Irma, que chegou aos olhos do grande público como atriz, encontra no canto e composição uma forma de expressão que a acompanha desde criança. Em 2020, estreou-se, na música em nome próprio, com o seu álbum Primavera, em que foi a autora das músicas e letras das nove canções que o compõem. Porém, o seu single de apresentação, “A Qualquer Hora”, foi escrito dez anos antes da sua publicação, uma canção que nos lembra de que “não há condição para amar”.
Foi durante os confinamentos, devido à pandemia da covid-19, que Irma se apercebeu de que queria ir para além das canções de amor que nos deu a conhecer no seu primeiro álbum, dando voz também aos temas que preenchem o seu sentido de missão. “Há direitos e deveres quando se é artista, e acho que há um dever muito importante que é o de levantarmos questões. Acho que há um lugar na nossa vida em que nos questionamos sobre o que estamos aqui a fazer e qual é o nosso profundo sentido de missão”, explana Irma em entrevista ao Gerador. Assim, em 2022, apresenta-nos o EP Filha da Tuga, que surge como “uma autoexpressão das suas origens e do seu ser”, como se lê em comunicado de imprensa.
Nascida em Lisboa, a sua identidade deixa transparecer uma forte influência da cultura angolana. Filha de pais angolanos, foi criada pelos seus avós maternos que vieram, também, de Angola. “Cresci com a cultura angolana em casa, os verões eram mais felizes com a vinda dos meus primos de Angola e com as corridas infinitas no corredor da casa de Odivelas da minha tia Elisa”, conta Irma num post que publicou na sua página de Instagram. Foi aos 12 anos que a sua ligação com a música se estreitou ao herdar uma guitarra da sua mãe, momento em que começa a explorar este instrumento e a escrever canções, primeiro dentro do seu quarto e, aos poucos, com a porta aberta para o mundo. Licenciou-se em Artes Performativas por acreditar que a música, teatro e dança são áreas que se complementam, somando já vários papéis enquanto atriz, tanto em televisão, como em musicais. Como música, conta já com o álbum Primavera (2020), o single “Vejo-te Aqui” (2021), com Tiago Nacarato, e o EP Filha da Tuga (2022).
Ao contrário do que aconteceu no seu disco de estreia, neste EP Irma rodeou-se de pessoas que admira para escrever canções a mais de duas mãos. “Senti que, quando escrevemos com outras pessoas, as portas abrem-se e os limites são muito mais amplos”, conta-nos. Assim, vemos nascer músicas com a colaboração de pessoas como Toty Sa’Med — que canta também no tema “Querer” — , JustJon, Agir e Carolina Deslandes. O EP abre com o single homónimo “Filha da Tuga” e conta com mais quatro canções: “Era Só Eu”, “Próxima Vez”, “Querer” ft. Toty Sa’Med”, “MIKADO” e “Fica Comigo”.
Foi no início da tarde do passado dia 5 de agosto que nos encontrámos com Irma nos jardins da Gulbenkian para falarmos mais sobre o seu novo EP e este grito que com ele inaugura, fazendo uma viagem por cada canção, onde descobrimos marcas do seu crescimento e histórias pessoais que foi arrecadando ao longo dos anos. Junta-te à nossa conversa, já de seguida.


Gerador (G.) — Com este EP, Filha da Tuga, dás “um grito de passagem para a margem da realidade, onde há lugar para falar” de quem és, de onde vens, e para onde queres ir. Acrescentas ainda que “vem para contar mais histórias para além das histórias de amor”. O que te fez sentir que este era o momento para dares corpo a este teu grito que vai para lá das histórias de amor?
