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Momentos da “história sem história” da Performance Arte Portuguesa

Entre muitos conceitos, a Performance Arte, caracteriza-se também enquanto uma manifestação artística que pode combinar…

Texto de Filipa Bossuet

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Entre muitos conceitos, a Performance Arte, caracteriza-se também enquanto uma manifestação artística que pode combinar diferentes formas de expressão (teatro, dança, música, pintura, escultura etc.), tal como as artes plásticas, no uso de materiais e instrumentos de trabalho. Talvez por esse motivo, artistas da vertente das artes plásticas, como por exemplo, Ernesto Melo e Castro, Manuel Batista, Ana Hatherly e António Olaio, tenham um histórico ligado à performance.

Como a investigadora Cláudia Madeira refere no livro Arte da Peformance Made in Portugal, “os performers foram também e ao mesmo tempo pintores, escultores, escritores, poetas, realizadores, e desenvolveram inúmeras profissões também não artísticas, exercendo atividades ligadas ao ensino, à crítica, à programação e à curadoria. A essa não exclusividade acresce ainda que os termos para caracterizar as ações performáticas ganharam ao longo do tempo diversas denominações como ações, intervenções, happenings, rituais, operações, arte viva, arte corporal, escultura viva (Carlos, 1995), entre inúmeros outros conceitos com aproximações e distâncias variadas entre si”.

Estas ramificações tornam a vertente mais vasta e a discussão sobre a sua origem, permanência e futuro, mais incerta e interminável, até porque, como acrescentou Cláudia Madeira em conversa com o Gerador e na sua obra, “a arte performativa não tem necessariamente uma ‘História’ com princípio e fim, por isso, colocam-se-nos questões sobre por onde e por quem começar”.

Sendo assim, esta reportagem foca-se na ideia da performance enquanto ação. Algumas dessas ações estarão aqui registadas pelos relatos de quem as fez ou pesquisou.

Cláudia Madeira iniciou, em 2004, no âmbito da sua tese de doutoramento, uma pesquisa sobre a performance arte em Portugal, que se realiza até hoje, após adquirir o grau académico. Começa por dizer que “algumas das performances que se têm como significativas têm que ver com a capacidade que se teve de se aceder à informação. Haverá outras que, provavelmente, não se teve acesso. Algumas das mais importantes têm que ver com a passagem entre a poesia experimental ou visual, e a performance. É como se tivesse havido um caminho laboratorial que levou a que alguns poetas experimentais começassem a fazer performance. Esses grupos eram constituídos por pessoas, como por exemplo o Jorge Peixinho, e, por vezes, também, das artes plásticas. É importante dizer que a maior parte deles não eram somente artistas, tinham outras profissões, mas juntavam-se para fazer aquilo a que Ernesto de Melo e Castro chamou os dois acontecimentos happening entre 1965 e 1967”.

A performance “Música Negativa” do engenheiro, poeta, ensaísta, e artista plástico Ernesto de Melo e Castro, um dos momentos descritos por Cláudia Madeira como significantes para a Performance Arte em Portugal, foi realizado no “Concerto e Audição Pictórica”, o primeiro happening nacional, que aconteceu em Lisboa, no dia 7 de janeiro de 1965, na Galeria Divulgação, no âmbito da exposição “Visopoemas”. Nessa exposição participam também, a harpista, educadora e compositora portuguesa Clotilde Rosa, Mário Falcão, Manuel Batista, artista plástico e pintor, o músico Jorge Peixinho, a escritora Salette Tavares, e o pintor, escultor, investigador e poeta António Aragão, sendo que, os últimos três citados, juntamente com  Ernesto de Melo e Castro, fizeram parte do PO.EX, grupo da Poesia Experimental.

 Em “Música Negativa”, Ernesto de Melo e Castro simula tocar os chocalhos que agita sem sair qualquer som. O ato surge como uma metáfora ao silêncio provocado pela censura salazarista. Um momento mais tarde registado em vídeo, no ano de 1977, pela artista plástica, Ana Hatherlly e, posteriormente, reproduzido pelo autor com outros instrumentos como garrafas vazias de Coca-Cola e copos.

“A performance vem como ideia de ato único, não reprodutível e essa peça mostra como este happening teve várias mutações. Vai buscar elementos tradicionais como os chocalhos, que não têm som, e essa maestria do silêncio é que está em causa. Um povo que não tem lugar à palavra” — acrescenta a investigadora.

