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Mulheres na Montagem: “atrás da câmara, atrás do filme, atrás de tudo”

Fazendo uma viagem pela História do Cinema, sobretudo na que é contada formalmente nas universidades…

Texto de Carolina Franco

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Fazendo uma viagem pela História do Cinema, sobretudo na que é contada formalmente nas universidades e escolas cujo foco recai na América do Norte e na Europa, salvo algumas excepções que, pela sua inegável disrupção, têm igual destaque, os nomes que se encontram nesse percurso são de realizadores e, acima de tudo, de homens. D.W. Griffith, Dziga Vertov, Rossellini, Jean-Luc Godard, Jean Renoir, Ignmar Bergman, Martin Scorsese, Quentin Tarantino são alguns dos nomes incontornáveis em todo o universo cinematográfico. Mas, o que muita gente não sabe é que muitos dos seus filmes, senão grande parte, foram montados por mulheres.  

Para os olhares mais atentos, no filme “O Homem da Câmara de Filmar” (1929), de Dziga Vertov, é possível avistar, por momentos, Elizaveta Svilova, a sua companheira e montadora do filme, a cortar película em cima de uma mesa de montagem. Em jeito de homenagem, surge, em 2016, a curta-metragem "Woman with an Editing Bench", na qual Karen Pearlman dá a conhecer o trabalho de Svilova, que aparece simbolicamente n’ “O Homem da Câmara de Filmar”, mas cujo legado permaneceu na invisibilidade. Nos planos que focam a montadora e o processo de montagem, encontra-se, simbolicamente, representada a dupla invisibilidade. Ao nome de Elizaveta Svilova, multiplicam-se tantos outros de mulheres montadoras que, tanto no século XX como já no século XXI, permanecem na sombra — ainda que não tanto como dantes. 

A partir dos 22 minutos e 30 segundos, sensivelmente, encontramos os planos de Svilova

A montagem é uma parte essencial à criação de narrativa de qualquer filme. Um filme não vive apenas da montagem, mas não vive (em grande parte dos casos) sem montagem. E se, à partida, o trabalho de montar um filme não pressupõe o reconhecimento que acompanhe o que frequentemente é atribuído à realização, e que as próprias montadoras e montadores não o esperem, é inegável a relação entre esse lugar ser atribuído a mulheres, no começo. Para trazer para um lugar de visibilidade essas mulheres, cujo trabalho grande parte dos cinéfilos pelo mundo fora conhecem, mas nem sempre lhes atribuem um nome, Su Friedrich, cineasta que sabe “o quão crítica é a montagem”, criou o projeto Edited By, em 2019, onde reúne duzentas e seis montadoras e mapeia o trabalho de cada uma e o seu legado no cinema. 

De Elizaveta Svilova, já acima mencionada, a Jolanda Benvenuti, montadora de grande parte dos filmes de Roberto Rossellini e cujo nome foi substituído pelo de um montador, homem, tanto no filme “Roma, Cidade Aberta” (1945) como “Libertação” (1946), até Lyudmila Feiginova, montadora de muitos dos filmes de Andrei Tarkovsky, ou Marie-Josèphe Yoyotte, “a primeira montadora negra no cinema francês”, responsável pela edição de “Os Incompreendidos” (1959), de François Truffaut, e “O Testamento de Orfeu” (1960), de Jean Cocteau. Mergulhar em Edited By é ter acesso a camadas invisibilizadas da História do Cinema, mas é também um pretexto para pensar no papel da montagem, através dos testemunhos reunidos por Friedrich num Index. 

Ainda que Elizaveta Svilova tenha montado "O Homem da Câmara de Filmar", a génese criativa é atribuída a Vertov // Still de "O Homem da C^âmara de Filmar"

Um desses testemunhos é o de Anne V. Coates, editora de filmes como “Lawrence da Arábia” (1963), de David Lean, e “O Homem Elefante” (1981), de David Lynch: 

“Quando entrei pela primeira vez na indústria, em Inglaterra [em 1947], havia muitas editoras mulheres. E, lentamente, elas foram caindo no esquecimento ... Quando saí, em 1986 [para trabalhar nos EUA], acho que havia apenas uma outra mulher a montar grandes filmes em Inglaterra. Mas fui ensinada, ou devo ter ouvido em algum lugar, que à medida que se tornava um trabalho mais importante, os homens começaram a entrar. Embora fosse apenas um trabalho secundário, eles deixaram que as mulheres o fizessem. Mas quando as pessoas perceberam o quão interessante e criativa a edição poderia ser, os homens empurraram as mulheres para fora do caminho e meio que a assumiram.”

