Olga acredita que cada um dos elementos que preenche estas residências tem o seu processo. No que toca ao papel assumidamente partilhado pelas mesmas pessoas. É algo que já aconteceu anteriormente com o INTERFERÊNCIAS, é algo que coloca xs artistas num estado frenético. No entanto, a diretora concorda que as diferentes leituras, o poder olhar, observar e perceber o que é que pode dizer para melhorar, é um trabalho que gosta muito de fazer e que, muitas vezes, proporcionado pelo tempo de experiência que tem, resulta bem "estou num bom momento para fazer este trabalho". Isto através de um olhar quase "conselheiro" que não é possível distanciar-se de quem cria, quando parte do mesmo.

Prestes a interfir.

Assim se dá início a uma viagem conceptual, simbiótica, corporal, onde a memória se adequa 'lindamente'. Xs artistas acreditam que serão dias cheios de Interferências. O Bruno também. Muitas vozes interiores também o disseram. Agora, sim, prontas a interferirem.

Texto por Patrícia Silva
Fotografia de Rute Leonardo

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