No mesmo evento, a performance “O Funerão do Aragal” aconteceu à volta de uma mesa posta, onde se fingiu mastigar e bater-se nos pratos ruidosamente, enquanto ao lado, estava António Aragão deitado num caixão de pinho, a receber restos de comida em cima do corpo. “Seguidamente, levantámos o caixão e saímos lentamente da cena enquanto se ouviam acordes da marcha fúnebre do costume”, refere Ernesto de Melo e Castro num texto cedido, em 2016, a Cláudia Madeira, e agora, com excerto público no texto “Arte da Performance e a Guerra Colonial Portuguesa: Relações no Tempo Histórico”.

“São performances que servem de denúncia de um contexto silenciador, onde existiam pessoas a serem agredidas em prol da vontade de liberdade.  Por outro lado, uma denúncia onde se enviavam pessoas para a guerra e continuava tudo em paz como se aquela guerra não existisse” – finaliza Cláudia Madeira.

O performer num discurso direto, algo que na época era mais atípico que atualmente, foi como Armando Azevedo, artista plástico, diretor do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) e co-fundador do grupo de intervenção artística, Puzzle, apresentou “todas estas coisas” a António Olaio.

“Uma personagem da performance e de pensar a performance, infelizmente, não tão conhecida como deveria ser, embora seja muito conhecido o que desenvolveu” — assim descreve António Olaio, quem admira.

Para o artista plástico e professor, “o performer é autor e ator ao mesmo tempo”. É assim, com “extrema timidez” e vontade de fazer, que se transforma num corpo cheio de autoestima que apresentou e apresenta “IL Faut Danser Portugal”. Uma performance realizada em França, no Centro George Pompidou (1984), o festival “La Performance Portugaise” comissariado pelo crítico de arte, Egídio Álvaro, com a mostra de performances portuguesas e num ambiente de celebração dos dez anos do 25 de Abril. Numa conjuntura em que as pessoas colocavam tudo em causa, aconteciam processos de descolonização e “se ridicularizava o fascismo do grande império”.

António Olaio começou a performance com a bandeira de Portugal juntamente à música de fundo em que se declamava parte do canto d’Os Lusíadas e celebrava-se a epopeia. Quando chegava ao momento do Gigante Adamastor, deixava cair a bandeira e dançava ao som de “You Made Me Love You (I Didn´t Want to Do It)”, de Jolson. Não queria dizer que não gostava de Portugal e que o obrigaram a gostar, mas é uma condição. Mesmo tendo nascido em Angola, obteve nacionalidade portuguesa, e não foi uma escolha autónoma, porque veio para Portugal com seis meses, revela ao Gerador.

Estando em Paris, “jogou” e “brincou” com aquilo que diz ser, na época, a perceção dos franceses sobre o português – alguém de um país periférico à cultura, triste com o fado e a saudade.

Em cena no festival francês, foi muitas coisas ao mesmo tempo, sem sair do mesmo lugar, navegou por todos os caminhos: “Dancei em cuecas, meias, uns óculos com poupa de tomate a pingar e duas paletas que me ajudavam a equilibrar. Sem sair do mesmo sítio, levantava uma e outra perna, o meu corpo tentava mover-se todo ao mesmo tempo de forma fluída. A minha ideia era não sair do mesmo lugar, porque não saindo dali, ia para todos os lados. Absorvia todos os sentidos”

Porque o nu não era propriamente uma raridade em performance, o artista expunha-se ao ridículo e ao patético, enquanto sentia dignidade pelo que fazia. Havia uma necessidade de afirmação e de autonomia, também pela juventude, através de uma atitude de militância contra os mecanismos de legitimação da arte, que transmitiam a mensagem de que o criador necessitava dessa validação.

“Tentei despejar-me de tudo aquilo que me desse valor acrescentado, e mostrar que não são as medalhas, reconhecimentos, que dão valor a uma obra de arte, embora seja muito gratificante. Havia uma ironia, um lado provocatório” – acrescenta.

António Olaio com 21 anos, no Centro George Pompidou

O autor de “IL faut danser Portugal” observa a crítica como mais um ingrediente para poder chegar a uma transcendentalidade. Descreve a atuação da época como estruturante, e que “não está desatualizada do universo conceptual”, não só porque quando recriada ganha outras características, mas também porque surge como um fio condutor para a contemporaneidade.

Algo que fez com uma grande dignidade, sem meios e despojado de produção, estava nu e a expor-se, a falar de si como artista, numa transmissão de um pensamento estético, de uma forma poética e com uma grande ambiguidade. Vindo das artes plásticas, afirma que era uma maneira de “trabalhar a imagem com a presença do corpo”. “São coisas que se vão reconfigurando nas nossas cabeças, mas que ficam, estão sempre presentes, algumas imaginamos que as esquecemos, outras vão ficando, porque vão gerando outras coisas nos nossos trabalhos”.

