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Os Krahô e a imagem como elemento político e de resistência

Na Sala Manoel de Oliveira, no Cinema São Jorge, são muitos os filmes que, ao…

Texto de Carolina Franco

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Na Sala Manoel de Oliveira, no Cinema São Jorge, são muitos os filmes que, ao longo da sua existência, foram projetados e deixaram, de certa forma, uma semente em quem os viu. Num contexto de festival, como o Doclisboa, essa semente germinada em coletivo, muitas vezes regada com debates pós-filme, ganha um nível de comprometimento maior e dificilmente não terá um rasto fora do espaço do cinema. Há uma semana, a sessão “Salve Krahô”, inserida na secção Cinema de Urgência, recebeu Renée Nader Messora e João Salaviza como mediadores e espalhou as sementes que transportam consigo comprometimento. 

Com uma t-shirt preta na qual se lia “#DemarcaçãoJá”, que já tínhamos visto em Cannes aquando da apresentação do filme “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” (2019), João Salaviza conferiu à projeção do filme naquela sala “construída em plena ditadura” a urgência de nos comprometermos com o que vemos. Na hora que se seguiu, viu-se o filme realizado pelo coletivo audiovisual Mentuwajê Guardiões da Cultura, que dava a conhecer o Kêtuwajê, uma festa de iniciação fundamental para os Krahô, pela voz e os olhares dos próprios. 

Quando o filme acabou, Renée e João juntaram-se a Miguel Ribeiro, co-diretor do festival, na sala, e ao antropólogo Filipe Kometani, Ijhãc Krahô, Cõcjõ Krahô (ancião), e Tenaka (liderança feminina), a demarcar a tela que pouco antes tinha mostrado o filme que, para algumas das pessoas ali presentes, criava um primeiro ou segundo momento de contacto com o povo Krahô. A urgência de os ouvir convidou a ficar, para tentar entender como é que a aldeia vive, particularmente em tempos de pandemia, uma época que dificulta a vida em comunidade. Com um Governo que dificulta, a diferentes níveis, a vida e a segurança dos povos indígenas no Brasil, o cenário não parece ter espaço para a esperança de que “vai ficar tudo bem”, mas os Krahô garantem que sim. A partir da aldeia por videoconferência, juntos numa só sala, contaram que os tempos não têm sido fáceis, mas que resistem.

A troca de palavras entre Renée e Salaviza com os Krahô prova que a relação que nutrem vai muito além do filme que fizeram na Aldeia da Pedra Branca, no qual Ijhac foi o protagonista. 

Falam-lhes com o à vontade com que se fala com família — e iríamos perceber mais tarde que é isso que, na verdade, são. Já esta semana, conversámos com os dois cineastas sobre esta relação de continuidade, a importância do cinema indígena e o papel transformador que as imagens podem ter. Logo percebemos que estão quase de partida para passarem mais uma temporada com esta família que lhes diz tanto. 

Filmar como ato político — “o poder de reivindicação da imagem”

João Salaviza conheceu os Krahô pela mão de Renée, numa altura em que ainda não tinham ideia de fazer um filme sobre este povo e quando a diretora de fotografia já circulava pela aldeia com naturalidade. Nessa altura, Renée, que cresceu em São Paulo, já tinha iniciado uma relação com os Krahô, que começou a partir do momento em que a convidaram para filmar uma cerimónia de fim de luto, pela morte de Aleixo Porri Krahô. “Eu fui registar, em vídeo, a festa do Porri, que acabou virando um documentário. Nessa viagem, conheci um professor da aldeia Pedra Branca, e percebi que já nessa altura havia uma demanda pela criação de imagens. Eles viam muito a criação de imagens como uma forma de manter um registo dos saberes que estavam-se perdendo, com a morte dos mais velhos e com todas as mudanças que aconteceram nos últimos 20 anos”, recorda Renée.

Desde 2010 até agora — “porque é um trabalho que não cessou, continua” — a relação com as imagens tem-se intensificando e já ganhou diferentes rumos. Uma mudança significativa na aldeia foi a chegada de luz elétrica, em 2016, que tornou mais facilmente acessível também uma série de conteúdos audiovisuais. Como recorda Renée, “no dia seguinte tinha três televisões na aldeia, no outro dia tinha seis”, e hoje “praticamente todas as casas têm uma”. Com a chegada da televisão e “essa avalanche de imagens”, “eles começaram a ver o jornal diário, que passa todos os dias na rede Globo, que é praticamente o único canal que dá para assistir na aldeia”. Foi aí que o grupo decidiu criar o Jornal Krahô, e Renée e João participaram no processo de criação, tentando “apoiá-los, mas de uma forma o menos intrusiva possível”. 

