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O teatro à solta nas aldeias

Num ano marcado pela pandemia, em que grande parte da programação cultural foi adiada ou…

Texto de Ricardo Gonçalves

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Num ano marcado pela pandemia, em que grande parte da programação cultural foi adiada ou cancelada, foram vários os projetos e iniciativas que conseguiram encontrar formas de se realizarem, ainda que devidamente adaptados às normas de segurança impostas pela Direção-Geral da Saúde (DGS). Certo é que, ao longo dos últimos meses, vários territórios ficaram sem grande oferta cultural disponível, especialmente aqueles que, em tempos normais, já sofriam com a falta dessas mesmas dinâmicas.

Falamos de zonas mais isoladas do território, de baixa densidade populacional, que nem sempre são tidas em conta na hora das digressões de certos espetáculos. Se a isso se juntar o facto de que a grande maioria das habituais festas populares e atividades locais terem sido canceladas, é provável que o retrato traçado de norte a sul do país seja o de um silêncio contínuo, que acaba por contribuir para um maior isolamento de certas populações.

Contra a maré, movidos pela importância de persistirem na promoção de certas dinâmicas, capazes de dar um acesso mais igualitário à cultura e às artes, o Gerador foi falar com grupos e companhias de teatro que nos últimos meses levaram às populações mais isoladas propostas artísticas, combatendo o isolamento e oferecendo formas de fruição alternativas, num tempo de intermitência, onde a cultura pode ter um papel importante a desempenhar.

O teatro como forma de contacto com as comunidades
A itinerância nem sempre é um aspeto fácil de comportar para grande parte das companhias de teatro em Portugal. Depende muitas vezes da vontade do grupo, dos meios disponíveis e da colaboração com os municípios, que nem sempre se chega a materializar. Mas foi, justamente, através desta complexa fórmula que o grupo de teatro Animódia, fundado em 2011 e sediado em Vila Pouca de Aguiar, decidiu levar até algumas localidades transmontanas e durienses, a peça O Pastor. Com apresentações que se estenderam de julho a setembro, passando por cinco localidades do concelho, esta foi a forma encontrada para a companhia manter a sua atividade, mantendo o contacto com as populações.

“Como o nosso trabalho foi reduzido cerca de 90% com a questão da pandemia, surgiu, em altura de confinamento, esta ideia de levar teatro às freguesias do concelho, sendo que conseguimos fazer cinco apresentações”, explica ao Gerador o seu diretor artístico, José Miguel Carvalho.

A partir de um texto original de uma das colaboradoras da companhia, a peça abordava a questão da ruralidade presente nestes territórios, abordando ainda a preservação das florestas e a emigração, temas muito presentes no quotidiano daquelas populações. “Uma vez que nas comunidades estariam canceladas todas as atividades, convívios e festas populares, achámos que seria interessante que esta peça fosse ao encontro das pessoas”, acrescenta José, realçando que durante o enredo da peça acontece um arraial, com referências ao santo de cada localidade, trazendo uma ideia de normalidade face aquilo que seria a habitual época festiva das localidades.

A receção, conta, não podia ter sido melhor. “Foi muito bom porque as pessoas saíram de casa e tiveram um bocadinho de contacto com a realidade através da cultura”. O responsável sente ainda que esta é uma boa altura para se olhar para estes territórios - muitas vezes pouco dotados de infraestruturas -, numa altura em que o próprio turismo “sentiu essa necessidade de ir ao encontro também do interior e das zonas mais calmas”. Este movimento pode contribuir para que “a cultura (popular) seja também preservada e que as tradições sejam de alguma forma melhor exploradas”, e onde as pessoas que desenvolvem propostas artísticas possam ter as “mesmas oportunidades que em outras partes do país”.

A peça "O Pastor" passou por cinco localidades transmontanas e durienses ©Miguel Machado

Partindo da Serra de Montemuro para outras altitudes
Um pouco mais a sul, em Campo Benfeito, aldeia do distrito de Viseu, encontramos o Teatro Regional da Serra do Montemuro, surgido nos anos 90. Na génese do trabalho deste grupo está, desde o princípio, a aldeia como local de criação artística mas também como uma preocupação iminente da atividade artística que desenvolvem.

“O teatro é um veículo de transformação da nossa sociedade. É importante que todas as pessoas tenham acesso a práticas culturais diversas. Quando vivemos e trabalhamos em territórios de baixa densidade, o que se torna fundamental é repensar a qualidade de vida das pessoas. Se as pessoas tiverem qualidade de vida, empregos estáveis, boas escolas para os filhos, bons transportes públicos, terão também uma maior disponibilidade de se deslocarem para verem e participarem em espetáculos”, realça Paula Teixeira, da direção de produção e comunicação da companhia, em entrevista ao Gerador.

