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O elevador

Tinham passado quase quatro semanas desde o início do estado de emergência e no prédio…

Texto de Redação

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Tinham passado quase quatro semanas desde o início do estado de emergência e no prédio da Dona Esperança vivia-se um ambiente de contrastes. A mulher do Dr. Artur tinha falecido há cinco dias, pensou-se que era apenas uma gripe ligeira, mas infelizmente as coisas tinham piorado e tinha sido hospitalizada. O Dr. Artur estava inconsolável pois não tinha permissão para ver a sua querida mulher no hospital. Tinham-lhe dito que teria que ficar de quarentena já que, provavelmente, também estaria infetado. O casal tinha chegado há umas semanas de umas mini-férias, onde festejaram com os filhos e netos, as bodas de ouro. Souberam mais tarde, no telejornal das 20h, que o hotel onde ficaram hospedados tinha sido fechado e os hóspedes obrigados ao isolamento por causa da pandemia. Teriam sido os últimos a sair das Canárias.

Uma semana depois, a Matilde, mulher do Dr. Artur, começou a sentir dores no corpo. Rapidamente a situação se agravou e ela teve de ser internada no hospital. O Dr. Artur ficou de quarentena 15 dias a ser monitorizado à distância e a ter que controlar a febre duas vezes por dia. Naqueles dias a Sra. Matilde piorou drasticamente e acabou por falecer. Não resistiu.

O funeral foi um não funeral. Sem velório, sem missa e sem flores. Só podiam estar presentes cinco familiares e o “adeus” foi no jardim do cemitério dos Olivais, onde o padre proferiu umas palavras rápidas, enquanto o caixão seguia para o crematório. Soubemos que foi embrulhada num saco, nua e que o fato, ao invés “daquela mortalha”, ficou a baloiçar dentro do armário. 

Todos os moradores do prédio ficaram tristes com a morte da Sra. Matilde, uma senhora especialmente alegre que falava sempre da família com muito orgulho, dos filhos e, especialmente da neta Isabel, que morava no 7.dto.

A Isabel era muito simpática. Andava sempre com um sorriso de orelha-a-orelha e com ar feliz.

Quando as mudanças de comportamento dos moradores do prédio da dona Esperança* começaram a fazer-se sentir, Isabel estava ausente em trabalho. Tinha voltado quando a avó faleceu e soube pelo avô das gentilizas que os vizinhos tinham tido com ele e com a avó. Resolveu agradecer a todos, um por um. Naquele dia, começou por agradecer à sua vizinha do lado. Duvidava que a Raquel tivesse participado muito das gentilezas, mas, ainda assim, tocou-lhe à porta. Ela surgiu de pijama, de robe e chinelos, o que a fazia parecer bastante mais baixa. Os olhos estavam muito vermelhos e Isabel percebeu que teria estado a chorar. Está tudo bem? Perguntou. Sim, está! Mas os olhos da Raquel encheram-se de lágrimas. O impulso da Isabel foi aproximar-se dela e de a abraçar. Mas... nestes tempos de monstros invisíveis, deixou-se estar à distância, movimentando o corpo no mesmo lugar. Ao contrário do que seria de esperar, a Raquel desabafou sem filtros, revelando-se uma mulher vulnerável, triste e desesperada por ter sido abandonada pelo seu amante e colega de trabalho. Tinha iniciado uma “relação” com o Rodrigo que, no início, não passava de um flirt, mas agora sentia-se perdidamente apaixonada por aquele homem. A relação foi-se intensificando e, de um simples roçar de pernas por baixo das mesas do refeitório, rapidamente começaram a fazer juras de amor. Todo este jogo tinha saltado para fora das fronteiras da empresa, e embora ainda não tivessem dormido juntos, sabiam que seria para breve. 

O estado de emergência tinha-se apoderado da vida de tod@s e, desde que, na empresa de Raquel, tinham adotado o regime de teletrabalho, tudo se tinha transformado. Agora que o Rodrigo estava confinado em casa com a mulher, filhos e sogros, tudo era mais difícil. A mulher, desconfiada do comportamento do marido, conseguiu aceder ao seu telemóvel e descobriu as mensagens de WhatsApp: “Meu amor, tenho tantas saudades tuas, sinto falta do teu cheiro, porque é que esperámos tanto tempo para estar juntos?”. Ao qual ele teria respondido: “Tenho saudadas tuas meu amor, mas em breve estaremos juntos, prometo”. O marido, perante as provas fotografadas pela mulher, terá dito que tinha sido um flirt sem significado, numa fase em que se sentia em baixo. Para provar a sua inocência, ligou à Raquel, em frente à mulher, a dizer-lhe que não voltariam a ter conversas pessoais e que tudo não tinha passado de uma “estupidez inconsequente”, da qual estava arrependido. Disse ainda que as prioridades dele eram a mulher e os filhos e que os amava. Pedia desculpa pelo equívoco e, nesse dia o número dele ficou bloqueado para a Raquel.

A Isabel ficou sem saber o que lhe dizer, nunca esperou tantas confidências de alguém que mal conhecia. Tentou confortá-la e, depois despediu-se dizendo que tinha de ir ver o avô.

Desceu as escadas do prédio a correr e quase esbarrou com o Rui do 2.Esq. Já o tinha visto várias vezes e achava-o giro. O Rui fez uma pirueta para trás para manter a distância e ela quase lhe caiu nos braços.

Ao chegar ao patamar da rua do prédio ia um pouco acelerada. A conversa com a Raquel tinha sido intensa. À porta do prédio, do lado de fora, fumou um cigarro, enquanto respirava com alguma sofreguidão. O sol brilhava, iluminando a entrada do prédio. Ela sentiu-se a aquecer com o sol a bater-lhe no rosto.  

Pensou que já o tinha visto várias vezes e que sempre o tinha achado um “pedaço”. Aliás, sentia-se ligeiramente atrapalhada com a sua presença. Sempre que subia sozinha com o Rui no elevador, ou mesmo com algum amigo que a acompanhava, sentia o batimento cardíaco a acelerar. Por alguma razão aquele encontro, na escada, tinha sido diferente.

Ao voltar a entrar no prédio, a Dona Esperança estava a lavar a entrada e perguntou-lhe pelo avô. Vai indo! Mas está muito triste - respondeu. A porteira disse-lhe que tinha acabado de fazer umas farófias para o avozinho e pediu-lhe que as levasse.

Ao subir de elevador, Isabel apercebeu-se que o Rui continuava no patamar do 2. andar. Sentiu o seu cheiro e sorriu-lhe por entre as grades do elevador.

*Ler a crónica: O prédio da Dona Esperança

-Sobre a Marta Crawford-

É psicóloga, sexóloga e terapeuta familiar. Apresentou programas televisivos como o AB Sexo e 100Tabus. Escreveu crónicas e publicou os livros: Sexo sem TabusViver o Sexo com Prazer e Diário sexual e conjugal de um casal. Criou o MUSEX — Museu Pedagógico do Sexo — e é autora da crónica «Preliminares» na Revista Gerador.

Texto de Marta Crawford
Fotografia de Diana Mendes

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