Irma (I.) — O Primavera, que foi o meu primeiro álbum, foi transversal a dez anos de vida. Há lá temas que foram feitos há dez anos, então sinto que é uma coisa meio espacial, temporalmente. As histórias de amor são transversais à vida humana, então há muitas histórias de amor, mas houve um momento na pandemia — durante a qual acho que todos tivemos muito tempo para refletir — em que pensei que há direitos e deveres quando se é artista e acho que há um dever muito importante que é o de levantarmos questões. Acho que há um lugar na nossa vida em que nos questionamos sobre o que estamos aqui a fazer e qual é o nosso profundo sentido de missão. E senti que as histórias de amor servem sempre, mas é como aquela roupa básica, como aquela t-shirt que fica sempre bem com os jeans. Depois, pensei: “Se calhar, gostava de falar sobre mais assuntos.” E, [neste EP], o tema que também fala de amor, não entre homem e mulher, mas de amor a mim própria, é o “Filha da Tuga”. Gosto sempre de acreditar naquele provérbio que diz que sozinhos vamos mais rápido, mas juntos vamos mais longe. E comecei a pensar: “É tão bom trabalhar com outras pessoas.” O meu primeiro álbum foi todo escrito por mim. E senti que, quando escrevemos com outras pessoas, as portas abrem-se e os limites são muito mais amplos. Temos muito mais portas de opção, muito mais janelas. De repente, estava em estúdio com a Carolina [Deslandes] e o Agir, que são muito meus amigos e conhecem muito bem a minha história, e começámos a falar sobre a vida dos meus avós, dos meus pais. Perdi a minha mãe quando tinha oito anos e o meu pai abandonou-me, pelo que cresci com os meus avós maternos, e, então, as minhas conversas com a minha avó são muito sobre a vida dos meus pais em Angola — que, tal como os meus avós, nasceram em Angola —, a vinda dos meus avós para Portugal, o recomeçar uma vida nova. É uma conversa que costumo ter imensas vezes e estávamos a tê-la, ali [no estúdio], e começámos a escrever o tema, que surgiu desta forma superorgânica. Portanto, este grito de que falo é o questionar do que se faz para além do que está à vista; o que posso contar que não esteja à vista e que possa, de alguma forma, tocar mais do que canções de amor. É disto que este EP fala.


G. — Este trabalho é descrito no seu comunicado de imprensa como “uma autoexpressão” das tuas origens e do teu ser. Comecemos por nos centrar nas tuas origens, que, aliás, nos são contadas no single homónimo deste projeto e que abre o EP – “Filha da Tuga”. Nessa canção, cantas: “com um passado angolano, um futuro lisboeta”. Como vives esta relação entre passado e futuro e dos diferentes espaços?
I. — “Um passado angolano, um futuro lisboeta” não quer, de todo, dizer para o passado ir lá para trás. As pessoas são feitas de passado, presente e futuro. O meu passado é o meu presente e determina o meu futuro, também. Mas acredito que há muitas coisas boas e muitas más. Por exemplo, no outro dia, estava a escrever, para uma residência artística, sobre o abandono, que é uma coisa em que trabalho imenso na terapia devido a esta base de pai e mãe que me faltou e, no outro dia, estava a falar com uns miúdos numa instituição ao pé da rua de S. Bento e dizia-lhes que acredito que uma pessoa tem infinitas possibilidades para onde levar a sua vida, independentemente do que possa acontecer. E isto é altamente inspirador, porque não podes ficar presa a qualquer coisa má que te aconteça na vida. E esta coisa do “passado angolano e futuro lisboeta” não é, de todo, renegar o passado, mas é dizer que sou feita disto e disto, não sou 50–50, sou 100–100. Tenho a minha cultura e tenho o meu futuro à frente, que é feito dessa cultura e que me pode levar para onde quiser. E, sim, é com muito orgulho que tenho esta cultura dentro de casa. Cresci com os meus avós com uma cultura angolana muito presente e esta frase vem daí.
G. — Já nos contaste que esta música surgiu num dia em que decidiste ir para estúdio e que a mesma foi escrita por ti, pela Carolina Deslandes e pelo Agir. Porque viste neles os aliados ideais para escreverem esta história contigo?