Num ano em que celebram 30 anos de existência, o Teatro Regional da Serra do Montemuro seguiu para a frente com a “decisão ambiciosa” de realizar mais uma edição do Festival Altitudes, que decorreu de 8 a 15 de agosto que, para além da companhia residente, contou com a participação de outras companhias. “Preparamos o Espaço Montemuro para uma nova lotação (metade), com todos os recursos de higienização e desinfeção do público e espaços. Tivemos a importantíssima colaboração dos Bombeiros de Castro Daire e do Município e arrancamos. A abertura do festival provocava-nos uma grande ansiedade, mas havia entre nós um sentimento que tudo iria correr bem. Tínhamos feito a nossa parte na preparação”, salienta a responsável.

Com um balanço positivo, face à participação de um público “ávido de dinâmicas culturais”, o Altitudes veio confirmar a importância de se ter, neste tipo de projetos, uma missão de serviço público, que ganha ainda mais importância tendo em conta as regiões onde se insere. “Para além da diferenciação geográfica há elementos de aproximação com estas diferentes comunidades: o entusiasmo em participar, a possibilidade da companhia se mover para as suas geografias para o desenvolvimento dos projetos e a disponibilidade das pessoas em participar. Se existirem as condições de vida para que as pessoas não fiquem reféns apenas da rotina do dia-a-dia e que tenham disponibilidade de experimentar um projeto artístico, certamente que terão resultados pessoais muito positivos”, sustenta.

O Festival Altitudes realizou-se em agosto, com várias sessões ao ar livre ©Teatro do Montemuro

Propostas artísticas à solta nas Aldeias do Xisto
Em virtude da pandemia e da realidade em que se encontram várias populações das Beiras, a Histérico - Associação de Artes, sediada no Fundão, decidiu pôr em marcha um conjunto de propostas artísticas que têm dinamizado nas aldeias do Xisto, pensadas, precisamente, para os seus residentes.

“Decidimos propor à ADXTUR - Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto a realização destas atividades, tendo tido aceitação imediata. Não se tratava de espetáculos para turistas, mas sim para as próprias pessoas das aldeias. Tendo sido feito um levantamento etnográfico, de histórias, assuntos e vivências da sua gente, mas também desses lugares e da sua envolvência, para que as pessoas se sentissem identificadas, evidenciadas e até acarinhadas”, explica ao Gerador Miguel Geraldes, diretor da associação.

Através do teatro e da arte - campos artísticos que estão na génese desta associação - as atividades traduziram-se numa “oportunidade de evidenciar características próprias existentes no território, a nível etnográfico, cultural, patrimonial, turístico, entre outras”, realça Miguel, acrescentando que o objetivo era “fazer com que as pessoas se sentissem parte integrante de um projeto que pretendia mostrar como o isolamento ou o afastamento social foi contornado através desta ação”.

Foi assim que se realizou o projeto musical Porta a Porta, que se tratava de uma iniciativa de itinerância musical, promovida nas ruas destas localidades. “A intenção também passava pela própria interação com as pessoas, que, sem sair do seu espaço residencial, também podiam cantar essas músicas, ou até juntarem-se musicalmente, com instrumentos próprios, criando-se assim uma animação interativa”, conta.

Além desta iniciativa, a associação promoveu ainda o projeto Criar Raízes pelas terras, um espetáculo teatral, performativo e musicado, no qual os actores andavam de rua em rua, esboçando curiosidades e aspetos característicos da aldeias, provocando diálogos com os residentes.

Constatando que muitos dos espetáculos que circulam em digressões acabam por não chegar às populações mais isoladas - o que não contribui para a formação de novos públicos, o grupo assume uma postura diferente: “Tem-se apostado na formação do próprio público, seja ele qual for, tenha ele que idade tiver. Por norma, os temas recorrentes de todas as atividades têm incidido em questões relacionadas com diversos problemas e questões sociais que permitam uma reflexão sobre os mesmos por parte dos participantes e também por parte de quem assiste. Não queremos compactuar com uma desertificação também no aspeto cultural. Pensamos assim de forma criativa e crítica, pois este é o meio que nos envolve e nos queremos envolver”. 

A Histérico - Associação de Artes levou música e teatro às Aldeias do Xisto ©Miguel Geraldes

Pelas aldeias do Alto Minho
Depois de terem cancelado, em março, as apresentações de uma nova coprodução que iria circular por dez aldeias do Alto Minho, as Comédias do Minho e o Teatro do Frio, decidiram enveredar por um nova proposta artística, que acabaria por se materializar ao longo do mês de setembro.

Chamava-se Museu do Futuro Próximo e consistia na disposição de sete coleções temáticas, disponíveis nos municípios de Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira, a partir das quais os residentes podiam, através de percursos, redescobrir o território onde se inserem.

