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Entrevista a Surma: “Todas as músicas têm letra, mas eu decido não pôr”

Ver Surma em palco a improvisar sobre os seus loops é uma experiência sensorial ímpar,…

Texto de Andreia Monteiro

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Ver Surma em palco a improvisar sobre os seus loops é uma experiência sensorial ímpar, em que a sensação que imprime no público é a de uma viagem até um mundo por si criado, e em que a língua perde fronteiras geográficas e se designa surmês. Surma, os seus múltiplos instrumentos, dos quais a voz faz parte, e o público formam assim uma tribo ligada por uma corrente movida pela música. Também as obras do artista Pantónio têm a capacidade de imprimir a sensação de movimento, em que tudo está ligado por um elemento que flui por dentro de cada forma criada, que é intensa e pode simultaneamente transmitir a ideia de caos e calmia. Mas o que tem Surma que ver com Pantónio?

Fotografias de algumas obras de António Correia, o artista açoriano mais conhecido por Pantónio

Com a chegada da terceira edição do Muro – Festival de Arte Urbana, onde se celebra a vitalidade artística da cidade de Lisboa, a GAU – Galeria de Arte Urbana, entidade que organiza o festival, desafiou o Gerador para pensar em ideias criativas para a programação de 2019 do Muro que, acima de tudo, envolvessem música. Desse desafio, um dos momentos que nasceu foi a criação de harmonizações entre música e obras visuais. Assim, um dos desafios do Gerador foi parar às mãos de Surma, para que criasse de raiz uma sonoridade original para a obra de António Correia, mais conhecido como Pantónio, inserida no festival.

Em entrevista ao Gerador, Surma falou-nos sobre o seu processo para compor música e, em particular, sobre a música que andou a preparar para servir de banda sonora da obra de Pantónio. Começa por nos dizer que o seu processo de composição não é regular e que tem muito que ver com o seu ciclo de horas de sono. “Não tenho aquele ciclo de oito horas de sono que as pessoas costumam ter. Acordo de três em três horas, ou de quatro em quatro horas, com coisas na cabeça. O meu telemóvel, no dictafone, está cheio de zumbidos e melodias, em que estou meio a dormir, e gravo. Depois, no outro dia vejo se está fixe, ou não, para compor aquilo à séria. A maior parte das vezes está muito mau e esqueço. Mas acordo muitas vezes com composições na cabeça para trabalhar, mas não é nada regular. Um dia, posso fazer uma música rock, noutro uma música jazz, noutro uma música pimba, nunca se sabe. Mas não tenho assim uma linha regular de compor em determinado género ou dia, estou sempre a compor e tenho muitas coisas a acontecer na cabeça.”

Surma na Central Gerador, em entrevista

 

Enquanto existem artistas que se inspiram em determinada banda, ou som, para Surma é importante haver silêncio na hora de compor músicas. “Eu tenho de estar em silêncio, e a isolação inspira-me muito. Tenho de estar uma semana sem ouvir música para compor à séria, se não vou buscar muitas influências do que estou a ouvir. Óbvio que vou sempre buscar alguma influência. É impossível fazer uma coisa completamente nova, mas tento ao máximo não ouvir nada e limpar a cabeça de tudo.” É este “detox” musical que lhe dá uma “garra incrível”, pois, passado uma semana, sem ouvir música, fica revoltada e compõe “mesmo à séria.”

Música, dança, cinema e agora, com a participação na 3.ª edição do Muro, arte urbana. Surma já trabalhou em comunhão com todas estas artes, que permitem que a sua música ganhe novas cores. Revela-nos que é a primeira vez que faz uma banda sonora para uma obra de arte urbana e que não conhecia o trabalho de Pantónio, mas “pus logo like a página. Adorei mesmo a cena dele. Transportou-me para uma cena do Japão, não sei porquê. Não é nada japonesa, mas transportou-me para aí. Talvez por ver algo minimalista, e todos os traços dele são incríveis. Na música para o Pantónio, inspirei-me muito no Tōru Takemitsu, que é um compositor japonês que admiro imenso e, lá está, levou-me para essa vibe do senhor Tōru. Fiz uma fritaria autêntica e adorei o trabalho do Pantónio. Faz-me sentir alegria e tristeza ao mesmo tempo, e isso é incrível. É raro um artista fazer-me sentir os dois sentimentos ao mesmo tempo. Adorei fazer a banda sonora para a obra dele”, admite Surma enquanto olha para fotografias das obras de Pantónio relembrando o sentimento de caos e minimalismo que as obras lhe transmitiram aquando da composição.