I. — Sabes uma coisa? Esta música não foi só escrita juntamente com eles. Foi escrita pelos meus avós, pela minha mãe. Esta música foi escrita pela minha história, pela minha vida. O que encontrei neles? Não sei. Não encontrei, nós encontrámo-nos ali, naquele dia, no estúdio. No outro dia, estava a ver um concerto com o meu baixista, o Pity, e ele estava a dizer-me: “O que faz um grupo de músicos tocar tudo ao mesmo tempo e bem? Por exemplo, numa música de improviso, o que faz aquelas pessoas unirem-se?” É a intuição, não é? É qualquer coisa que toda a gente sente que faz com que algo aconteça. E acho que esta música surgiu assim. Encontramo-nos no estúdio, a música nasceu, gravámos a música nesse mesmo dia em que a escrevemos, no próprio dia enviei-a aos meus músicos, à minha equipa, a amigos, e nasceu daquele lugar, zero ensaiado ou programado. Não sei se é uma questão de o que vi neles para escrever esta canção. Acho que nos vimos os três ali, encontrámo-nos os três.


G. — Como referiste anteriormente, durante o confinamento, começaste a levantar questões relacionadas com o teu sentido de missão e o que poderias fazer com ele na tua música. Achas que o facto de serem três amigos muito próximos te ajudou a explorar este teu lado de quereres escrever uma música que não fosse sobre as tais histórias de amor? Terás encontrado neles um colo que te ajudou a encontrar as palavras para expressar essa história, que é a tua, em canção?
I. — Sim. Acho que a minha visão da minha história é diferente da de alguém de fora. Por isso, diz-se que as histórias têm sempre três versões: a minha, a tua e a verdadeira. Acho que esta coisa de ter pessoas a ouvirem a minha história e de a contarem [comigo] só vai enriquecer a forma como ela é contada.


G. — Logo no início da música “Filha da Tuga” cantas os versos — “sou branca para os pretos, para os brancos sou preta”. Sentes que há falta de representatividade e visibilidade para o tema do colorismo?
I. — Acho que existe colorismo. Sou nitidamente uma pessoa privilegiada, porque sei que passo por uma miúda que não é mixed [mestiça]. Acho que sou uma miúda altamente privilegiada e que o privilégio é uma coisa muito tricky [delicada]. O privilégio não pode ser visto como uma coletividade. Sinto que tem de ser visto vida a vida. Um negro com uma estrutura familiar boa, rico, com uma vida estável, é mais privilegiado em termos de vida do que um branco pobre, sem pais e doente. Eu não ser menosprezada, criticada e julgada não é um privilégio, é um direito que tenho. Ninguém tem o direito de humilhar alguém pela sua cor — estou a falar de uma pessoa negra, neste caso. Isso não é sequer um privilégio, é um direito que aquela pessoa deve ter. E que lutemos sempre por isso. Mas esta frase, “sou branca para os pretos, para os brancos sou preta”, não vem dum lugar de vitimização. Como atriz, já senti que é sempre muito difícil encaixarem-me, [principalmente] quando era mais jovem. Hoje em dia, já não preciso de ter pais, por exemplo, nas novelas. Mas quando era mais jovem, precisava de ter pais e era sempre mais difícil. Por isso é que fiz a [telenovela] Única Mulher — de repente, havia negros e tinha uma mãe negra e um pai branco. Já senti isso, mas sei perfeitamente que tenho mais privilégios do que um negro. Dizer que “sou branca para os pretos, para os brancos sou preta” vem confirmar, também, com esta polémica, [que existem] brancos, muitos deles desinformados, a ofenderem isto tudo e a prescreverem coisas absurdas, e também havia negros a espezinharem-me, a dizerem que não tenho direito de falar sobre isto, porque sou branca, que nem carapinha tenho, que não tenho direito de falar sobre isto, porque desde quando é que um black [negro] me rejeita... e eu a pensar – “estás a rejeitar-me, não me estás a aceitar, não me estás a ouvir sequer”. Ao mesmo tempo, sinto que esta música se cumpre só por abrir diálogo. Acho que esta música, só por estar a abrir conversa, já tem uma meta cumprida.