Com o decorrer da História, a montagem passou a ser olhada de outra forma; foi sendo ressignificada.

Montadoras por opção

Com o tempo, as mulheres começaram também a ocupar lugares na realização, trazendo outros olhares para o cinema — sendo algumas delas paralelamente montadoras dos seus próprios filmes ou de filmes de outras pessoas. Em Portugal, há também exemplos de mulheres a assumir a montagem de filmes clássicos, como é o caso Margareta Mangs, editora de filmes de Paulo Rocha como “Os Verdes Anos” (1963) e “Mudar de Vida” (1966), ou de Manuela Viegas, nome incontornável no cinema português, assistente de montagem em “Silvestre” (1981) de João César Monteiro, juntamente com Teresa Caldas, e montadora de “O Sangue” (1989) de Pedro Costa. Manuela Viegas é também realizadora de “Glória” (1999), a sua única longa-metragem, que apresentou na 49ª edição do Festival de Cinema de Berlim tendo, na altura, sido a primeira realizadora portuguesa a integrar a Competição Internacional do festival. Hoje, e há mais de uma década, é professora de montagem no curso de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema, e uma referência entre gerações posteriores à sua na montagem. 

Rita Pestana, cujo caminho na montagem tem andado entre o Brasil [“Baronesa” (2017), Juliana Antunes]  e Portugal [“Mulheres do Meu País” (2019), Raquel Freire] é uma das pessoas para quem a influência de Manuela Viegas, que foi sua professora de montagem na escola de cinema, é inegável. “Quando escolhi montagem, tive a Manuela Viegas como professora, que acabou por ser minha orientadora, depois. Fiquei cada vez mais apaixonada [por montagem], porque a professora é mesmo uma pessoa fora de série, em termos humanos e profissionais. Fez-me ver coisas para as quais não olhava”, recorda Rita numa entrevista ao Gerador.  

Mas a relação de Rita com a montagem começou de forma instintiva, muito antes de ter entrado na Escola Superior de Teatro e Cinema. “Quando tinha 12 anos, o meu pai deu-me uma câmara de filmar e eu, paralelamente, estava a viver coisas muito intensas na minha vida pessoal. Aquela câmara foi o meu refúgio. Eu filmava tudo o que possas imaginar: filmava a cidade, filmava-me a mim, filmava experiências com luz. Estava sempre a filmar, e depois ficava muito angustiada porque as coisas ficavam numa cassete seguidas, e não da forma que eu queria. Então, eu tinha dois leitores de VHS e tinha uma cassete virgem para passar o bocadinho que queria do minuto dois, por exemplo, e ia copiando na ordem que queria para a cassete virgem. Isso já é um processo de montagem e eu fazia-o com 13/14 anos, sem perceber que o estava a fazer. Juntava a família, punha play na cassete virgem que agora tinha a ordem que eu queria, e punha uma música paralela, a tocar num rádio”, partilha.

No 12º ano, uma professora disse-lhe que sentia que o cinema era o seu futuro, depois de ver um vídeo que gravou com uma comunidade cigana, resultado de um trabalho da escola. Rita sabia que sim, mas acabou por ir para a Faculdade de Belas Artes como grande parte dos seus amigos. Depois de um ano “a ser profundamente infeliz” num curso de Arte e Multimédia, inscreveu-se na Escola de Cinema. Logo no primeiro ano, numa aula com uma professora convidada, Fátima Ribeiro, percebeu que era montadora que queria ser. 

“No primeiro ano, montávamos um filme de três minutos em película, numa steenbeck, como se fazia antes, e lembro-me que havia um problema no bruto que não se sabia como resolver; ao mesmo tempo, houve um erro numa imagem que foi uma pessoa da equipa que se deslocou e fez uma sombra na parede. A Fátima viu essa sombra, que já era material extra, e disse — ‘ah, com esta sombra podemos fingir que é a personagem que passa e com isso resolvemos o problema’. E, quando ela disse isso, eu pensei — ‘isto é magia, eu quero viver disto, tenho a certeza que é isto que eu quero’; ‘quero ir descobrir os erros e possibilidades para problemas’. Lembro-me muito bem de pensar isso para dentro, e foi aí que percebi que queria ser montadora.” 

