fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de Andreia Monteiro

O lugar do espectador

O regresso aos palcos estava à espreita com a iminência da abertura das portas das…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

O regresso aos palcos estava à espreita com a iminência da abertura das portas das salas de espetáculo, prevista para dia 1 de junho. Com o anúncio do concerto do Deixem o Pimba em Paz para esse mesmo dia, peguei no meu telemóvel trémulo na esperança de arranjar um bilhete. Os cerca de 2000 lugares disponíveis esgotaram em 11 minutos e, felizmente, um deles era meu. Iria ver a Manuela Azevedo pela primeira vez em palco, o Bruno Nogueira, cujo direto de Instagram foi uma companhia constante, e revisitar músicos como o Salvador Sobral, Samuel Úria, Nuno Rafael, Filipe Melo ou Nelson Cascais, que costumava ver frequentemente em concertos.

No decurso do meu trabalho como jornalista no âmbito cultural, não me é estranho ouvir artistas falarem dum tal sentimento comum quando a agenda se encontra mais espaçada: a falta do palco. Dada a paralisação que o sector enfrentou nos últimos três meses, muitos foram os desabafos que fui ouvindo neste sentido, adjudicando sempre a premissa de que as redes sociais ajudam, mas “agora faz falta o palco”!

Antes de me ver isolada em casa, era uma prática recorrente fruir de eventos culturais. A ida a concertos fazia parte do meu horário semanal, sendo já uma rotina. Abruptamente, vi-me fechada em casa a assistir a concertos na tela do meu computador e a bater palmas numa ambiência aveludada de silêncio. Com o passar das semanas, vi esse consumo espraiar-se, deixando um lugar de encontros mútuos por preencher. Ao ver o anúncio do concerto no Campo Pequeno, a decisão de estar presente não tardou.

Dia 1 de junho. Encontrei-me na entrada para o sector 4 ímpar uma hora e meia antes do espetáculo. Havia um banco solitário. Sentei-me. Examinei a envergadura do edifício por que tantas vezes tinha passado com um olhar desatento. Estudei os movimentos de um grupo de jovens que jogava futebol no campo. Cumprimentei caras conhecidas que inesperadamente traçaram uma trajetória comum. Deliciei-me com o olhar sorrido de um amigo que não esperava ver tão cedo. A luz caiu e dei entrada na sala. Lia-se o entusiasmo e precaução em olhares cruzados. Por fim, as luzes baixaram. A sala encheu-se de aplausos e vocalizos engendrados em ovação. Os artistas começaram a ocupar o palco. O tempo para e a aclamação dilata-se, povoando os meus olhos lacrimejantes. Durante aquelas horas, emocionámo-nos, rimos, gritámos, cantámos e sentimo-nos unos. Durante aquelas horas, tornei-me ciente do meu lugar como espectadora e, mais do que isso, de um sentimento de que não tenho ouvido falar tanto: a falta de ser parte de uma plateia.

De facto, desde muito nova que ver um palco habitado me cumpre. No assento de plateias tomei decisões cruciais para a minha vida. Mudei rumos. Tornei-me mais tolerante e empática, deixando-me contagiar pela arte que me era devolvida. No calor de um teatro fui aprendendo a aceitar o meu ser. Na completude de uma sala de espetáculos recolhi a cor viva que dá forma ao meu corpo. Na sala escura que foca o olhar num palco em movimento, edifiquei muitos dos sonhos que me habitam o rosto com um sorriso, ao cantar do galo.

Em Portugal, o sector cultural tem no seu documento de identificação uma série de fragilidades que surgem de mãos dadas com a precaridade laboral. Podia falar da ausência de uma política cultural que dê reposta às necessidades e diversidade do sector, ou até mesmo da manifestação “Parados, nunca calados” que se concretizou no passado dia 4 de junho. Mas hoje, não é isso que quero frisar.

Hoje, projeto a minha falta de ser parte de uma plateia e permito-me reconhecê-la nos rostos que me são familiares, mas também naqueles que por mim passam com a brevidade de um tique taque. Faço-o como meio de destacar a nossa responsabilidade e dever enquanto público. A luta por um sector cultural que veja serem respondidos os problemas urgentes, mas também os antigos, não é matéria exclusiva dos trabalhadores da cultura. Esta é uma custódia partilhada com todos nós. O lugar do espectador é de responsabilidade e dever para com o artista, a sua obra, e a partilha criada. O benefício não é só para quem pisa o palco, opera uma mesa de som, ou habita os corredores desconhecidos por detrás das cortinas. O que seria de nós, raça humana, sem momentos de fruição cultural?

Então, o que vais fazer por esta luta que também te cabe?

-Sobre Andreia Monteiro-

Cresceu na terra que um dia alguém caracterizou como o “sítio onde são feitos os sonhos” e lá permanece, quer em residência, quer na constante busca por essa utopia. É licenciada em Comunicação Social e Cultural, na vertente de Jornalismo, pela Universidade Católica Portuguesa, e mestre em Ciências da Comunicação, na vertente de Jornalismo, pela mesma entidade. É, desde maio de 2019, a diretora editorial do Gerador, Associação Cultural a que se juntou no final da sua licenciatura. Apaixonada pelo mundo artístico, é uma leitora insaciável, a companheira constante de um lápis e papel, uma curiosa de pincel na mão, uma amante de teatro e cinema e está completamente comprometida com a beleza da música que tem vindo a descobrir. É, desde 2019, aluna na escola de jazz do Hot Clube de Portugal. Acima de tudo, é uma criatura com pouco mais de metro e meio cujo desassossego não deixa muito espaço para tempos mortos.

Texto de Andreia Monteiro
Fotografia de Joana Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

3 Dezembro 2025

Estado daquilo que é violento

26 Novembro 2025

Uma filha aos 56: carta ao futuro

19 Novembro 2025

Desconversar sobre racismo é privilégio branco

5 Novembro 2025

Por trás da Burqa: o Feminacionalismo em ascensão

29 Outubro 2025

Catarina e a beleza de criar desconforto

22 Outubro 2025

O que tem a imigração de tão extraordinário?

15 Outubro 2025

Proximidade e política

7 Outubro 2025

Fronteira

24 Setembro 2025

Partir

17 Setembro 2025

Quando a polícia bate à porta

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e Manutenção de Associações Culturais

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

17 novembro 2025

A profissão com nome de liberdade

Durante o século XX, as linhas de água de Portugal contavam com o zelo próximo e permanente dos guarda-rios: figuras de autoridade que percorriam diariamente as margens, mediavam conflitos e garantiam a preservação daquele bem comum. A profissão foi extinta em 1995. Nos últimos anos, na tentativa de fazer face aos desafios cada vez mais urgentes pela preservação dos recursos hídricos, têm ressurgido pelo país novos guarda-rios.

27 outubro 2025

Inseminação caseira: engravidar fora do sistema

Perante as falhas do serviço público e os preços altos do privado, procuram-se alternativas. Com kits comprados pela Internet, a inseminação caseira é feita de forma improvisada e longe de qualquer vigilância médica. Redes sociais facilitam o encontro de dadores e tentantes, gerando um ambiente complexo, onde o risco convive com a boa vontade. Entidades de saúde alertam para o perigo de transmissão de doenças, lesões e até problemas legais de uma prática sem regulação.

Carrinho de compras0
There are no products in the cart!
Continuar na loja
0