G. — Num post que fizeste no Instagram, escreveste: “Esta canção mexe com muitas feridas ainda abertas em muita gente. Porém, também acho que ela se cumpre no debate e diálogo que está iniciado, na possibilidade que nos permite entender melhor o outro, as suas mágoas e cicatrizes e de dar um pequeno contributo numa necessária reconciliação coletiva”. Antes de partilhares esta música com toda a gente, tinhas ideia de quanto ela podia gerar questões e via-la como uma possibilidade de ponte de diálogo?
I. — Sempre achei que abriria diálogo, nunca achei que houvesse tanta agressão. Porque abrir diálogo e agredir são duas coisas diferentes. E a Internet tem este poder absurdo que é estares atrás de um telefone ou de um computador e, de repente, parece que podes tudo. E também tem esta coisa de dividir os polos – ou és dali, ou és dali. E a inteligência, ou a informação, adquire-se com opinião, também. Tu lês livros e o que faz de ti inteligente não é decorares aquele livro, é entenderes esse livro consoante a tua história. É teres opinião sobre aquilo. Esta forma bidimensional de ver o mundo é muito ingrata, e a culpa também é nossa no sentido em que vivemos neste mundo da Disney e dos heróis em que temos o vilão e o herói. E a vida não é assim, há um caminho muito grande entre o bem e o mal. Temos de pensar pela nossa cabeça, também. Sinto que este é um tema que divide, que causa controvérsia e que as pessoas, depois, também ficam com medo de falar ou de tecer alguma opinião – os brancos, porque não se sentem no direito de falar; eu, porque, pelos vistos, não sou aceite; o negro, porque tem de aceitar aquela opinião, porque se não... é tramado.


G. — Sobre estas questões de aceitação e pertença, cantas também os versos: “Se me vires pôr o pé na porta da minha cidade, eu sou de casa e sou cara da novidade.” Ao longo da tua vida, sentiste que te era tirado o lugar de pertença?
I. — Sim, mas é a minha vida. Por exemplo, fiz um musical do Eusébio, há cerca de seis, sete anos. Lembro-me de que aquilo tinha duas partes, uma em Portugal e outra em Moçambique, que é de onde vem o Eusébio. Fiz todos os quadros de Moçambique e lembro-me de que a malta dizia – “és tão exótica, és donde”? Depois, havia malta que dizia – “ah, mas ela não é black [negra], então, mas ela é o quê?” Ofende? Não ofende e eu entendo, mas ficas sempre ali no meio. Não é um lugar mau, que magoa. Mais uma vez, digo, há coisas que não me acontecem, como acontece, por exemplo, aos meus primos que entram numa loja e andam atrás deles. Agora, o “Filha da Tuga” não se vitimiza, nem vai para esse lugar de dor. Vai para um lugar de esta é a minha vida e é assim que me sinto e me vejo. Este tema também me veio criar questões relacionadas com a liberdade de expressão, que é uma coisa muito ambígua. Vi comentários do género: “Agora vivemos num mundo onde toda a gente pode dizer aquilo que lhe apetece.” Ainda bem que isso acontece, mas a minha liberdade vai até ao momento em que mexe com a liberdade do outro. A partir do momento em que magoo, não sou livre. Ainda assim, há pessoas que magoam outras e são livres de o fazer, mas depois são julgadas e consideradas uma pessoa má. Mas só me apercebi desta coisa da liberdade de expressão depois do “Filha da Tuga” e da história com o Pedro Abrunhosa, que me fizeram pensar – “caraças, não somos assim tão livres”. Tenho a certeza de que se isto me tivesse acontecido há um ano e que se eu não estivesse estável emocionalmente, era razão para eu ter entrado num problema de saúde mental, porque as agressões são muito graves. Ameaças são graves. Mas, pronto, transforma.