Rita Pestana mudou-se para o Brasil depois de vencer o prémio INOV-art, em 2011

Quando Rita Pestana começou a estagiar com o realizador Luís Alves de Matos, para quem acabou por montar “Montanha Fria” (2009), fazia algum tempo que também Patrícia Saramago tinha frequentado a escola de cinema e tinha começado a montar. Depois da escola de cinema, Patrícia fez “algumas vezes anotação em processos de rodagem, e uma ou outra vez assistência de realização, mas, “apesar de ser um óptimo ensinamento de múltiplas lições ao verificar como trabalham todas as áreas em conjunto (uma prática essencial que não é possível ensinar em teoria)”, rapidamente percebeu que “a avalanche que acontece durante a filmagem, o trabalho exaustivo, a necessidade de cada um estar embrenhado na sua função, não permite a ninguém — excepto à/ao realizador/a — vislumbrar minimamente o que vai ser o filme no seu conjunto”. “Um filme”. E é na montagem que Patrícia tem feito um trabalho cada vez mais reconhecido. 

Quando se proporcionou, e quando se proporciona ainda hoje, “aconteceu estar na rodagem, mas só com realizadores com quem tinha já uma proximidade e confiança mútua”, que lhe permitiam “imaginar o filme, estar mais próxima do/a realizador/a e melhor ajudar no resultado final”. Patrícia foi assistente na preparação de ‘’Juventude em Marcha’’ (2006), de Pedro Costa , e assistente de realização no filme ‘’A Portuguesa’’ (2018), de Rita Azevedo Gomes, que dá como exemplo. A montagem de um filme é, a seu ver, “o que constrói o discurso, com a forma cinematográfica, do que é ‘dito’.” “A montagem é o discurso. É quando se decide o que aparece primeiro, o que desconstrói a aparência de algo que parecia ser de certa maneira, quando se criam contradições, dar a importância a detalhes ou não , e tudo o resto que expõe o mistério da vida humana, em toda a sua complexidade, seja ao nível das ações, da palavra, ou a um nível pura e simplesmente sensitivo, gerindo a harmonia e os contrastes entre todos os elementos.”

Para quem desconhece o processo de montagem, o começo de tudo pode ser uma incógnita. Rita conta que essa incógnita é, na verdade, uma escolha de cada montador(a) e realizador(a), mediante o que lhes faz mais sentido — “há várias teorias”, explica. “Quando estive em Berlim, em 2018, no [Berlinale] Talents, uma das montadoras, que era até a montadora do Lars Von Trier, disse que defendia que os montadores tinham de fazer parte do processo de guião — não de rodagem, mas de guião —, porque têm uma visão do que pode ou não acontecer. Eu, pessoalmente, prefiro não estar na rodagem e não ter visto nada previamente”, conta. “Porque o filme que tu escreves é uma coisa, o filme que tu filmas é outra coisa, e o filme que tu montas é outra. São três guiões diferentes. E se tu misturas o guião do meio com o guião final, acho que não é muito bom. É bom ter alguém que não sabe nada [sobre o filme previamente], porque essa pessoa vai ter a capacidade de ver mais coisas que quem esteve na rodagem, e quem esteve antes, não vê.”

A montagem de "Baronesa" trouxe mais visibilidade ao trabalho de Rita Pestana, no Brasil (mas não só)

A forma como cada montadora encara a montagem é particular, assenta na experiência de cada uma e na relação que cada uma estabelece com o processo. Montar é um trabalho singular, com diversas abordagens; pressupõe uma reflexão em torno da sua prática. Há muito que não se trata apenas de “cortar e colar”. 

Montar um filme é “criar um discurso”

“Segui montagem porque esse é o espaço onde posso ter esse rigor”, disse uma vez em entrevista a realizadora e montadora Mariana Gaivão. De facto, o trabalho de montagem, mesmo que no caos, é metódico e resulta na organização de uma narrativa; cria o discurso, como diz Patrícia Saramago. E será que o método pode ser o mesmo ao montar filmes de géneros diferentes, que nascem a partir de guiões com estruturas diferentes? Tudo é possível.

