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Decorar texto: o minucioso (e livre) exercício de memória dos atores

“Hoje em dia já vivo bem com isso, mas uma das coisas que sempre me…

Texto de Flavia Brito

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“Hoje em dia já vivo bem com isso, mas uma das coisas que sempre me chateou bastante é quando alguém te vai ver e assim que te encontra no final do espetáculo te diz: «Eu não sei como é que vocês conseguem decorar tanto texto!» Na verdade, o decorar texto é uma das coisas mais fáceis durante um processo de criação artística. Ou seja, o mais difícil é, depois, o que se faz com esse texto decorado”, afirma o ator José Redondo, clarificando que é “mais fácil” no sentido em que, embora possa ser muito trabalhoso, é também algo bastante pragmático e apenas o ponto de partida para que o processo de criação do ator possa acontecer, seja na televisão, no teatro ou no cinema.

Mas quantos de nós, espectadores, quando assistimos a um ator em cena reproduzindo longos diálogos — e muitas vezes complexos — na perfeição, não nos questionamos sobre como são capazes de fazê-lo? A verdade é que o processo e as técnicas para decorar textos variam e, muito, de pessoa para pessoa, estando amplamente ligados aos vários tipos de memória existentes e mais desenvolvidos em cada artista. Há quem grave o texto em áudio, quem o escreva, quem o repita vezes sem conta em voz alta, quem use as marcações e dinâmicas em palco como auxiliares… Não existem regras, nem um processo estanque.

Escrever, ler em voz alta, gravar… Tudo é válido

“No meu caso, como tenho bastante memória fotográfica, decoro muito pelas manchas gráficas das folhas que tenho à minha frente. Imaginemos que tenho um bloco de texto que tenho de decorar, divido mais ou menos aquilo, ou com cores ou com linhas, e já sei que depois, quando tenho o texto decorado e o estou a dizer, na minha cabeça, estou a ver a zona onde estou na folha, ou seja, é uma memória mais visual”, explica José Redondo.

Já Nuno Pinheiro partilha como memoriza diferentes textos de formas diversas: “Caso seja um texto mais em blocos ou monologado, leio e memorizo frase a frase. Decoro um parágrafo e depois escrevo-o várias vezes, normalmente, no próprio guião, até conseguir escrever o parágrafo todo sem hesitações. Muitas vezes hesito, bloqueio ou troco palavras sempre nos mesmos sítios. Assim, escrevendo-o, consigo identificar esses sítios e consigo memorizá-los corretamente ou criar mnemónicas para me lembrar. Conforme vou escrevendo e memorizando, vou dizendo o texto em voz alta a fazer ações: limpo a casa, lavo a louça, cozinho, etc., por forma a estar ocupado com alguma coisa enquanto digo o texto”.

Embora linear do ponto de vista do texto que está a ser aprendido, também neste processo um ator pode ter criatividade para encontrar a melhor forma de o conseguir fazer. “Também digo o texto para o ar como se estivesse a falar com alguém, a dizê-lo a alguém. Gravo partes do texto para me ouvir e garantir que a ideia que tenho para o texto, a divisão de ideias ou o tom, soam da forma que quero desenhar. Quando me sinto seguro, peço a alguém para me ouvir e para me corrigir palavras que me tenha esquecido ou trocado para a ser o mais exato possível.”

Nuno Pinheiro

Caso se trate de um diálogo, o ator prefere pedir às suas contracenas para memorizarem o texto em conjunto. “Como se trata de diálogos, prefiro encontrar sentidos de reposta e de encadeamento juntamente com os meus colegas. Caso não seja possível memorizar com os meus colegas, muitas vezes uso o mesmo processo que nos monólogos, mas uso muito a memória visual do próprio texto, identificando a localização das partes do texto, para que me lembre quando e onde dizer.”

Mas para trabalhar um monólogo ou diálogo, Nuno Pinheiro revela ter uma espécie de superstição: “Nunca troco de texto ou imprimo versões novas. Prefiro sempre usar exatamente o mesmo texto desde o início para que possa usar a memória visual como auxiliar de memória.”

Apesar de não considerar, de todo, o foco do trabalho criativo de um ator, José Redondo sublinha que este pode ser um processo “não assim tão fácil” e até “chato”, variando muito tendo o conta o guião em causa. “Há textos mais fáceis de decorar ou que são mais de imagens. Por exemplo, um texto mais poético, sem julgamento em relação ao texto, mas, de ponto de vista prático, sem grande coerência numa construção frásica, para decorar é mais difícil. Porque faz com que, no teu processo mental, não cries ligações. Quando tens uma frase que toda ela faz sentido e é obvia, tu gravas mais facilmente essa frase. Se for um texto poético, é mais difícil agarrar as ideias e depois construir ‘tintim por tintim’ o que lá está escrito.”