G. — Pegando no tema do privilégio de que falávamos há pouco, acreditas que quando se fala de questões relacionadas com o racismo na primeira pessoa é também importante haver um posicionamento do privilégio de cada uma por esta vivência não ser igual para todas as pessoas afrodescendentes?
I. — Sim, senti vontade de falar sobre isso, por exemplo no meu post [de Instagram]. Deixar consciente esta questão de ser uma pessoa privilegiada, mas também sinto que existe uma necessidade de te autoflagelares porque és privilegiada. Isto é, no meio desta polémica toda, senti que, de repente, és privilegiada e não podes falar sobre assuntos. Acho que podes falar, tal como podes não sofrer de violência doméstica e falar sobre ela, ou não ter sofrido bullying e falar sobre ele, ou mesmo ter sofrido bullying e não falar sobre ele. Não sinto que, porque se fala sobre racismo, se tenha de falar sobre o privilégio. Aliás, nunca achei que esta música falasse sobre racismo. Eu não sofro de racismo. A minha família, os meus primos, sim. Mas sinto que, sem ser estas coisas pequenas de não conseguir fazer um projeto porque não se sabe muito bem quais são os pais que a personagem vai ter, que são uma condição, nunca ninguém me agrediu verbalmente. Portanto, também não falei sobre isso, sobre racismo puro e duro. Esta frase, “sou branca para os pretos, para os brancos sou preta” fala sobre colorismo, mas não vem de um lugar de dor, vem de um lugar que é meu e [de dizer que] não é um big deal [grande assunto].
G. — Nesta música, dizes também que “sou a mistura da terra e da descoberta”, um verso que já explicaste ter sido mal interpretado e com o qual querias retratar “a descoberta” “do reinício de vida dos teus avós, num país novo, em 1975, em descobrir um recomeço”. Ainda nesse mesmo post, escreveste: “Sei também que a nossa história comum nos foi contada de uma forma enviesada, romantizada, mas graças à luta de muita gente estamos cada vez mais conscientes da realidade, da outra face da moeda.” Alguns ativistas, nos últimos anos, têm alertado para a força de palavras como “descoberta” por considerarem que têm este pendor lusotropicalista. De que forma é que tu, tendo em conta a tua própria história, te relacionas com estas palavras?
I. — Sim, acho que qualquer pessoa que leia duas páginas de um livro sobre racismo sabe perfeitamente que não pode romantizar os Descobrimentos. Quando pus “sou uma mistura da terra e da descoberta”, digo que sou filha da reconstrução da vida dos meus avós em Portugal, porque eles saíram de lá [Angola], em 1975, com uma filha em cada braço, e tiveram de recomeçar tudo, descobrir um país novo, e vem daqui a palavra “descoberta”. Também o “tuga” foi uma palavra superfalada na canção e há coisas, aqui, em que sinto que ficámos parados no tempo. Por exemplo, sei que, para um caminho de destruição do racismo, há termos que temos de parar de usar, como “mulato”, cuja etimologia da palavra vem do cruzamento de uma mula com uma égua, então é lógico que não vamos dizer “mulato”. Não vamos usar expressões como “a fome é negra”. Consigo entender estas coisas e entender que, tirando estes hábitos que estão completamente enraizados, os nossos filhos vão começar a crescer com os ouvidos limpos e com o cérebro renovado. Agora, a palavra “tuga”, hoje em dia, não tem o peso que tinha antes. As coisas vão passando no tempo e vão-se transformando. Alguma vez, ao dizer “tuga”, me estou a referir ao colonizador que maltratou o negro? Nunca na vida. O “tuga” surge como numa conversa em que perguntas – “aquela pessoa é zuca? Não, é tuga, nasceu cá”. E o ser “Filha da Tuga” quer dizer exatamente isto – tenho estas origens todas e estou aqui, em Portugal, e bebo do Fado, da sardinha, dos Santos Populares.