Patrícia conta que encara, à partida, “ficção e documentário exatamente da mesma maneira”. “ Na prática, sim, a forma de trabalhar acaba por ser diferente. Num documentário não há normalmente uma estrutura pré-definida, e tem de se encontrar um caminho,  curiosamente pelo sentido contrário; ou seja, de que maneira a realidade se impõe e não permite variações, aí encontram-se pilares que não podem ser movidos”, conta. Como exemplo, recorda a montagem de um filme espanhol/francês que montou há tempos: “a avó da realizadora foi filmada ao longo de um ano, mais ou menos; quase já não sai de casa, e um dos espaços mais presentes era a sala, com umas grandes janelas onde se viam uns grandes plátanos lá fora. Ora, as árvores, ao longo das estações, variam muito, portanto, logo por aí havia material com as folhas verdes (de um ano e de outro) , outro material com as folhas castanhas, até uns dias de neve (passava-se em Espanha). Neste caso, a Natureza acabou por se impor de uma forma evidente.” 

Em documentários com depoimentos, conta que sente que, para si, é “sempre necessário ouvir tudo o que é dito pelas várias pessoas/personagens e ir apontando num caderno o discurso de forma a que mais tarde facilmente possa usá-lo e montá-lo com a maior clareza possível, sem nunca alterar o sentido pretendido original”, uma vez que “é muito comum as pessoas repetirem assuntos, hesitarem muito, corrigirem palavras”. No filme ‘’Onde jaz o teu sorriso’’ (2001), de Pedro Costa, Patrícia partilha que “Jean-Marie Straub repetia várias vezes alguns dos seus pensamentos recorrentes (também devido à sua característica pedagógica, junto com Danièle Huillet, nas suas apresentações ao longo da vida, assuntos muito pensados e transmitidos ao mundo inúmeras vezes)” e que, “por vezes, foi necessário encontrar as zonas onde cada assunto surgia e remontá-lo com as partes de maior clareza e maior perceção para que a ideia essencial ficasse bem expressa no filme (neste caso, fazendo uso dos momentos em que Jean-Marie está de costas no plano, ou no escuro — uma dobragem do real sobre o real)”. 

Patrícia Saramago frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema entre 1993 e 1996

No caso de Rita havia, no começo, uma procura pelo documentário e pelo cinema experimental. “Queria descobrir a verdade”, diz em tom de brincadeira. A sua relação com a ficção era agridoce; sentia que trabalhar com ficção pressupunha estar mais limitada e presa ao guião, o que não acontece no documentário, onde a montagem “é tudo”. Foi ao trabalhar com o cineasta brasileiro Marcelo Gomes que os seus conceitos foram trocados: “com ele, percebi que a ficção também pode ser o que quieramos que ela seja.” “Eu nunca gostei muito de ficção porque me sentia um bocadinho podada, e com o Marcelo apaixonei-me, por perceber que há estes caminhos todos, que podem ser possíveis. Trabalhar com ele foi fundamental para mim.”

A relação entre montadora e realizador(a) é essencial para que tudo dê certo — mesmo que nem sempre o trabalho de montagem seja formalmente reconhecido. Será o trabalho de montagem um trabalho autoral? Para Rita, “depende muito do filme e depende muito do realizador”. Para Patrícia, “é sempre possível”, ainda que algumas situações o compliquem. E desse processo faz parte “fazer e refazer”; “fazer e refazer é o dia a dia numa sala de montagem”, diz Patrícia.