Os primeiros ensaios, a seguir aos de mesa, podem também ajudar nesta fase. “Quando se vai para o espaço, começar a montar o espetáculo, normalmente temos os papéis na mão e, muitas vezes, dependendo também do texto, eu decoro-o nesses primeiros ensaios de marcação e de experimentação. Com a repetição, vou interiorizando texto e é meio caminho andado para ele depois estar decorado”, afirma.

José Redondo (foto à esquerda de Vitorino Coragem)

Manter o “músculo” da memória trabalhado

Para Nuno Pinheiro, apesar de parecer um processo demorado, conforme vai avançando no texto, mais fácil e mais rápido se torna memorizar, escrever e dizê-lo. “Como costumam dizer: «a memória é um músculo». Depois de ter decorado o texto todo e de já haver um desenho ou coreografia de cena, repito-o e digo-o na memória desse desenho e todos os dias. Como parte do meu aquecimento, repito várias vezes o texto”, refere.
José Redondo concorda com a ideia de que decorar é um exercício, “como se fosse um músculo, que tem de ser praticado.” “Há algumas histórias engraçadas dos atores mais da velha guarda. Penso que era a Anna Paula, que trabalhou muito com o Teatro Experimental de Cascais, que todos os dias decorava uma notícia de jornal para manter o ‘músculo’ trabalhado, o hábito de decorar”.

Para manter exercitada a memória, quando não está a trabalhar, conta-nos o ator Eurico Lopes que procura sempre ter um texto, de vez em quando, para estudar, tentar decorar e não perder a prática. “Quando estamos no rodar de uma novela, por exemplo, em que é preciso decorar muito texto todos os dias, passados dez, quinze dias, já não nos custa nada. Nós lemos aquilo e, pelo menos eu, leio, decoro, digo e depois esqueço o que digo, porque há muita palha aqui dentro”, nota.

Texto. O ponto de partida para a criação artística

Para Eurico Lopes, existe outro ponto essencial neste processo: “Eu tento identificar-me com o texto. Acabei de fazer a Medeia. Mesmo um texto clássico, como foi a Medeia, tentei apropriá-lo, sentir o que está a transmitir e pô-lo meu. Assim, consigo muito mais facilmente decorá-lo”. Sejam textos clássicos, contemporâneos ou de novela, o ator acredita que, além de uma memória muito bem treinada, a apropriação do texto é um momento fulcral para conseguir aprendê-lo na sua totalidade. “Isto é quase aquela frase muito conhecida que é «o consciente do ator deve atuar sobre o inconsciente». Eu estou consciente daquilo que vou fazer, mas depois inconscientemente, com as sensações que aquelas palavras me dão, vou representar aquilo. E isso é importante. É quase como uma descontração muscular, mas com uma concentração total. É quase um paradoxo estar a falar nisto, mas é esse tipo de sensações. Porque nós temos de ter uma autenticidade em cena, que é a autenticidade que temos na vida. Portanto, temos de transportar a vida para aquele bocadinho, temos de o apropriar para nós. E um texto, quer queiramos, quer não, está fora de nós. Quando compreendo o texto, quando o torno meu, as palavras já me saem e é bonito nós todos os dias estarmos a dizer o mesmo texto, mas a pensarmos que estamos a fazer coisas diferentes.”

José Redondo realça ainda que o processo de decorar texto está ligado ao processo de criação, embora não seja o mesmo. “A importância de decorar o texto rapidamente é que, quanto mais depressa tu decoras, mais seguro fica durante o processo de criação. Há espetáculos em que quase que é bom decorar o texto antes de começar os ensaios. No entanto, isso também é perigoso, porque pode também acontecer que perca um bocado de vida o processo de criação”, reflete.

Eurico Lopes, com Carla Chambel, em Medeia

E o que fica quando o espetáculo chega ao fim?

Muitas vezes, os atores têm de fazer reposições de espetáculos que já realizaram há meses, por vezes anos. Nessas alturas, será que ainda se lembram dos textos antigos, mesmo já tendo realizado outros trabalhos – com outros textos – entretanto? Ou será que os têm de voltar a decorar? “É engraçado. Quando isso acontece, percebes que o texto está lá. É uma questão de pegar no texto, começar a dizê-lo e ele está lá. Estava a dizer que costumo apaga-lo, mas não apago. Eu arrumo lá atrás no disco rígido, fica lá numa pasta, depois tenho de ir à procura, mas ele está lá, fica na memória”, responde José.

Eurico Lopes foi Jasão em Medeia, de Eurípides, texto clássico que representou durante o último mês de setembro, nas ruínas do Teatro Romano de Lisboa. Agora, em novembro, o ator terá a reposição de outras duas peças que não foi possível realizar devido ao confinamento: o Édipo Rei, de Sófocles, e o Casal Aberto, de Dario Fo e Franca Ram, com que subiu a palco há dois anos. “Lá está, as mnemónicas são muito importantes. As sensações que vivi na altura vão-me ajudar a recordar o texto todo. São textos longos, de estilos diferentes, mas vou ter os dizer em novembro ainda”.

Texto por Flávia Brito
Fotografia via Pexels

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