O convite foi feito pelas Comédias do Minho ao Teatro Frio, estrutura de criação artística multidisciplinar sediada no Porto, com a ideia inicial de poderem trabalhar artisticamente em territórios de baixa densidade. “O que estávamos a trabalhar com o Teatro do Frio era precisamente, durante o mês de março, poder circular por uma série de aldeias e fazer as apresentações deste trabalho, que estava em construção, em centros paroquiais e juntas de freguesias, indo ao encontro daqueles que frequentemente têm menos oportunidade de aceder e participar”, conta Magda Henriques, directora artística das Comédias do Minho.

Devido à situação pandémica essa proposta inicial teve de ser necessariamente alterada, mas o trabalho de criação conjunta não se perdeu. “Para nós foi, acima de tudo, um desafio. Tínhamos a ideia de fazer teatro com os colegas das Comédias do Minho e, de repente, vimo-nos obrigados a repensar os propósitos iniciais que tínhamos pensado para esse território. No entanto, foi muito bom poder partilhar esse pensamento e repensar o que é que poderíamos fazer, através de uma outra forma de aproximação às pessoas e ao território”, explica-nos Rodrigo Malvar, diretor artístico do Teatro do Frio.

Tal como nos explica o responsável, o Museu do Futuro Próximo foi a forma encontrada de poderem “auscultar o território”, tendo sido fundamental terem as Comédias do Minho como interlocutor desta região. Por seu lado, Magda Henriques salienta que o projeto tinha também o objetivo de trazer as pessoas de volta à rua, com as devidas precauções. “Estávamos no centro de cada uma das vilas e a proposta era que, em segurança, as pessoas pudessem agarrar num mapa e num conjunto de postais, e que a partir desses materiais explorassem o território de cada município. Isto implicava esses percursos, onde queríamos que o espaço público voltasse a ser ocupado. Esta foi a forma que encontramos de convidar as pessoas a voltarem à rua e a descobrirem aquele território com outros olhares, porque o que se propunha era que, através destas ficções, que eram criadas por uma componente sonora e uma componente de imagem, se pudessem espantar com esse quotidiano e com essa possibilidade de experienciar o território”.

O Museu do Futuro Próximo juntou as Comédias do Minho com o Teatro do Frio ©João Coutinho

A falta de políticas culturais em regiões de baixa densidade
Se por um lado a situação pandémica levou ao adiar de grande parte da programação cultural disponível no país, também é verdade que a pandemia veio colocar de novo o foco na falta de políticas culturais que se fazem sentir em certas regiões do país. Os projetos que aqui enumeramos são, portanto, apenas alguns exemplos de como ainda subsistem exemplos de quem trabalha com o território, contribuindo para uma maior formação de públicos e para um acesso mais igualitário à fruição cultural.

Miguel Geraldes, da Histérico, acredita que esta conjuntura reforça a importância de se olhar para estes territórios e se pensar em políticas mais eficazes de descentralização. “Isso devia ser prioritário a nível político, a par de uma aposta firme em políticas que possam combater a debandada populacional, o abandono das aldeias. As pessoas sentem esse isolamento. Muito mais num período de pandemia e que nos obriga a pensar além do económico: há o social. Há o aspecto de carácter lúdico a que as populações deviam ter acesso. Já para não falar do aspeto de saúde mental e psicológica. A arte e a cultura, a vários níveis, podem e deviam ter um contributo primordial”.

No caso do Teatro do Montemuro, o ónus da questão deve estar, em primeiro lugar, na existência de políticas que contribuam para a fixação de pessoas. Depois, sustenta Paula Teixeira, é importante que se olhem para os vários projetos artísticos e culturais que podem surgir nestas zonas, pensando no impacto que podem ter a médio e longo prazo. “Não podem ser definidos projetos sensacionalistas e mediáticos, mas efémeros no tempo, que levam os territórios ao topo do conhecimento e depois ao total esquecimento. A estratégia deve ser pensada assente na sustentabilidade dos projetos e dos territórios”, acrescenta.

Por sua vez, Magda Henriques, que à frente das Comédias do Minho tem tido uma experiência mais permanente de contacto com diversos municípios do Minho, considera que não há propriamente receitas, mas sim uma aprendizagem que se quer contínua. Para isso interessam políticas mas interessa também que, da parte destes grupos e companhias, existe um trabalho de contacto permanente. “Acho que nós nos podemos surpreender e devemos. Acredito muito nisto até pela minha experiência enquanto mediadora. Se por um lado, para aceder a determinadas práticas artísticas é preciso hábito e é preciso instrumentos e chaves de acesso, também é verdade aquilo que às vezes acontece que é «mas é possível eu estar a gostar tanto e não estar a perceber nada?». Por isso aquilo que acredito é que qualquer programação se faz do pensamento ou daquilo que é uma visão de um programador, mas o trabalho desse programador faz-se na escuta, que é diferente tendo em conta os territórios. Às vezes acerta-se mais do que outras vezes mas vamos sempre tentando através dessa escuta e dessa relação”, termina.

Texto de Ricardo Ramos Gonçalves
Fotografia de capa de Miguel Machado

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