Foi no final de março de 2020 que o ministério da Cultura deu a conhecer Portugal #EntraEmCena, um movimento que pretendia agregar marcas que quisessem tornar-se mecenas de projetos culturais e investir em criações nacionais. Dois meses depois, a Renova, que foi uma das primeiras marcas portuguesas a juntar-se à iniciativa, lançou uma chamada aberta para uma peça original de música coreografada, através das Renova Art Comissions, com curadoria de Martim Sousa Tavares. Margarida Belo Costa, bailarina e coreógrafa, e Nuno da Rocha, compositor, foram uma dupla de três vencedoras e estão, neste momento, à procura de intérpretes.
Ainda não há muito que se possa saber sobre cada projeto, uma vez que estes vão sendo desvendados à medida que os seus criadores os dão a conhecer publicamente. No caso de Margarida Belo Costa e Nuno da Rocha, é possível adiantar que será uma vídeo-dança pensada especificamente para as instalações da fábrica Renova, em Torres Novas. Além desta dupla, venceram também Fernando Duarte e Edward Ayres d'Abreu, e Paula Pinto e Carlos “Zíngaro”.
Se és intérprete e estás interessado em responder a esta open call, podes fazê-lo através deste formulário que te dará acesso à audição do dia 26 de março. Antes disso, convidamos-te a conhecer melhor a proposta de Margarida Belo Costa e Nuno da Rocha, bem como a visão de ambos sobre o panorama atual do setor cultural.
Gerador (G.) - A vossa proposta foi uma de três vencedoras do concurso Renova Art Comissions (RAC), que surge na Plataforma Portugal #Entra em Cena. Como é que decidiram juntar-se para fazer uma proposta conjunta? Já tinham trabalhado juntos?
Margarida Belo Costa (M.B.C.) - O concurso RAC 2021 foi-me apresentado pelo Nuno, como uma primeira oportunidade de colaboração e cruzamento artístico. Propondo uma obra original - com o ponto de partida definido pela Renova - decidimos colocar ideias “em cima da mesa”, delineando um conceito harmoniosamente compatível e concretizável.
G. - O que é que podem adiantar desta vossa criação?
M.B.C. - Podemos adiantar que será uma criação em formato vídeo-dança desenhada especificamente para as inspiradoras instalações da fábrica Renova em Torres Novas, que contemplará seis intérpretes, um músico e cinco bailarinos, ligados narrativamente por um único instrumento em cena - um piano preparado.
Nuno da Rocha (N.d.R.) - Este piano, além de preparado, será captado e amplificado. Esse sinal de áudio passará por alguns pedais de efeitos semelhantes àqueles que estamos habituados a ver em uso nas guitarras elétricas, por exemplo. Estes pedais serão manipulados não pelo músico, mas pelos bailarinos em cena. Com isto, pretende-se criar uma relação muito direta entre os planos coreográfico e musical, na medida em que “veremos” o som a transformar-se por intervenção direta de um movimento criado pelo bailarino.
G. - Agora que venceram, estão com uma chamada aberta à procura de bailarinos. Quem é que procuram, qual é o perfil de bailarino que estão à procura?
M.B.C.- Na nossa candidatura, integrámos, de imediato, no cast, alguns dos intérpretes com quem normalmente colaboramos, dando “corpo” à nossa ideia primordial.
Achámos importante deixar em aberto a possibilidade de conhecer novos bailarinos, visto que não existem muitas audições e oportunidades de trabalho na área a nível nacional. Assim sendo, para completar o cast artístico, procuramos bailarinos (m/f) com uma sólida formação em dança clássica e dança contemporânea, com uma forte capacidade interpretativa e criativa — a nível logístico, com disponibilidade no mês de julho de 2021 para ensaios em Lisboa e gravações.
G. - O setor da cultura tem sido severamente afetado com a pandemia, e há trabalhadores a passar por grandes dificuldades neste momento, da dança à música, da literatura ao teatro, e ainda técnicos, frentes de sala, e outros elementos essenciais, por vezes “invisíveis”. Acreditam que iniciativas como esta podem ajudar de forma mais imediata pessoas que continuam a aguardar por apoios e que têm espetáculos cancelados?
M.B.C. - Sem dúvida que sim. Esta iniciativa poderá ser um exemplo a seguir, no sentido em que, neste momento, para se tornar concretizável, necessitará de toda uma logística técnica e artística que implicará a contratação de profissionais do sector, logo gerará mais oportunidades de trabalho.
N.d.R. - No imediato, tenho a certeza que sim, que ajudará. O setor da Cultura em Portugal é, possivelmente, o que mais está habituado a lidar com os “imediatos”, infelizmente.
