Se no último artigo falei de Futebol e saúde mental, passo esta semana para a zona de conforto em que acredito totalmente: cultura e saúde mental. Em escassas linhas, porque este tema tanto é objecto de estudo avançado como poderia fazer uma inteira colecção de livros apenas com casos práticos de sucesso, deixo algum do meu pensamento. Falemos desta vez do Teatro, em particular.
As artes, em geral, há muito que são a base de uma ampla variedade de tratamentos de saúde mental e dependências. Da pintura à cerâmica e à musicoterapia, há muito que se reconhece que a prática artística tem um poderoso valor terapêutico. Mas esta forma de arte, o Teatro, pode ter tanto ou mais valor terapêutico do que as demais, muito ao contrário do que se julga à primeira vista. Por várias razões que incluem o apoio de pares, o tipo de expressão e o que muitos chamam de “Raio X emocional”.
Ao contrário de muitas outras formas de expressão cultural, ou de artes (como a pintura), o Teatro não é uma actividade solitária, é uma actividade de equipa – e bem diferente do conceito de equipa no Futebol. A sensação de isolamento e até de julgamento social que muitos sentem enquanto experimentam uma fase de pouca saúde mental ou psicológica, pode ser consideravelmente amenizada. Através do Teatro, da sua personagem e da relação com as outras, criam-se laços fortes e um sentimento de comunidade, de pertença, de algo que se constrói em conjunto. Parte, além da óbvia ligação a um texto ou argumento, de uma maior ou menor identificação com ele, do esforço de entrar noutra “pele” e, ao comunicá-lo, traz vantagens únicas (aqui apenas comparáveis ao Cinema).
Isto leva-nos à Expressão. É certo e objectivo afirmar que falar sobre cada problema ou trauma é terapêutico. Se há pessoas que nascem com propensão para depressões, doença bipolar ou adições de vários tipos (químicas e/ou comportamentais), outras desenvolvem problemas de saúde mental como stress pós-traumático – resultantes de algum trauma. Ora se falar, sobretudo com um profissional, é base do processo terapêutico, também é sabido que as feridas ou o sofrimento podem ser profundas demais para que se possa falar com facilidade.
O Teatro pode ajudar a criar personagens que vivenciam o mesmo tipo de trauma ou sofrimento, sem que sejam objectivamente elas próprias. Contudo, podem sê-lo na medida em que, pela personagem, se vão efectivamente expressar.
É muito bonito este trabalho e quem já assistiu a peças com pessoas com experiência em doença mental, ou mesmo em palcos com grandes plateias onde algum actor está com sofrimento psicológico – acontece com mais frquência do que se julga – entende a força e o carisma que dão às personagens. É um passaporte para a expressão saudável! Exploram a sua situação, distanciando-se dela ao mesmo tempo.
É absolutamente único, sobretudo porque estão perante uma plateia, ao contrário do Cinema.
Por último quando ouço referir o raio-X emocional, trago-o para estas práticas da cultura. Quando partimos uma perna ou nos lesionamos fisicamente, muitas vezes somos convidados a fazer um raio-X, para ver se sofremos alguma fractura óssea. É assim que o médico vai depois saber o que realmente aconteceu e a partir daí apontar o nosso “desígnio”. É fractura, não é fractura: diagnóstico feito, segue caminho (in)diferente.
Embora os profissionais de saúde mental possam verificar se se está emocional ou psicologicamente doente, podem ter dificuldade em ajudar se não entenderem totalmente a sua causa ou origem. E, se forem honestos, muitas vezes assumem que não a entendem de todo.
O Teatro pode efectivamente ajudar aqui, também, dando aos profissionais de saúde mental uma ideia da natureza do problema, compreender melhor e assim poder ajudar da melhor maneira. É uma forma de ver a lesão emocional através da sua expressão.
Posto isto, não será muito difícil entender a magnitude do que o Teatro pode fazer na área da saúde mental e psicológica, tanto para quem está em sofrimento como para os profissionais.
Há muito ainda para pôr em prática. Mas estamos no bom caminho. Assim existam palcos, certamente que o público comparece.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Ana Pinto Coelho-
É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora. Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.