Comprei este livro numa livraria lisboeta. Não foi numa dessas que toda a gente conhece. Os preços dos livros, na loja a que me refiro, estão estampados nas primeiras páginas. No entanto, quando comecei a folhear, não encontrei o preço. Quanto custa?, perguntei ao livreiro. Respondeu-me que não havia escrito o valor nas primeiras páginas para não estragar as ilustrações que dão início à história. De alguma forma, senti que existia ali um cuidado especial com o objecto livro, que a livraria não se resumia a um lugar que deve beber lucro, mas que olha para as páginas como parte de um todo muito importante. Saramago dizia que temos a mania de romantizar tudo, talvez seja o que estou a fazer.
Não vou aqui escrever sobre o autismo. Sou ignorante nesse aspecto. Além disso, este livro é muito mais, embora o tema central seja esse. Começo por lembrar uma expressão muito utilizada quando alguém questiona o sexo de um bebé que, eventualmente, vai nascer: “é menino ou menina? O que interessa é vir com saúde!”
Espera-se sempre que, do nascimento, venha um ser humano quase perfeito, sem limitações, pronto a crescer, forte, preparado para dar cabeçadas à vida. Rogério e Marta, pais de Henrique, não tiveram essa sorte. Aperceberam-se de que aquela era uma criança diferente das outras. Dessa condição, surge um mundo novo, duro, cruel. O casamento é colocado constantemente à prova, as relações humanas transformam-se de dia para dia, como se descessem uma escada sem retorno.
Valério Romão destapa, nestas 353 páginas, a condição humana. O egoísmo, sobretudo, comum a pessoas tão diferentes, que aqui se lê como uma farpa que se crava na realidade. A nossa realidade.
Convido-vos a ler este excerto da página 20 e 21, que vive na voz de Abílio, avô de Henrique:
“Nós somos assim, cheios de pressa de barrar a manteiga, de dar conselhos, de mudar uma porta de sítio para reconfigurar a geometria doméstica. Como toda a gente, temos planos, e são eles as âncoras que jogamos rente ao futuro, para nos movermos à força de braços para lá. Os mais novos, é claro, têm planos feitos da mesma imprestável merda, mas envernizam-nos com uma camada sonhada de grandiosidade que consiste em chegar a chefe de repartição ou em comprar uma casa maior. Na verdade, todos os sonhos são ridículos e é o ridículo que nos move, mas os velhos riem dos novos e os novos riem das crianças, e o riso é intergeracionalmente estanque, e é isso que mantém o circo a funcionar em contínuo (...)”
A narrativa conta-nos os pontos de vista das várias personagens. Todas elas me levaram, enquanto leitor, a olhar o problema de diferentes perspectivas. O amor que se sente pelo Henrique existe, é genuíno, penso que essa força se aplica a toda a família. No entanto, como vamos aprendendo ao longo da vida, os afectos mais fortes também nos podem trazer tristeza, luta, frustração, desejo de morrer.
O autismo não é o único problema de uma casa. É esclarecedor pensar que essa é uma condição que, enfim, não se pode decidir ter ou não ter. Se assim fosse, não existia. No entanto, aquilo que somos para os outros, aquilo que fazemos a respeito das nossas vidas, dependerá da nossa bondade, da nossa maldade, do nosso egoísmo, da nossa esperança. Não deve existir culpa na inocência.
Dário Moreira