(G.) — O racismo, ou a sua existência, não é uma opinião. Foi também essa mensagem que quiseste passar com este single?
I. — O racismo não é uma opinião, mas não acho que fale disso na canção. Mas isto, para mim, nem é uma questão. Isto de se vivemos num país racista ou não, vivemos, à proporção da Europa. Nos Estados Unidos, não tem nada que ver. Acho que existe muito esta coisa de tirar do contexto. Pôr o contexto americano, aqui, é completamente diferente. É esta coisa de não ver as coisas num coletivo, mas sim de uma forma individual, é mesmo importante.
G. — “Imaginamos as mãos dadas, ao mesmo tempo que sofremos […] E se não te disser que não sei existir quando não olhas para mim vais saber que estou a mentir, porque já me disseste, porque já me juraste que em toda a tua vida era só eu quem tu vias” [“Era Só Eu”]. Em contraponto, como tem sido o processo de descobrires que a relação que tens contigo mesma é a mais importante da tua vida?
I. — Licenciei-me em Teatro e cantei em bares toda a minha vida para pagar a faculdade, mas trabalhei sempre muito como atriz e a minha profissão acontecia. De repente, sentir-me capaz de fazer aquilo de que gosto e que me move, e ter posto os meus temas cá fora, fez com que me sentisse muito capaz. Acho que também vem dum processo de terapia, que faço há mais de um ano, e esta relação tem-se transformado, tem-me elevado, tem-me feito sentir muito capaz, forte. Tenho percebido os triggers [gatilhos] da vida, de onde a vida vem, como é que ela acontece. E a relação comigo é uma relação preciosa. E tenho cada vez mais certeza de que a história que tivemos é adubo para a vida, é o que nos move. Portanto, a relação comigo tem sido uma descoberta. Lembro-me de que, em relação ao “Filha da Tuga”, houve uma pessoa que comentou – “tu estás é com uma crise de identidade”. E estava mesmo, é verdade. Muitas vezes, também pensava em quem é que era no meio disto, ou o porquê de ir falar sobre este assunto. Estou sempre a compor e a minha forma de o fazer vai sempre para um determinado ritmo, porque a minha história, a minha vida, é assim. As músicas que ouço também vão muito para aí, porque é uma cultura muito presente na minha vida. A crise de identidade, ainda bem que acontece, porque é da forma que te encontras.
G. — “(Não sei) se estou bem sozinho ou se aprendo a ficar, se faço terapia ou me vais curar” [“Querer”, ft. Toty Sa’Med]. O que já aprendeste sobre este equilíbrio entre o “eu” e o “nós” de forma a não nos esquecermos de que a relação mais importante da nossa vida é a que temos connosco mesmas?
I. — Esta música com o Toty é uma história fictícia sobre uma relação tóxica, em que as duas pessoas têm visões diferentes. Quanto a esse equilíbrio, acho que não aprendi, acho que estamos todos a aprender. Nesta relação entre o “eu” e o “outro”, noto que quando o meu estado de vida está bom, vejo valor no que está à minha volta. Portanto, acho sempre que se quero mudar alguma coisa, também me tenho de transformar. Vejo esta coisa do micro e do macro como algo muito junto, não é separado. Posso transformar muitas coisas, mas também me tenho de transformar. É uma coisa que se entrelaça, o “nós” e o mundo.
G. — “Tu não vês, que é sempre a última vez, até à próxima vez” [“Próxima Vez”]. O que podemos fazer quando não queremos que um adeus chegue ou quando não queremos acreditar que ele chegou?