“Numas situações, o/a realizador/a não está sempre na sala de montagem, tenho algum tempo para criar totalmente sozinha uma cena, conjunto de cenas, situação, tomar decisões. Depois o/a realizador/a vem, e confronta em si mesmo/a o que vê com o que imaginou, e verbaliza-o de alguma maneira. Na verdade, é um primeiro observador do que eu fiz a partir do que ele filmou. Depois, acabamos por trabalhar juntos nessa junção de ideias, neste caso com ele a complementar as minhas; umas anulam-se, outras acrescentam. Quando faço essas primeiras experiências de montagem tenho sempre em conta que o realizador estará preso de alguma maneira ao seu material, ao seu ideal (uns mais, outros menos), não é boa ideia tomar decisões radicais nesse primeiro gesto — tirar totalmente a cena número três, por exemplo — porque o que é importante é que o realizador encontre em si mesmo o fio condutor que o liga ao projeto desde há anos e anos (às vezes décadas, mesmo)”, conta Patrícia ao Gerador. “Se eu apresentar inicialmente algo muito radical, o realizador não tem hipótese de se encontrar; essas minhas intuições, ideias, devem surgir ao longo do tempo, para que sejam assimiladas, tentadas, resultem ou não, por vezes descubro eu própria que não tenho razão, e a minha intuição estava errada. O trabalho no tempo é mesmo essencial.” 

Noutras situações, conta, “o realizador está sempre na sala de montagem, é importante para ele/a lá estar”. “Nesse caso, o meu trabalho é estar sempre a confrontar a ideia do realizador com o material que existe, é essencial que eu perceba o que o realizador quer ou idealizou, seja possível recriá-lo ou não, e automaticamente o meu músculo criativo dá a sua opinião, preferência, também baseada na minha visão dos planos, há momentos fortes, seja de um ator, ou de algo que acontece inesperado, algo bom para ser utilizado.” 

"Desterro" é um dos mais recentes filmes estreados com montagem de Patrícia Saramago

Montar é um trabalho que pede sensibilidade — sensibilidade no olhar, para perceber quais são os limites do que entra ou não, como se constrói uma personagem através de uma sequência de imagens. E falar de diversidade no cinema é, também, falar sobre diversidade na montagem. “No outro dia, perguntaram-me sobre mulheres negras montadoras no Brasil, e existe a Cristina Amaral, que é a mais conhecida, mas são pouquíssimas, e depois vais fazer um filme com mulheres negras, ou sobre racismo, por exemplo, e a vantagem que tu terias em ter uma montadora negra é enorme. Isso é igual em todas as áreas, e a montagem como forma de ter um cunho autoral é mais uma delas. Quanto maior for essa diversidade, mais ajuda”, sublinha Rita Pestana.

Patrícia sente o mesmo: “eu diria que, na vida, a diversidade contribui para que TUDO seja mais completo — e estamos muito longe de ter uma verdadeira diversidade, também no cinema”. “Contribuir para um filme mais completo não o posso afirmar, uma vez que esse filme está primeiro que tudo dependente do seu autor/a ou realizador/a, e daquilo que essa pessoa vai descobrindo no seu processo criativo, que vai muito mais fundo do que questões sociais — parte de obsessões pessoais, experiências, imaginação, sensibilidade, o que seja, qualquer assunto pode ser tema de um filme excelente. Mas claro que uma maior diversidade a todos os níveis da nossa vida dá-nos uma leitura maior, mais verdadeira e complexa sobre tudo. Nas equipas de cinema, havendo já muitas mulheres — muitas vezes, se calhar, até mais mulheres do que homens —, em Portugal não me lembro de um único técnico negro, por exemplo. Além de que praticamente todas as produtoras se encontram em Lisboa e é quase obrigatório viver em Lisboa para se conseguir trabalhar em cinema.”

Pensando nos limites éticos de um filme, Rita Pestana sente que é importante fazer um trabalho “paralelo à montagem”, de “ouvir as pessoas”. “O que quero dizer é que é óbvio que essa representatividade é fundamental, e os filmes ganham quando ela for maior, mas que pode caminhar em paralelo com estas intervenções que vêm no processo. São fundamentais. E é sempre um momento super tenso, porque quando vais mostrar e alguém te diz ‘está tudo mal’, e depois só tens duas semanas... [risos]. É sempre um momento muito tenso, esse de ir mostrar às pessoas, mas é fundamental.” 

