Escrevo no regresso de uma semana frenética, demasiado acelerada até mesmo para o meu ritmo, já de si agitado. Entre correrias, pelo tempo de uma dupla jornada moderei conversas no festival “Future Days”, em Lisboa, onde, ao segundo dia, o relógio parou.
Aconteceu num debate sobre criações pluriculturais e inteligência artificial, a partir de um encontro de passado, presente e futuro, facilitado pelas palavras de Gustavo Menezes Nogueira.
Fundador do “Temporality Lab”, e membro da “Time Machine Organisation”, Gust, como também se apresenta, investiga o tempo, convidando-nos a sentir a relação que com ele estabelecemos.
Antes da conversa, extensiva a outros quatro painelistas, o Gustavo partilhou que não iria prestar atenção ao cronómetro que, diante de nós, estaria a regular os 45 minutos de debate. Explicou-me que em vez se prender a um automatismo, preferia ligar-se a mim.
Assim aconteceu. Tão organicamente quanto a minha admissão de disputa de foco, ali dividido entre o fluxo livre de uma conversa e o controlo de um imparável cronómetro.
Foi então que o inesperado me surpreendeu: o ecrã que ia assinalando a passagem do tempo deixou de o fazer. Só que em vez de sentir alívio, senti ainda mais pressão.
Não tanto por não saber a quantos minutos do fim estávamos, e mais porque as regras mudaram a meio, e fiquei sem referências.
Sabia apenas que a programação ainda reservava um intenso processo de co-criação de futuros e que, por isso, não me poderia distrair mais demoradamente do tempo.
O que aconteceria se pudesse? Dizem-me os meus ponteiros que sentir o tempo em vez de medir o tempo abre espaço para ser, além do parecer e do aparecer.
Ocorre-me parar nesta hipótese: que mudança se promoveria se todas as pessoas deixassem de se guiar por ciclos de 24 horas diárias e 12 meses anuais?
As possibilidades movimentam, entre outras, heranças indígenas e africanas, centrais nas temporalidades investigadas por Gustavo.
“Desde o momento em que nossos ancestrais caçadores-colectores se reuniam ao redor da fogueira para contar histórias, conversamos sobre o tempo”, assinala o pesquisador brasileiro, lembrando que “entender o tempo ao nosso redor também é sobre perspectiva”, no sentido de que “para viajar para o futuro e entender para onde estamos indo, é necessário primeiro dar dois passos para trás e entender a história que nos trouxe até aqui”.
A proposta traz-me à memória o trabalho da educadora Yu Rodrigues, criadora do projecto “Descobrir a vida”, que tem como bússola o método do biorritmo.
Simplificada e resumidamente: a Yu trabalha com crianças que estudam a partir de casa, ajustando a intervenção ao ciclo de funcionamento de cada uma, em vez de estabelecer um ritmo “universal”. Há quem descreva a abordagem como respeitadora dos “relógios biológicos” individuais, e, por isso mais facilitadora de aprendizagens.
Faz-me sentido, e faz-me pensar em quem seríamos, e no que faríamos, se pudéssemos existir no nosso tempo, e não no tempo do capital.
Que escolhas faríamos se, ainda que condicionados por um horário de 40 horas semanais de trabalho, pudéssemos cumpri-lo da forma que entendêssemos? Com pausas menores para almoço, por exemplo, e sem a conformidade de ciclos de cinco dias “úteis”?
Acredito que ganharíamos tempo de vida, medido pelo cada vez mais negociado exercício da nossa liberdade.
Afinal, que liberdade resiste diante da precariedade laboral e da indignidade das condições de vida?
Se, neste exacto momento, qualquer pessoa, da menos à mais marginalizada, pudesse decidir só e exclusivamente com base nas suas aspirações, quantas reformas antecipadas teríamos? Quantos pedidos de demissão?
Foco o exercício de libertação exclusivamente no mundo profissional, por sentir que, para demasiadas pessoas, é sempre fonte de insatisfação e contracção, e nunca de realização e expansão.
Sei que a infelicidade laboral é muitas vezes explicada pela degradação das condições de trabalho – problema real que, infelizmente, se tem vindo a agravar –, mas também sei que poucas pessoas à minha volta estão a trabalhar no que gostariam. Pior: há quem tenha perfeita consciência do que gosta de fazer, esteja num contexto em que é possível fazê-lo, mas a única hipótese de verdadeira progressão salarial venha de uma promoção que implica deixar de fazer aquilo de que verdadeiramente se gosta.
“É a vida”, ouço dizer entre encolheres de ombro, como se não houvesse outras possibilidades. Tenho a certeza que há. Sejamos capazes de parar o relógio para as reconhecer e nos reconhecermos. Humanos.
Faz-me sentido, e faz-me pensar em quem seríamos, e no que faríamos, se pudéssemos existir no nosso tempo, e não no tempo do capital.
Que escolhas faríamos se, ainda que condicionados por um horário de 40 horas semanais de trabalho, pudéssemos cumpri-lo da forma que entendêssemos?
Ocorre-me parar nesta hipótese: que mudança se promoveria se todas as pessoas deixassem de se guiar por ciclos de 24 horas diárias e 12 meses anuais?
Foco o exercício de libertação exclusivamente no mundo profissional, por sentir que, para demasiadas pessoas, é sempre fonte de insatisfação e contracção, e nunca de realização e expansão.
Sei que a infelicidade laboral é muitas vezes explicada pela degradação das condições de trabalho – problema real que, infelizmente, se tem vindo a agravar –, mas também sei que poucas pessoas à minha volta estão a trabalhar no que gostariam.
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresentou a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. No mesmo canal, assume, desde Outubro de 2023, a apresentação do magazine cultural Rumos. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como os programas HeforShe Lisboa e Bora Mulheres, de mentoria e empreendedorismo feminino. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projeto digital de jornalismo de investigação, é uma das cronistas do Gerador, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto. Em Março de 2023 foi apontada pela revista de negócios “Success Pitchers” como uma das “10 Mulheres Líderes Mais Inspiradoras do Empreendedorismo Social”, distinção que sucedeu à indicação, em 2022, pela Euclid NetWork, como uma das “Top 100 Women In Social Enterprise” da Europa de 2022