I. — Não sei bem. Tenho percebido que o amor tem muitas formas. O amor de mãe e filho é um amor muito específico, mas o amor que sentimos pelos nossos amigos, namorados, é algo que se transforma. Por exemplo, em relação a ex-namorados, gosto deles, mas, agora, de outra forma. Esse adeus é muito ambíguo, porque pode ser transformado. Tenho trabalhado muito nisto, porque tenho muita fobia do fim de ciclo das coisas, não sei fechar ciclos e um adeus é uma coisa que associo muito à morte. Quando uma pessoa, por exemplo, um amigo, vai viver para fora durante muitos anos, a sensação térmica que tenho é de perda profunda. Então, esta coisa do “é sempre a última vez até à próxima vez” é esta espera de não quebrar o ciclo, de não querer que o ciclo feche.
G. — Neste EP, também ouvimos algumas reflexões sobre o que é ser mulher. O que é, para ti, neste momento, seres a mulher Irma?
I. — Era isso que te ia dizer, este EP também fala do que é ser mulher, mas do que é ser a mulher Irma. Ser mulher é uma questão muito vasta. Sinto que, sem tocar neste lugar de vitimização, há muitas questões, hoje em dia, que continuam a ser mais fáceis para um homem do que para uma mulher. A separação é um deles – um homem separar-se ou ser uma mulher a fazê-lo são dois assuntos diferentes. Um homem dizer que vai sair para trabalhar alguns anos fora e uma mulher dizer que ele fica com os miúdos porque vai trabalhar alguns anos para fora são questões diferentes. E isto vem de um sistema patriarcal completamente enraizado na sociedade. No EP, especificamente, sinto que o “MIKADO” fala muito sobre o feminino que há em mim. É uma música superexplícita, mas sinto-me muito mulher quando a canto. Foi o único tema que não escrevi, foi a Carolina quem o escreveu, mas é um tema que me faz sentir mulher. E acho que é superlibertador falar desta coisa da mulher-carne, que é um assunto que é difícil de falar duma forma poética. Este feminino, no EP, vem no “MIKADO”.
G. — Era precisamente do “MIKADO” que te ia falar, agora. Nessa canção, ouvimos: “Que eu passei tanto tempo a dizer que não era de ninguém, fiz do meu corpo um templo”. Durante muitos anos, e ainda hoje, vimos as mulheres serem criticadas ao assumirem-se enquanto seres sexuais. Acreditas que podemos fazer do nosso corpo um templo vivendo as nossas experiências com liberdade, ao contrário de nos reprimirmos ou deixarmos que outros reprimam essa vertente da nossa existência?
I. — Falando sobre estas dimensões do corpo, no outro dia pensei sobre a diferença entre artistas homens e artistas mulheres. É muito ingrato, para a mulher, envelhecer. Muito mais do que para o homem. A mulher envelhece e fica menos interessante, o auge da sua idade é os vintes, trintas, quarentas, a partir daí... um homem, não. À medida que envelhece é cada vez mais charmoso. É sempre isso que sinto – o corpo da mulher é sempre mais ingrato de envelhecer do que o do homem. Mesmo relativamente às mulheres artistas, sinto que é muito mais interessante, [socialmente falando], ir ver um homem mais velho a dar um concerto do que uma mulher que já não está a trabalhar a sensualidade. Não sei, nunca falei muito sobre isto, mas sinto-o.


G. — “Mora em mim, faz de mim casa, casa comigo” [“Fica Comigo”]. O que encontras neste teu ser casa que to permite ser para ti e para os teus?
I. — Cada vez mais tenho sentido que o conforto, a zona segura, se encontra em muitos lugares, em várias pessoas – na família que temos de sangue, outras vezes em amigos. No outro dia, lembro-me de ir à casa da Carolina [Deslandes] e pensar que me sentia em família. Os miúdos a brincarem... Este padrão social que temos da família nuclear é muito redutor, também. Mesmo na questão da adoção gay, por exemplo, que é uma coisa que me aflige por ser um assunto fraturante e difícil [para estas pessoas], as pessoas não formam casas, as pessoas são casas por si só, são conforto por si só. Esta coisa de encontrar uma pessoa e fazer dela conforto... livros são casa, filmes são casa. Quando vejo o [filme] Sozinho em Casa, sinto-me em casa, sempre. A casa não tem forma, é um lugar qualquer que se encontra nas pessoas, nas coisas, no tempo, nos cheiros.


