fbpx
Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Doris Wishman, uma mulher “impossível de encaixar numa categoria”

Uma realizadora prolífica de filmes de mau gosto. Foi assim que, em 2002, o jornal…

Texto de Isabel Patrício

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Uma realizadora prolífica de filmes de mau gosto. Foi assim que, em 2002, o jornal The New York Times escolheu descrever a realizadora norte-americana Doris Wishman. Duas décadas depois, a obra desta cineasta que se tornou pioneira do género da sexploitation feminina (exploração sexual) está hoje em destaque, na 19.ª edição do IndieLisboa, que decorre até 8 de maio. E para acompanhar esta retrospetiva, a artista Peggy Ahswesh veio à capital portuguesa.

Numa entrevista por escrito, Peggy Ahwesh – que conheceu Doris Wishman nos anos 90 e desse encontro fez um zine – fala do trabalho dessa mulher que passou, nas palavras da organização do referido festival, “meio século na vanguarda da má reputação, tornando explícito com o seu cinema aquilo que não era permitido à imagem”, mas também da sua própria obra e de como nela o tempo é feito de camadas, que estão em conflito.

Gerador (G.) – Está em Lisboa para uma retrospetiva do trabalho de Doris Wishman. Em que momento descobriu a obra desta cineasta e o que fez ficar tão fascinada?

Peggy Ahwesh (P. A.) – No final dos anos 80, a ascensão dos clubes de vídeo tornou acessível um imenso inventário de cinema em fitas VHS, de todos os períodos e géneros. Com pouquíssimo dinheiro, [o espectador] podia dedicar-se totalmente às suas obsessões e curiosidades. Os filmes de Doris Wishman tinham imagens sensuais nas capas, slogans atrativos e títulos sugestivos e hilariantes. Destacavam-se nas prateleiras. Os filmes eram divertidos e contavam pequenas histórias do género da exploração sexual. Eram também invulgares, uma vez que eram bastantes e feitos por uma mulher desconhecida. Na altura, [ver o trabalho de] Doris era regressar a uma fase anterior do cinema. Esse túnel do tempo para o passado foi, em parte, a razão pela qual fiquei fascinada por ela.

G. – Conheceu Doris Wishman, presencialmente, em 1994, em Miami, nos Estados Unidos. O que motivou esse encontro e como o descreveria?

P. A. – Tive muitas conversas telefónicas animadas com Doris, antes de a conhecer em pessoa. Na primeira visita, fomos ver e entrevistar Doris à sex boutique, onde trabalhava ao balcão. Ela gostava da atenção, mas depreciava sempre o interesse das pessoas por ela. Fazer uma introspeção sobre a sua história e as suas conquistas deixava-a nervosa. Queria ver com os meus próprios olhos esta mulher incrível, que era impossível de encaixar numa categoria e era repleta de surpresas. A carreira dela abrangeu tantas décadas, mudanças de estilo e tendências que me pareceu importante conhecer a história dela em primeira mão. Inicialmente, pensei fazer um documento sobre ela ou sobre um dos guiões dela, mas ela era demasiado desconfiada e paranoica. Doris dizia que eu era uma artista e que ela não tinha interesse na arte, só no dinheiro.

G. – Ainda assim, em resultado desse encontro presencial, fez o zine The Films of Doris Wishman, obra na qual descreve a cineasta em causa como uma mulher “obcecada com os temas do estatuto social da mulher, da liberdade feminina, do drama contemporâneo do medo, da desconfiança e do desafio entre os sexos”. Todos estes temas teimam em ser relevantes, ainda hoje. É por isso (pelo menos, em parte) que o trabalho de Doris Wishman se tornou uma obra de culto?

P. A. – Sim. Na sua forma particular, Doris descrevia as tensões que ainda se sentem entre os sexos e as barreiras que se colocam às mulheres na sociedade. Os filmes das colónias nudistas são divertidos, mas o drama dos filmes feitos nos anos 60 [por Doris Wishman] acabava, normalmente, por tomar um tom mais negro e uma visão das mulheres que se assemelha a um pesadelo. Esses filmes mostram os problemas, mas não oferecem muitas soluções. A história dos desafios que se colocaram às mulheres naquele período está embebida nos filmes e continua a despertar fascínio. E o estilo estranho de filmar é uma [marca] encantadora de Doris para o público atual desconstruir e interpretar, já que hoje somos tão versados em como os filmes se devem parecer. É importante dizer, além disso, que, no final das contas, Doris foi mais do que um pouco subversiva com os temas de e para mulheres, dado que, na altura, os filmes eram vistos, sobretudo, por homens e a interpretação muda consoante o espectador.

 Nude on the Moon (1961) é uma longa-metragem de Doris Wishman que leva dois astronautas a descobrir uma colónia de nudistas na Lua. Fotografia cortesia de IndieLisboa.

G. – O que mudou desde essa altura na maneira como a indústria do cinema aborda estes temas?

P. A. – Os filmes de baixo orçamento são hoje muito mais sofisticados e profissionais. Os temas são praticamente os mesmos, mas a política em torno da representação das mulheres mudou dramaticamente. A exploração e vitimização das mulheres está fora de moda.

G. – Os filmes de Doris Wishman foram censurados. Da sua perspetiva, há hoje verdadeiramente mais liberdade para abordar estes temas? Ou, ao invés, há mais autocensura?

P. A. – Os filmes de Doris foram censurados, e isso é importante para a história da regulação e do controlo estatal da produção de imagens, mas [a cineasta em causa] e os outros realizados de filme do género da exploração sexual eram pessoas de negócios, que trabalhavam no sistema e em torno dele. Sabiam até onde podiam ir. Doris adorava criar enredos estranhos e elaborados para os seus filmes – tinha um imaginação retorcida –, mas a atividade sexual era o que atraía os homens para os cinemas.