Surma e as fotografias de algumas obras de Pantónio

Não tendo consigo os sintetizadores, guitarras ou baixo aquando da composição desta música, acabou por fazer tudo no Logic (programa para criar, editar e misturar músicas). Conta-nos que o resultado foi uma música com muitos sons, que gosta de criar de raiz. “Tenho aqui um da minha gata a miar, outro do teclado do meu computador. Quis criar uma coisa orgânica, mesmo não o sendo ao gravar. Quis pôr alguns sons mais orgânicos para não ser tudo digital. Tem texturinhas, tem várias coisas a acontecer de ambiências e várias manipulações de som. Quis também fazer uma experiência audível e que criasse uma ligação com o trabalho dele (Pantónio), com sons orgânicos e urbanos.” De voz optou por não incluir nada, com exceção de um grito que depois manipulou no programa de edição, “com muito reverb. Não perco tempo a fazer música, perco tempo a editar cada som. Edito muito os sons. Tentei criar uma coisa urbana e orgânica dentro do trabalho do Pantónio.”

 

Foi nesta componente urbana e orgânica, que Surma mais se sentiu ligada ao trabalho do artista açoriano. Diz-nos que, tal como ela manipula os sons, também Pantónio manipula a sua arte “em termos de traço, cria uma coisa 3D incrível. A parte orgânica e urbana dos dois, acho que liga muito bem, em termos artísticos e áudio.”

Surma a ver algumas obras de Pantónio

Surma: de estudante de jazz a multi-instrumentista que viajou para a música eletrónica

Débora Umbelino, mais conhecida por Surma, é natural de Leiria. Por volta dos oito anos, foi-lhe diagnosticado hiperatividade e défice de atenção. Após meio ano de medicação, a sua mãe decidiu falar com o médico para que deixasse de a tomar, “porque eu estava muito adormecida com a medicação, tirava-me a personalidade toda. A música acho que foi a minha medicação desde muito miúda. Com cinco anos, comecei a aprender a tocar bateria e desisti, porque me meteram na flauta e não queria aquilo. Com dez/onze anos, comecei na guitarra e piano clássico, mas acabei por desistir também. Ou seja, sempre estive muito ligada à aprendizagem da música. Com uns doze anos, tive uma banda de covers de rockalhada e acho que isso me focou. A minha cabeça cria um universo muito próprio dentro dela quando começo a tocar qualquer coisa. Ou seja, entro num mundo completamente à parte. Se me fores ver tocar e fores lá ao meio dizer-me olá, acho que acordo, mas estou mesmo apagada. Acho que na música é isso mesmo. Cria todo um efeito de medicação dentro de mim. É uma coisa muito estranha, mas acho que isso me ajudou a focar desde miúda, sem precisar da medicação e de coisas fortíssimas a acontecer.”

Surma em entrevista ao Gerador

Uma das suas grandes influências musicais, desde pequenina, foi o seu pai, que lhe incutiu o gosto por ouvir música. Foi aos dezassete anos que veio para Lisboa, estudar jazz no Hot Clube. Começou por estudar voz durante dois anos, mas sentia falta de algo mais. Então, decidiu apostar num amor antigo: o contrabaixo. “Sempre ouvi muito Charles Mingus, desde a infância, que é um contrabaixista incrível. Depois pensei que o contrabaixo sempre foi aquele instrumento que quis aprender, desde miúda. Mas aquilo era muito alto. Tem um parafuso e tinha de estar no mínimo e, ainda assim, tinha de estar de pontas para chegar lá acima. Foi aquela coisa de, contrabaixo e voz, porque não? Então, decidi ir para contrabaixo, que é um instrumento mesmo difícil, e andei com os dedos todos em sangue nas primeiras semanas, mas foi uma experiência incrível.”

Porém, não se via enquanto música de jazz a 100 %. Sempre sentiu vontade de descobrir a eletrónica e começou a fazê-lo de forma autodidata. “Acho que o jazz foi a transição disso mesmo, da parte mais orgânica para a parte mais freakalhada de toda a cena. Toda a parte de aprender contrabaixo e voz me deu bastantes bases para ir para a base eletrónica.”