A montagem a falar de si mesma

Para levar a reflexão sobre a montagem a diferentes caminhos e possibilidades, o diálogo entre pares pode ser uma resposta. Rita está numa constante procura por esses diálogos, que conseguiu estabelecer formalmente no Talents, em Berlim, onde não só ouviu montadoras de renome, como pôde discutir o seu trabalho com outras colegas; mas também mais informalmente no Brasil. Recordando os tempos que viveu em Minas Gerais, onde “há poucos montadores e montadoras, no geral”, menciona as conversas que teve com “uma geração de mulheres montadoras mais velhas” que acabaram por ser essenciais para pensar, em conjunto, o ofício além do óbvio.

“Lembro-me de ter conversas com algumas delas em que uma me dizia — ‘nós somos montadoras, mas nós também somos psicólogas’. Imagina estares com um realizador umas 12 horas por dia — e normalmente são pessoas que estão em grande sofrimento, porque têm dúvidas sobre o seu filme, outros problemas da vida, e é sempre um processo muito intenso. Então, foi bom partilhar isso no sentido de ‘OK isto acontece com todas, mesmo com estas gerações mais velhas’, e essa partilha e esse conhecimento foram muito bons para mim. Acho que há uma generosidade dessas gerações para quem está a chegar à área, que é uma mais valia também”, conta Rita.  

Patrícia Saramago montou um filme em que a montagem estava no centro — “o melhor filme alguma vez feito sobre montagem”, nas palavras de Jean-Luc Godard —, “Onde Jaz o teu Sorriso?”. A estreia foi há já 20 anos, mas recorda que foi “um muito agradável curso de montagem em si mesmo”. “Aprendi imenso, tanto com Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, ao vê-los a observar os gestos dos atores, ‘o brilho nos olhos’, a mão que bate na mesa em tal palavra dita, começar o plano exatamente onde começa o primeiro som da fala, ações essenciais à gestão de forças dentro da montagem do filme, de qualquer filme, que acabam por definir o ritmo, a aceleração ou pausa, e nesses contrastes enriquecer a forma do filme. Ao mesmo tempo, Jean-Marie e Danièle trabalham o filme com som e imagem juntos e inseparáveis, ou seja, sem qualquer montagem de som recriada, é sempre o som direto daquela imagem que é utilizado no filme; mas Pedro Costa é um exímio utilizador das possibilidades técnicas na forma dos seus filmes.”

"Onde Jaz o teu Sorriso?" passa-se na montagem de "Sicília!", de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet

Quando Patrícia conta as histórias que a montagem de “Onde Jaz o teu Sorriso?” guarda, é impossível não pensarmos na motivação inicial de Rita para seguir montagem; no fascínio pela magia da edição e por encontrar respostas e soluções: “recriámos digitalmente movimentos do ecrã da mesa de montagem, para melhor ser entendido o que os dois realizadores estavam a discutir, mas isso sempre dentro de uma ideia de procura de realismo, sons realistas que na sua especificidade dariam um tom diferente a determinado sítio na montagem; escolher entre o som de um gesto mais brusco de Danièle a acelerar na mesa de montagem, ou um gesto mais suave. Fizemos uma escolha de sons específicos da mesa de montagem em movimento, ou sons das latas de metal quando se tocam entre si, mesmo uma escolha de pequenas frases de quotidiano, como ‘tens fome?’ ou ‘tens frio?’ para, talvez, montar em alguma cena a propósito — há exatamente uma cena no filme em que o casal faz ambas as perguntas um ao outro”, conta Patrícia.

Para alargar a reflexão, Rita Pestana está, juntamente com o montador Tomás Baltazar, a criar uma associação de montadores. “Estamos a organizar uma associação porque existe a APTA, que representa vários departamentos dentro do cinema, e o departamento de montagem ainda não tinha representação”, explica. “Uma das coisas que quero colocar em pauta são estas relações de género, que, de alguma forma, têm de ser colmatadas. Mas queremos também pensar, por exemplo, na importância de contratos de trabalho que dêem mais segurança laboral e promover encontros e conversas que tragam mais visibilidade e debate a este ofício”, continua Rita. 