G. – E de que forma foi o seu trabalho inspirado pela obra de Doris Wishman, ao longo dos anos?

P. A. – Tenho uma relação ambivalente com a estrutura narrativa e com o papel da personagem ficcional nos filmes. Adoro a forma como Doris usava apenas a narrativa suficiente para transmitir as suas ideias. A maneira como Doris juntava planos e transmitia uma história minimalista com atores não tão bons e com meios limitados. Parecia sempre que a narrativa estava a desmoronar-se ou que os elementos da vida real estavam a evidenciar-se. Trabalho de modo semelhante. As escolhas que ela fez (ao nível da forma e do conteúdo) foram reveladoras e deram-me imensas ideias sobre como fazer filmes, trabalhar com amigos que não são atores e expressar no ecrã a política em torno da mulher e do corpo feminino.

G. – Em 2002, The New York Times escreveu que Doris Wishman foi uma realizadora prolífica de filmes de mau gosto. O que acha que explica a fertilidade desta cineasta? Doris Wishman dedicou-se inicialmente ao cinema porque queria uma ocupação que tomasse todo o seu tempo. Acha que esse impulso permaneceu ao longo da carreira?

P. A. – Sim, Doris era maníaca. Mas se estivesse em causa um homem, isto não seria uma questão. Perguntamos porquê Joe Sarno fez tantos filmes?

G. – E no seu trabalho, tem a mesma abordagem, esse mesmo estímulo?

P. A. – Adoro trabalhar em ideias e materiais, brincar com imagens que encontro, filmar sem saber o que farei com as imagens, explorar novas tecnologias. É a forma como me expresso e como me conecto com o mundo. Além disso, os meus filmes são uma conversa, de uma forma subjetiva, com as ideias da literatura e com a teoria, [isto é], respondo ativamente aos escritores e pensadores que ando a ler.

G. – Doris Wishman dizia, com frequência, que não gostava dos filmes que fazia, mas que gostava, ainda assim, de os fazer. Como é que um cineasta vive e convive com esta dualidade?

P. A. – Os cineastas gostam do processo e das relações que estão implicadas na construção de um filme. Gostam de solucionar o puzzle que é fazer um filme. Doris não fazia autorreflexões e sempre disse que fazia os filmes por dinheiro e que o conteúdo não tinha importância. Às vezes, um filme antigo meu parece-me que foi feito por um estranho. As pessoas mudam ao longo dos anos. Doris era prática e estava sempre em movimento: ela tinha uma ideia, fazia o filme e seguia em frente, rumo à próxima ideia.

Bad Girls Go to Hell (1965) é a obra-prima por excelência de Doris Wishman. Neste filme, a hostilidade para com as mulheres e tentações pervertidas tornaram-se temas recorrentes, segundo a organização do IndieLisboa. Fotografia cortesia de IndieLisboa.

G. – Disse que às vezes o seu próprio trabalho lhe parece estranho. Reconhece a tal dualidade também no seu trabalho?

P. A. – Trabalho muito devagar e faço muita pesquisa. Acumulo muitos livros e pastas com artigos, fotos, música e listas de todos os tipos. Assim, [para mim], o filme é um produto de todas essas coisas e, quando termino, parece completo, pelo que é bom e saudável seguir em frente para a próxima ideia a ser desenvolvida.

G. – No seu trabalho, explora também os temas da sexualidade e do feminismo. O que a levou a escolher estes temas?

P. A. – Considero importante representar no ecrã os desafios da minha própria vida e dos tempos correntes.

G. – E que lugar ocupa o tempo na sua obra?

P. A. – Trabalho com muitas imagens que encontro e, quando se tem material do passado que é trabalhado no presente, há a sensação estranha de fazer camadas de tempos e de colocar diferentes períodos em conflito. Tal permite fazer uma avaliação crítica da política e da cultura.

Peggy Ahwesh está em Lisboa para acompanhar a retrospetiva do trabalho de Doris Wishman. Fotografia cortesia de IndieLisboa.

G. – Conhece a indústria de cinema portuguesa?

P. A. – Adoro o trabalho de Manoel de Oliveira e Pedro Costa, bem como, em termos de trabalhos mais recentes, a obra de Catarina Vasconcelos e Fern Silva.

G. – Na sua visão, quais são hoje os maiores desafios que o cinema enfrenta?

P. A. – Não consigo responder a esta grande questão, mas posso dizer que as plataformas de streaming têm agora o poder e os melhores filmes precisam de ser reinventados, se quisermos que os espectadores voltem às salas de cinema.

Texto de Isabel Patrício
Fotografia cortesia de IndieLisboa

Se queres ler mais entrevistas sobre cultura em Portugal, clica aqui.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Práticas de Escrita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

1 ABRIL 2024

Abuso de poder no ensino superior em Portugal

As práticas de assédio moral e sexual são uma realidade conhecida dos estudantes, investigadores, docentes e quadros técnicos do ensino superior. Nos próximos meses lançamos a investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, um trabalho jornalístico onde procuramos compreender as múltiplas dimensões de um problema estrutural.

Saber mais

8 DE ABRIL 2024

A pobreza em Portugal: entre números crescentes e realidades encobertas

Num cenário de inflação galopante, os salários baixos e a crise da habitação deixam a nu o cenário de fragilidade social em que vivem muitas pessoas no país. O número de indivíduos em situação de pobreza tem vindo a aumentar, mas o que nos dizem exatamente esses números sobre a realidade no país? Como se mede a pobreza e de que forma ela contribuiu para outros problemas, como a exclusão social?

Saber mais
A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0