Estas e outras performances contam a “historia sem história”, como referiu Ernesto de Melo e Castro, e que se quer vista, não só porque muito se passou, mas também, como diz a atriz e curadora do projeto “Ciclo de Reenactments – Performance Arte Portuguesa, Isabel Costa , “é muito importante para quem está a fazer performance ter presente o trabalho de outras gerações, porque as obras, não só os artistas, também conversam entre si”.

O “Ciclo de Reenactments – Performance Arte Portuguesa”, apresentado pela Plataforma Revólver em parceria com a revista Arte Capital, traz as memórias das performances desenvolvidas em Portugal nas décadas de 70 e 80, contribuindo para a reconstrução da sua história. “TROUMT” de Manuel Barbosa, seguindo-se de António Olaio com “Graças à Luz Elétrica” e ainda neste mês de janeiro, Ana Hatterly. Cada performance é acompanhada por uma entrevista ao artista que interpretou a obra e que será publicada na revista Arte Capital.

Isabel Costa dá conta de festivais marcantes da história da performance arte portuguesa, onde identifica o Círculo de Artes Plásticas em Coimbra (CAPC).

A dedicação do CAPC à promoção da arte contemporânea e fomentação de atividades pluridisciplinares já se observam desde 1958, destacando-se o 1.000.011 Aniversário da Arte, em 1974 impulsionado por Ernesto de Sousa e que contou com a participação do pintor e artista plástico, Albuquerque Mendes, distribuindo, ao longo do percurso entre Porto e Coimbra, centenas de flores de papel com a frase “a arte é bela tudo é belo”, inclusive a colocação de um conjunto de panos com padrões florais na entrada do edifício do Círculo de Artes Plásticas, como é possível ler no artigo da historiadora Verónica Metello ao Baldio.

A iniciativa da celebração da arte tem como base o pensamento do artista francês, Robert Filliou, seguidor da corrente artística Fluxus, que a descreve como o momento em que “alguém deixou cair uma esponja seca numa tina com água”, há um milhão e cinquenta e oito anos. Desde então, artistas por todo o mundo celebram o acontecimento, a 17 de janeiro, incluindo os portugueses, em espaços artísticos como o Teatro Viriato ou o CAPC.

O espólio de Ernesto de Sousa agrega, também, a exposição “Alternativa Zero” na Galeria Nacional de Arte Moderna, em 1977, com ações e performances, programações ditas, programadas ou espontâneas, debates, projeções de filmes e vídeos, concertos de música experimental de Jorge Peixinho e o grupo Anar Band, formado na década de 1970.  A exposição “Tendências polémicas da Arte Portuguesa Contemporânea”, uma exposição documental sobre os “Pioneiros do Modernismo em Portugal” e uma exposição de cartazes com o tema “A Vanguarda e os Meios de comunicação” que ficaram para a história, tendo como responsáveis mais de quarenta autores, entre eles, Alberto Carneiro, Albuquerque Mendes, Álvaro Lapa, Alvess, Ana Hatherly, André Gomes, Ângelo de Sousa, E. M. de Melo e Castro, Helena Almeida e Salette Tavares.

A "Alternativa" era um grande zero, era necessário começar [depois do 25 de Abril]. A exposição "Alternativa Zero" que organizámos em 1977 (sempre como obra de arte) foi um esforço perspetivo e prospetivo desse estado de coisas. Foi uma espécie de balanço: o que temos, o que podemos ter? Havia obras reconstituídas com mais de dez anos, havia quem expusesse pela primeira vez. (...) os mais velhos a quem se propôs (e que fizeram) um repensar do seu trabalho; e a participação de alguns portugueses que haviam trabalhado ou continuavam a trabalhar no estrangeiro. —  Ernesto de Sousa, "Uma Alternativa Zero" (texto inédito para a revista Canal), 1980. Retirado do acervo de Ernesto de Sousa.

Ainda em 2016, abriu-se a plataforma PAP (Performance Arte Portuguesa) com um simpósio no Auditório Museu Coleção Berardo, que reuniu personalidades como António Olaio, Ernesto Melo de Castro, Cláudia Madeira, Mariana Brandão, Verónica Metello, entre outros, que reavivam a importância da Performance Arte Portuguesa e contribuem para uma “história com história”.

Texto de Filipa Bossuet

Fotografia disponível via Unsplash

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