Conheci a Marta Crawford há cerca de 10 anos em circunstâncias curiosas durante uma viagem à Croácia. Quando digo conheci, estou a falar pessoalmente, claro. Já a conhecia pelos seus actos públicos e, acima de tudo, pela televisão.
Confio que faço parte de uma geração que foi extraordinariamente marcada pelo trabalho televisivo da Marta. Imaginem um contexto em que a escola evita falar de sexualidade, que os pais sentem embaraço em abordar este tema, que a igreja ainda dá visibilidade à sua luta contra o prazer sexual, que começa a haver o acesso simples e generalizado a filmes e revistas pornográficas.
É neste caldeirão incontrolável que se ergue uma voz tranquila e descontraída em todas as salas de estar do país. Alguém que era capaz de se exprimir com uma imensa leveza, sem dramatizar a linguagem codificada da ciência, nem permitir que deslizasse para o quase inevitável anedótico.
Não era óbvio, no entanto, que as famílias optassem por este programa televisivo nos seus serões. No mesmo sofá, a ver o que emanava da caixa mágica, sentavam-se miúdos e graúdos, gerando uma enorme tensão quando umas simples mamas surgiam numa novela, quanto mais num programa inteiro a versar sobre orgasmos e clitóris. Mesmo assim, as audiências foram incríveis. E necessárias.
Julgo que a Marta contribuiu enormemente para uma mudança estrutural na sociedade portuguesa: a capacidade de entranhar a sexualidade no nosso quotidiano. Até então, todos fugiam a sete pés deste enredo, quer por vergonha, quer por desconhecimento.
Mas ter sido uma das principais responsáveis por esta disrupção não foi suficiente. Estando mais consciente do que a maioria de nós de que há um longo caminho a percorrer até estarmos perfeitamente informados sobre o que a sexualidade encerra, sobre as consequências para a saúde mental das pessoas, sobre a definição dos seus comportamentos, lança-se numa nova ideia, muito mais ambiciosa.
Tive a enorme sorte de ouvir, em antecipação, o que seriam as suas intenções para o Musex. Um novo espaço que proporcionasse a todos, independentemente das idades, do género, da escolaridade, da situação financeira, uma visão holística e pedagógica da sexualidade. Um local que, no fundo, preenchesse uma lacuna evidente.
Espantado com a sua energia e emoção inesgotável, fui, também, nessa altura, daqueles que lhe chamou de megalómana. E só mais tarde percebi como estava errado. Como pude esquecer tão rapidamente a transformação que ela já tinha originado? Como imaginei ser possível fazer uma revolução sem ser destemida?
Ontem foi colocada a primeira pedra deste museu, em forma de exposição. Amor Veneris, uma viagem ao prazer sexual feminino, é a primeira materialização do que o futuro museu pretende ser. Uma exposição que junta a arte e a ciência com o objectivo de consciencializar quem a visita sobre as dimensões mais importantes do prazer sexual feminino.
Sem nunca tirar a importância primordial da pedagogia, esta exposição prenuncia o que será o Musex. Um lugar que não desvaloriza o impacto da beleza, da orgânica e da experiência pessoal como melhor forma de transmitir a mensagem. Sei que sou tendencioso, mas arrisco-me a dizer que esta é uma das exposições mais interessantes e envolventes que visitei em muitos anos.
Para além da presença de obras de artistas nacionais e internacionais consagrados, muitas delas criadas de propósito para esta exposição, a Marta teve, ainda, o arrojo de chamar para junto de si a Fabrícia Valente, curadora, e os eternamente inquietos Os Espacialistas, responsáveis pela cenografia.
O Gerador também foi contagiado e ajuda com a programação de um apertado conjunto de iniciativas, desde conversas, workshops, visitas pop-up, showcases musicais e momentos para toda a família. Para além de lançar um novo projeto sobre a sexualidade feminina que agrega reportagens, um estudo à população portuguesa em parceria com o Musex e a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e muitas outras provocações que em breve revelaremos.
A exposição Amor Veneris pode ser vista no Palácio Anjos, em Algés, até dia 30 de dezembro.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Formado em comunicação empresarial, esteve ligado durante 15 anos ao setor das telecomunicações, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca do Grupo PT, com responsabilidades das marcas nacionais e internacionais e da investigação e estudos de mercado. Em 2014 criou o Gerador e tem sido o presidente da direção desde a sua fundação. Tem continuamente criado novas iniciativas relevantes para aproximar as pessoas à cultura, arte, jornalismo e educação, como a Revista Gerador, o Trampolim Gerador, o Barómetro da Cultura, o Festival Descobre o Teu Interior, a Ignição Gerador ou o Festival Cidades Resilientes. Nos últimos 10 anos tem sido convidado regularmente para ensinar num conjunto de escolas e universidades do país e já publicou mais de 50 textos na sua coluna quinzenal no site Gerador, abordando os principais temas relacionados com o progresso da sociedade.