A urgência de pensar o lugar e o valor da montagem é, também, trazida para a conversa por Patrícia, que sente que “nos últimos cinco anos, mais ou menos, o trabalho de montagem tem sido menos reconhecido do que nas décadas anteriores” que testemunhou. “Estamos numa altura em que dada a facilidade com que se pode ter um programa de montagem em casa, muitos realizadores decidem montar o seu filme sozinhos. É algo que se pode compreender, mas, como na escrita, por exemplo, há realizadores argumentistas e há realizadores que não são argumentistas. A profissão de realizador já tem muito a seu cargo. No caso da montagem feita pelos realizadores, acho principalmente que perdem a hipótese do outro olhar em paralelo, o luxo de ter um primeiro espectador a dizer o que viu na cena, o que não percebeu, e, mais ainda, a sugerir outras opções, que levam a outras e a outras, e algo ainda que eu julgo extremamente importante: estar a mexer numa máquina, ainda por cima um computador — tão longe dos nossos gestos intuitivos, carregar em teclas com as pontas dos dedos — traz uma carga cansativa que não ajuda em nada à criação e ao pensamento livres”, defende. 

Nem tão perto, nem tão longe — o lugar das mulheres na montagem

Rita Pestana sabe, e sublinha desde logo, que “a história do cinema é muito mal contada”. “Na faculdade de cinema, no meu tempo, não falávamos muito de cinema latino-americano, por exemplo. Era sempre uma coisa muito eurocêntrica e hollywoodiana — e claro que também não falavam de mulheres no cinema. Então, quando vais começar a fazer uma pesquisa sobre se houveram mulheres a fazer coisas em paralelo aos irmãos Lumière, descobres um mundo de coisas”, partilha. É por isso que, sempre que pode, vai contando a(s) outra(s) história(s) do Cinema, e recuperando alguns dos nomes invisibilizados no e pelo tempo — sobretudo de mulheres. 

“Uma vez fui dar uma aula e decidi falar de algumas mulheres que tiveram um papel no início da história do cinema, e falei-lhes [aos alunos] sobre montagem. Antes as pessoas montavam em película e havia muito mais mulheres montadoras do que homens e eu perguntei aos alunos porque é que eles achavam que havia mais mulheres do que homens a montar. E as respostas foram coisas como: ‘porque as mulheres são melhores com as mãos’, ou ‘porque elas são mais cuidadosas’, ou ‘porque têm mais paciência’. Vieram respostas de um imaginário feminino que elas devem ter com as mães, que são mais pacientes ou que realmente fazem mais coisas com as mãos, que talvez esteja até ligado ao trabalho doméstico, mas que vem realmente de uma continuidade de questões de género que nunca se dissocia, até nisso. E a verdade é que antes se via a montagem não como um trabalho criativo, mas mais como corte e costura. Era como se elas continuassem a fazer bainhas das calças”, conta Rita. 

Ser montadora, hoje, já não se trata de ocupar um lugar de invisibilidade diretamente relacionado com o género; o trabalho de montagem deixou, há muito, de ser visto como um trabalho de corte e costura. Patrícia e Rita sentem que, felizmente, as diferenças entre mulheres e homens, montadoras e montadores, já não se comparam com as que em tempos se fizeram sentir — ainda que possam existir algumas camadas subtis. Mas ambas concordam que, no cinema, há lugares que continuam a ser predominantemente ocupados por homens. “Talvez noutras funções, como diretora de fotografia, por exemplo, ainda seja difícil para uma mulher subir à função principal da área de imagem”, sugere Patrícia.

Se é um facto que, por norma, são os realizadores que têm um lugar de maior destaque, Rita acredita que é difícil um(a) montador(a) querer reivindicar a visibilidade; porque a partir do momento em que escolhe sê-lo, está, de certa forma, a escolher essa invisibilidade de forma inerente. “Uma pessoa que escolhe ser montadora já se está a pôr, à partida, não só atrás da câmara, mas atrás do filme, atrás de tudo. Nós estamos super escondidos, lá atrás, e está tudo bem”, diz ao Gerador. “Por um lado, existe esse caminho – e basta pesquisar, os grandes realizadores têm muitas vezes uma mulher montadora ao lado, na sombra.”

No fim do dia — neste 8 de março, mas no resto do ano também —, importa reconhecer que, muito do que chega até nós, resulta de trabalho feito atrás de câmaras, sem luzes a apontar para o rosto das que trabalham com alma. O trabalho delas está lá, o resultado final é como é também graças à sensibilidade dos seus olhares, e à sua capacidade de ver a narrativa em pensamento. As montadoras. 

Texto e colagem de Carolina Franco

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