 

Assim, nasce Surma, o nome de uma tribo da Etiópia que ficou a conhecer num documentário. “Os Surma são uma tribo da Etiópia e têm uns rituais mesmo engraçados, com muita dança e música à mistura e não pensam em nada dos meios materiais. Achei muita piada às pinturas que usam e a um modo muito próprio de levarem a vida. Decidi dar esse nome por isso mesmo. Porque não ligar a Surma àquela ligação humana e espiritual?” Desafiada a pensar se esta escolha do nome de uma tribo para o seu nome artístico podia estar ligada à vontade de criar, como o seu público e instrumentos, uma tribo musical, diz-nos que “a Surma é muitas pessoas e quero que as pessoas façam parte da Surma, por isso, porque não ser todos uma tribo?”

“Hemma”, o primeiro single do disco de estreia de Surma – Antwerpen –, lançado em Outubro de 2017, e que lhe valeu uma nomeação para os Prémios Autores SPA referentes à melhor canção do ano.

Em palco, a Débora transforma-se e leva-nos a viajar para o seu mundo. Porém, revela que nem sempre foi assim, mas sim algo que nasceu há cerca de dois anos com os concertos que tem dado no estrageiro, em países como a Holanda, EUA, Itália ou Islândia, e que a fizeram ganhar uma “liberdade criativa totalmente diferente da que eu tinha inicialmente no projeto. No início, era muito retida ainda, era muito tímida e tinha medo de ser eu mesma em palco. Tocar lá fora deu-me essa liberdade, porque estou a tocar para malta desconhecida e sinto-me mais confortável no palco em si. Não sei o que se passou, mas de há dois anos para cá comecei a flutuar em palco. O meu cérebro apaga-se ao máximo, ou seja, não penso em nada e assim que toco numa tecla parece que sou levada por um demónio ou sou possuída por qualquer coisa dentro de mim. Vêm várias pessoas ter comigo a perguntar se estou bem. Há fotos em que fico com os olhos virados para cima e parece que estou completamente possuída. Fico mesmo em transe máximo.”

Surma ao vivo na Antena 3, num showcase em Vila Real (2018)

Basta o som de uma corda de guitarra ou de um sintetizador, que paire no ar por um minuto, e Surma entra num mundo à parte. Mundo esse que ganha ainda uma língua nova: o surmês. Apesar de todas as músicas terem uma letra, a artista opta por não a acrescentar nas gravações. “Crio melodias muito próprias, e se meter a letra lá, tira a magia de tudo. Quis criar o surmês por causa disso mesmo, e explorar muito a base da fonética. Quis que a Surma fosse todo o mundo e não só inglês, ou português, ou espanhol. Porquê só uma língua e porque não explorar o mundo da fonética em que cada pessoa pode interpretar ao seu estilo? Decidi criar um dicionário Suromático. Acho que dá uma grande liberdade ao vivo. Se hoje fores ver um concerto meu e amanhã outro, vai ser totalmente diferente em termos de sons que eu faço.” No futuro, não põe de parte a possibilidade de meter letras nas suas músicas, mas por agora gosta de deixar espaço para a interpretação do público, que já lhe tem enviado, de várias partes do mundo, letras de músicas resultantes da sua interpretação. “Todas as músicas têm letra, mas eu decido não pôr. Porque não as pessoas interpretarem do seu modo próprio?”

“Drog”, música de Surma composta para o filme Snu (2019)

Uma nova oportunidade para uma dose dupla de interpretação chega já entre os dias 23 e 26 de maio, no Lumiar, em que podes ver o casamento da obra de Pantónio com a música da Surma. O processo é simples. Basta trazeres uns auscultadores, leres com o teu telefone o QR Code que vai estar numa placa junto a cada obra visual e, rapidamente, vais parar ao site do Muro onde estará a música da Surma, assim como as músicas do NBC e Tó Trips, igualmente desafiados para se juntarem às obras de Peeta e Third, respetivamente, nesta edição do Muro. Se não tiveres auscultadores ou um leitor de QR Code, podes ir até um ponto de apoio no local para te ajudar a viver a harmonização. Quanto à sua participação no Muro, Surma admite que quer estar presente no festival para ver o resultado final. “Criei umas coisas em stereo, por isso ouvir com fones é fixe, porque há sons a viajar de fone para fone. Acho que vai ser uma experiência interessante.”

Surma perante obras de Pantónio que a fizeram desenvolver “todo um mundo misterioso, obscuro, alegre… um misto de vários sentimentos, uma batalha entre todos eles.”

Texto de Andreia Monteiro
Fotografias de Andreia Mayer
O Gerador é parceiro do Muro – Festival de Arte Urbana

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