G. — Este EP “vem cantar o orgulho que tenho em ser Filha da Tuga”, escreves, em que, apesar de teres nascido da Marta, és Filha da Tuga. Esta é a tua forma de dizeres que, mais do que as nossas origens biológicas, somos fruto dos contextos em que crescemos, daquilo que nos rodeia?
I. — Sem dúvida. Era o que te dizia há pouco. Acho que há inúmeras possibilidades para as nossas vidas e o nosso passado é muito importante e faz história, mas não é determinante, não pode ser. Não quero acreditar que um miúdo que viva num orfanato até aos 18 anos não seja um arquiteto de sucesso, por exemplo. Quero acreditar que qualquer pessoa pode construir o seu próprio futuro, pode transformar-se, pode até ser mais do que sonha. Depois, muitas vezes, tenho pessoas à minha volta que sonham mais alto do que eu sobre os meus próprios sonhos. Não te acontece? [risos] “Ah, eu imagino-te agora a fazeres uma tour gigante pela Europa”, e eu a pensar – “hum, sonhas mais do que eu!” [risos]


G. – Achas que este orgulho que sentes em ser Filha da Tuga também deriva de todas as possibilidades que já agarraste?
I. — Sim, sinto que a vida que tenho, hoje, fui eu quem a construiu. Com a ajuda das pessoas que tenho à minha volta, com a ajuda das circunstâncias, com a ajuda das escolhas. Hoje, morreu o Jô Soares [a entrevista foi feita a 5 de agosto de 2022], e há uma história do filho dele, muito engraçada, que diz assim: estavam os dois a ir para a praia e o filho levava uns dez livros, e ele diz-lhe, “desculpa, não vais levar os dez livros para a praia, escolhe dois”, e ele disse-lhe, “então prefiro não levar nenhum. A ter de escolher, prefiro não ter opção, porque a escolha implica sempre uma perda.” E a vida é mesmo feita de escolhas. Vamos por aquele caminho, então estamos a perder este. A vida é feita de escolhas, de pessoas, de amor, do obstáculo, da dor, de tudo isto misturado na varinha mágica e bebe! [risos]


G. — Voltando ao teu post, que citei anteriormente, escreveste ainda: “É necessário conversar, sem agredir, sem excluir. É urgente reconstruir, contar a história como realmente aconteceu e passá-la ao mundo. Estarei sempre aqui, pronta para ouvir.” O que já te trouxe este lugar de escuta, quer de outras pessoas, quer de ti mesma?
I. — Trouxe-me muita informação, muitos livros para ler. Trouxe-me uma melhor compreensão da dor devido à história. No outro dia, estava a conversar com a Cleo [Diára] e ela estava a falar-me de quantas descobertas foram feitas por homens negros que, na história, está escrito que foram feitas por homens brancos, e isso trouxe-me muita curiosidade em ler mais sobre estas questões. Trouxe-me também muita vontade de tornar este mundo e era digitais menos polarizados, menos divididos. Trouxe-me muita vontade de ter opinião sobre as coisas. De ler e de não achar que ler é suficiente. Trouxe-me vontade de pensar pela minha cabeça, também, porque acho que o que faz o mundo girar é sermos todos diferentes – porque temos vidas diferentes, histórias diferentes – e acho que a inteligência se adquire, também, pela opinião que temos sobre as coisas, não é só sobre ler, como te disse há pouco. Por exemplo, a apropriação cultural não é tudo, não é um branco fazer tranças. Para mim, apropriação cultural é quando tu definhas uma cultura, é quando usas uma cultura e a distorces, ridicularizas, inferiorizas e, isso, para mim, é errado. Para outras pessoas, não existe apropriação cultural; para outras, existe e tudo é apropriação cultural. Para mim, se elevas uma cultura, se falas bem dela, é a vida a acontecer como ela é.