G. - Em princípio, o vosso projeto será apresentado este ano. Têm um plano B pensado para o caso de, devido à pandemia, os prazos não corresponderem ao que tinham estipulado inicialmente?
M.B.C. - O plano B será sempre articular novas datas. No caso da audição prevista para dia 26 de março, se não for possível a sua concretização, iremos anunciar uma nova data, algo que salientámos no formulário de candidatura.
G.- Tanto no caso de uma orquestra como no caso de uma companhia de bailado, as criações pressupõem grande parte das vezes um grupo de pessoas. Como é que tem sido o vosso trabalho na pandemia? Têm conseguido manter as vossas rotinas dentro de uma certa normalidade?
M.B.C. - Eu, felizmente, ainda consegui apresentar a minha recente criação, FAUSTLESS, dia 16 de janeiro no Auditório Municipal António Silva (programado pelo teatromosca) via streaming, mesmo no limiar do confinamento. As restantes apresentações foram adiadas e outros projetos em que estou envolvida também. Neste momento, trabalho a partir de casa, dou aulas pelos “famosos quadradinhos” do Zoom, como todos os professores. Creio que a forma mais próxima de “normalidade” a que estamos hoje sujeitos, parte sem dúvida da manutenção do contacto online entre a família, amigos, colegas e alunos.
N.d.R. - O meu trabalho resume-se a passar 90% do tempo sozinho no escritório. Os restantes 10% existem nesse contacto direto com os músicos, com as orquestras, quer em ensaios, quer em concertos. Nesta medida, sim, o meu trabalho foi afetado, mas não na mesma proporção que num performer. Tinha estreias nos Dias da Música do CCB, em Londres (que acabaram por se realizar via streaming), tinha três concertos em Agosto passado em São Paulo com o Coro e Orquestra Sinfónica do Estado de S. Paulo (OSESP) que foram adiados para Outubro de 2023. No entanto, como disse, a parte invisível do meu trabalho, que é a que me ocupa mais tempo, mantém-se inalterada, já que neste momento estou a trabalhar para estreias de 2022 e 2023. Ainda assim, sinto-me muito desconcentrado; todas estas circunstâncias são muito perturbadoras.
G. - A iniciativa Portugal Entra em Cena acabou por abrir a possibilidade das marcas poderem investir diretamente em criações artísticas. Como é que olham para o mecenato? Sentem que mais iniciativas como estas deviam decorrer em Portugal?
M.B.C. - O mecenato desde sempre teve um lugar crucial no desenvolvimento e progresso da globalização da arte. O investimento capital em ideias inovadoras, credíveis e concretizáveis abre as janelas dos artistas ao mundo, criando oportunidades de comunicação transversais a todas as áreas. As empresas comunicam os seus valores e missões através da arte, seja pela escrita, pela fotografia, pela música ou pela dança, logo o seu investimento deverá ser sempre valorizado e reproduzido com o máximo de qualidade para que ambos sejam justamente representados e compreendidos.
N.d.R. - Estas iniciativas são muito importantes. A meu ver, são mais importantes para as marcas, para os mecenas, do que propriamente para os artistas, e a Renova sabe disso. Quem sai fora do seu circuito, da sua área, é o mecenas, e não o artista, pelo que há mais a ganhar desse lado que recebe o poder de transformação, de reflexão, do outro. O resto são números, são folhas de Excel, e acho normal que em Portugal sejam poucas as empresas que não pensem primeiro na folha de Excel. Acho que parte tudo do mesmo problema: o problema cultural português, o atraso cultural português. A meu ver, nunca existiu um plano para que o ensino incluísse definitivamente a importância das artes na construção da sociedade, como há em França, ou na Alemanha. Seria importante refletir-se, por exemplo, no programa de Educação Musical do ensino regular. Seria importante refletir-se na preponderância do campo da Arte no programa de História do ensino básico. Mas além destes micro-espaços que são as salas de aula, onde estão presentes 30 alunos, é importante pensar-se nos macro-espaços, como a televisão pública. Costumo dizer que não serve de nada ter na minha sala de aula oito alunos de ATC — Análise e Técnicas de Composição — quando ao sábado à noite estão centenas de milhares de “alunos” a verem o “The Voice” na RTP 1.
Portanto, na impossibilidade de ver, para já, um sector cultural bem gerido pelo Estado, espero que no “imediato” existam muitas e mais iniciativas de mecenato, para que esta geração de artistas — possivelmente, a melhor que Portugal já conheceu — não acabe toda a conduzir um Uber. [Se acontecer, o meu pseudónimo será Filipe Vidro].
O formulário de candidatura pode ser respondido até ao dia 25 de fevereiro, aqui.