fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Marta Crawford

O elevador

Tinham passado quase quatro semanas desde o início do estado de emergência e no prédio…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Tinham passado quase quatro semanas desde o início do estado de emergência e no prédio da Dona Esperança vivia-se um ambiente de contrastes. A mulher do Dr. Artur tinha falecido há cinco dias, pensou-se que era apenas uma gripe ligeira, mas infelizmente as coisas tinham piorado e tinha sido hospitalizada. O Dr. Artur estava inconsolável pois não tinha permissão para ver a sua querida mulher no hospital. Tinham-lhe dito que teria que ficar de quarentena já que, provavelmente, também estaria infetado. O casal tinha chegado há umas semanas de umas mini-férias, onde festejaram com os filhos e netos, as bodas de ouro. Souberam mais tarde, no telejornal das 20h, que o hotel onde ficaram hospedados tinha sido fechado e os hóspedes obrigados ao isolamento por causa da pandemia. Teriam sido os últimos a sair das Canárias.

Uma semana depois, a Matilde, mulher do Dr. Artur, começou a sentir dores no corpo. Rapidamente a situação se agravou e ela teve de ser internada no hospital. O Dr. Artur ficou de quarentena 15 dias a ser monitorizado à distância e a ter que controlar a febre duas vezes por dia. Naqueles dias a Sra. Matilde piorou drasticamente e acabou por falecer. Não resistiu.

O funeral foi um não funeral. Sem velório, sem missa e sem flores. Só podiam estar presentes cinco familiares e o “adeus” foi no jardim do cemitério dos Olivais, onde o padre proferiu umas palavras rápidas, enquanto o caixão seguia para o crematório. Soubemos que foi embrulhada num saco, nua e que o fato, ao invés “daquela mortalha”, ficou a baloiçar dentro do armário. 

Todos os moradores do prédio ficaram tristes com a morte da Sra. Matilde, uma senhora especialmente alegre que falava sempre da família com muito orgulho, dos filhos e, especialmente da neta Isabel, que morava no 7.dto.

A Isabel era muito simpática. Andava sempre com um sorriso de orelha-a-orelha e com ar feliz.

Quando as mudanças de comportamento dos moradores do prédio da dona Esperança* começaram a fazer-se sentir, Isabel estava ausente em trabalho. Tinha voltado quando a avó faleceu e soube pelo avô das gentilizas que os vizinhos tinham tido com ele e com a avó. Resolveu agradecer a todos, um por um. Naquele dia, começou por agradecer à sua vizinha do lado. Duvidava que a Raquel tivesse participado muito das gentilezas, mas, ainda assim, tocou-lhe à porta. Ela surgiu de pijama, de robe e chinelos, o que a fazia parecer bastante mais baixa. Os olhos estavam muito vermelhos e Isabel percebeu que teria estado a chorar. Está tudo bem? Perguntou. Sim, está! Mas os olhos da Raquel encheram-se de lágrimas. O impulso da Isabel foi aproximar-se dela e de a abraçar. Mas... nestes tempos de monstros invisíveis, deixou-se estar à distância, movimentando o corpo no mesmo lugar. Ao contrário do que seria de esperar, a Raquel desabafou sem filtros, revelando-se uma mulher vulnerável, triste e desesperada por ter sido abandonada pelo seu amante e colega de trabalho. Tinha iniciado uma “relação” com o Rodrigo que, no início, não passava de um flirt, mas agora sentia-se perdidamente apaixonada por aquele homem. A relação foi-se intensificando e, de um simples roçar de pernas por baixo das mesas do refeitório, rapidamente começaram a fazer juras de amor. Todo este jogo tinha saltado para fora das fronteiras da empresa, e embora ainda não tivessem dormido juntos, sabiam que seria para breve. 

O estado de emergência tinha-se apoderado da vida de tod@s e, desde que, na empresa de Raquel, tinham adotado o regime de teletrabalho, tudo se tinha transformado. Agora que o Rodrigo estava confinado em casa com a mulher, filhos e sogros, tudo era mais difícil. A mulher, desconfiada do comportamento do marido, conseguiu aceder ao seu telemóvel e descobriu as mensagens de WhatsApp: “Meu amor, tenho tantas saudades tuas, sinto falta do teu cheiro, porque é que esperámos tanto tempo para estar juntos?”. Ao qual ele teria respondido: “Tenho saudadas tuas meu amor, mas em breve estaremos juntos, prometo”. O marido, perante as provas fotografadas pela mulher, terá dito que tinha sido um flirt sem significado, numa fase em que se sentia em baixo. Para provar a sua inocência, ligou à Raquel, em frente à mulher, a dizer-lhe que não voltariam a ter conversas pessoais e que tudo não tinha passado de uma “estupidez inconsequente”, da qual estava arrependido. Disse ainda que as prioridades dele eram a mulher e os filhos e que os amava. Pedia desculpa pelo equívoco e, nesse dia o número dele ficou bloqueado para a Raquel.

A Isabel ficou sem saber o que lhe dizer, nunca esperou tantas confidências de alguém que mal conhecia. Tentou confortá-la e, depois despediu-se dizendo que tinha de ir ver o avô.

Desceu as escadas do prédio a correr e quase esbarrou com o Rui do 2.Esq. Já o tinha visto várias vezes e achava-o giro. O Rui fez uma pirueta para trás para manter a distância e ela quase lhe caiu nos braços.

Ao chegar ao patamar da rua do prédio ia um pouco acelerada. A conversa com a Raquel tinha sido intensa. À porta do prédio, do lado de fora, fumou um cigarro, enquanto respirava com alguma sofreguidão. O sol brilhava, iluminando a entrada do prédio. Ela sentiu-se a aquecer com o sol a bater-lhe no rosto.  

Pensou que já o tinha visto várias vezes e que sempre o tinha achado um “pedaço”. Aliás, sentia-se ligeiramente atrapalhada com a sua presença. Sempre que subia sozinha com o Rui no elevador, ou mesmo com algum amigo que a acompanhava, sentia o batimento cardíaco a acelerar. Por alguma razão aquele encontro, na escada, tinha sido diferente.

Ao voltar a entrar no prédio, a Dona Esperança estava a lavar a entrada e perguntou-lhe pelo avô. Vai indo! Mas está muito triste - respondeu. A porteira disse-lhe que tinha acabado de fazer umas farófias para o avozinho e pediu-lhe que as levasse.

Ao subir de elevador, Isabel apercebeu-se que o Rui continuava no patamar do 2. andar. Sentiu o seu cheiro e sorriu-lhe por entre as grades do elevador.

*Ler a crónica: O prédio da Dona Esperança

-Sobre a Marta Crawford-

É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem TabusViver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.

Texto de Marta Crawford
Fotografia de Diana Mendes

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

2 Julho 2025

Não há liberdade pelo consumo e pelas redes sociais

25 Junho 2025

Gaza Perante a História

18 Junho 2025

Segurança Humana, um pouco de esperança

11 Junho 2025

Genocídio televisionado

4 Junho 2025

Já não basta cantar o Grândola

28 Maio 2025

Às Indiferentes

21 Maio 2025

A saúde mental sob o peso da ordem neoliberal

14 Maio 2025

O grande fantasma do género

7 Maio 2025

Chimamanda p’ra branco ver…mas não ler! 

23 Abril 2025

É por isto que dançamos

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

Shopping cart0
There are no products in the cart!
Continue shopping
0