Aos sete anos descobri o que era tocar-me e julguei ter um vício — nem sabia o que era masturbação, mas soube, desde início, ser algo errado pelo simples facto de incluir as partes secretas do meu corpo; tentava controlar-me e não conseguia, e nem acontecia masturbar-me regularmente, mas fazê-lo levantava tantas contradições dentro de mim que a memória ficou associada a um enorme sentimento de culpa e vergonha de mim mesma.
Desde aí, o percurso de ligação entre o eu mental o eu físico e o prazer físico tem sido marcado por uma constante auto repreensão. Até quando perdi a virgindade - aos quinze anos com o meu namorado da altura — e durante todo o tempo que estivemos juntos (tempo esse que deve ter durado até aos meus dezoito anos) — não fui capaz de o olhar durante o sexo; fechava os olhos, virava a cara. Era insuportável pensar deixar alguém ver-me ter prazer — tinha de ser um segredo, não era suposto eu gostar.
Reside em mim, desde pequena, a crença que o prazer sexual está na esfera dos homens e não na das mulheres. Este é um pensamento que, por mais que o tente afastar, continua a moldar-me e a ter efeito sobre mim; moldou-me, sobretudo, quando cheguei à adolescência e assumi que não só o prazer sexual cabia aos homens como era a minha função levá-lo até eles.
Como em minha casa nunca se falou de sexo, tudo o que aprendi sobre este assunto aprendi-o através da internet e da escola — nenhuma das opções, devo dizer, bom porto de informação. Na internet encontrei relações irreais, estereotipadas, baseadas na hiperssexualização da mulher e no seu papel submisso. Na escola, por outro lado, encontrei o terror do sexo, a ideia que este equivale a perda (vemo-lo desde logo com a expressão perder a virgindade: perder a infância, perder a inocência), e a ideia que o sexo apenas tem consequências negativas, sejam elas as doenças sexualmente transmissíveis ou a gravidez.
Fez há umas semanas um ano desde que comecei a escrever para as Gargantas Soltas e fará, no mês que vem, um ano desde que aqui desenhei a minha mulher casa, como as de Louise Bourgeois.
É raro reler o que escrevi, talvez por querer preservar a memória que tenho das coisas, talvez por vergonha da minha exposição ou talvez por não querer ficar desapontada com o que vier escrito. Ler essa crónica porém lembrou-me do àvontade com o corpo e do àvontade com o sexo que sentia e que hoje penso ter perdido um pouco.
Desconfio ter perdido porque tive de me religar ao amor presente no sexo. Durante muito tempo, só consegui aceitar o prazer sexual se ele proviesse de estranhos, com quem não tivesse qualquer tipo de ligação. Para conseguir admitir o ser sexual em mim (desapegado de qualquer imposição social), e deixá-lo cá fora, tive de eliminar o eu mental ou sentimental, completo e complexo das relações que estabelecia — nunca os deixei viver em conjunto. Só hoje me apercebo como andei tão despersonalizada de mim mesma a pensar que era assim que me encontraria.
Trazer o eu completo para o sexo é a tarefa dificil com que estou agora a lidar — implica reconhecer o corpo (mais velho, ou pelo menos, menos novo), as falhas, a vulnerabilidade, o deixar-se ver, o lutar contra mim mesma só para ser capaz de dizer à pessoa com quem estou do que gosto ou disgosto — algo que parece tão simples mas que ainda me fica travado a meio da garganta.
Mais dificil ainda é aprender a ver no sexo — pintado durante tanto tempo de repulsa - algo tão bonito quanto o amor.
Hoje, tenho uma casa diferente — tive de me redesenhar.
Na minha casa há loiça por lavar, alguns armários não são abertos faz anos e as janelas do último andar rangem ao abrir. Rangem e eu ponho a cabeça de fora e olho para os pés pequeninos lá em baixo que não param quietos e abanam a casa toda; até já desisti de ter frascos e frasquinhos: não sei onde os pôr e estão sempre a cair.
O soalho é pinho-branco; às vezes, no verão, ponho a casa ao sol e ela lá ganha uma corzinha — o soalho fica pinho-bege. Nunca pintei as paredes, nem as quero pintar: gosto da minha casa caótica e de pantanas.
As ervas do jardim crescem e crescem e estão por cortar, e no topo da casa há uma pitangueira que a protege do sol e que eu decoro de vez em quando com ganchinhos coloridos, mas nada de muito arrojado, falta-me a paciência. Não tenho plantas — acabo sempre por as deixar morrer.
Na minha casa há muitos livros — metade deles nunca hei de ler — e a cada mês que passa uma nova rotina: este mês comemos muitas laranjas e papas de aveia (até já não aguentarmos mais), e para o mês que vem quem sabe? Talvez morangos e manteiga de amendoim. Os vizinhos dizem que é um mau hábito, eu digo: temos pena, a minha casa é nova e quer coisas novas. Vou até à pontinha dos dedos das mãos (longe das janelas para que os frascos não me oiçam) gritar aos pés que não me deixem criar raízes!
Aqui, cheira sempre a comida e só entra quem vem por amor. Na cozinha vive uma mulher nua que se senta num banco a olhar para o corpo — conta os dedos dos pés, massaja os gémeos, brinca com os pelos, penteia os cabelo, agarra a barriga, toca-se no peito, toca-se no sexo, endireita as costas, rebola a cabeça e repete tudo outra vez no orgulho de ser. Não é desconfortável de ver, não é desconfortável de participar, é como ser feliz, é natural.
Chamem as visitas; espero que a descubram assim: nua.