Neste Jornal Krahô, as imagens começaram a ganhar um contexto político e um outro tipo de resistência a partir do momento em que os krahô decidiram usá-lo para expor o que não estava bem na sua aldeia. Renée e João ajudavam na montagem, que faziam todas as sextas-feiras antes das “matérias serem mostradas na aldeia, numa sessão que ainda durava cerca de uma hora e meia”. Num dos grupos que compunha o jornal encontrava-se um rapaz krahô que era também responsável pelo abastecimento de água nas casas da aldeia e, por essa altura, havia alguns problemas com o sistema de canalização, e esse mesmo rapaz decidiu “fazer uma denúncia através do Jornal Krahô”. 

“Ele escolheu filmar todos os problemas que estavam acontecendo nesse sistema e a gente foi caminhando pela aldeia inteira mostrando — ‘aqui tem um cano quebrado’, ‘essa torneira está assim há não sei quanto tempo’ —, mostrando tudo o que estava errado. E esse programa em específico, ele quis fazer em português, para levar o assunto para as autoridades. A gente editou o programa, ele foi ter com o chefe dele em Itacajá, e na semana seguinte tinha um técnico da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) consertando todos os problemas referentes à água”, partilha Renée Nader Massara. 

Para Renée, este “foi um momento muito importante para eles perceberem o lugar de reivindicação da imagem”. 

Decolonizar o (nosso) pensamento 

Para João Salaviza, importa clarificar que “as coisas não se cristalizam dentro de uma aldeia indígena”. No caso dos Krahô, a tradição e o contacto com novas tecnologias vivem em plena união, usando estas últimas para lhes atribuir a utilidade que lhes faz mais sentido. O realizador explica que “as imagens que estão hoje a ser produzidas em aldeias indígenas, feitas pelos próprios indígenas, também vêm de alguma forma implodir algumas destas ideias que nós tínhamos sobre onde articular tradição e modernidade, o que é natureza e cultura”.

Para “um olhar exterior, um olhar branco”, estes filmes mostram como “todos estes elementos convivem e a cultura é uma matéria viva em permanente construção e há dinâmicas geográficas, demográficas, culturais”. “O mesmo miúdo que pode ir a Itacajá jogar um videojogo ou levantar dinheiro para fazer as suas compras, ou vir à Europa connosco de avião, ou usar um telemóvel com muita fluidez, é o mesmo miúdo que continua a ter encontros de ordem espiritual ou xamânica, que continua a ter um entendimento da floresta, dos animais e das plantas que é totalmente diferente do nosso”, reflete João Salaviza. 

Esta produção de imagens, que na pandemia se acentuou nas redes sociais e em canais como a Midia Índia, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros) ou o próprio Jornal Krahô, é também uma forma de “reconexão” entre povos que partilham os mesmos problemas. E foi também neste espírito de reconexão que surgiu o Vídeo nas Aldeias, projeto pioneiro do antropólogo Vincent Carelli que pretendia ligar vizinhos que outrora foram parentes e que, com o processo de colonização “que dura há mais de 500 anos”, ficaram distanciados — de que é exemplo o filme “Já fui seu irmão”, “que retrata um encontro entre os Krahô e os Gavião, que se sabe que num passado não muito distante teriam sido parentes ou partilhado o mesmo espaço territorial”.

Recuperámos a responsabilidade de nos comprometermos de que João Salaviza falava na sexta-feira e trouxemos o assunto para cima da mesa. Para João, essa responsabilização parte de reconhecermos que existe “um processo de branqueamento histórico em Portugal, que está cada vez mais visível neste imaginário glorioso e colonial”. “É este racismo colonial e sistémico que permite que se coloquem portugueses com outra cor de pele em lugares de sub-humanidade e sub-alteridade permanentemente no espaço público e na vida quotidiana portuguesa, e é óbvio que esta lógica é a mesma que faz com que não exista nenhum tipo de relação nem nos manuais escolares, nem institucionalmente com os povos ameríndios, particularmente aqueles do Brasil”, diz Salaviza.

Para ilustrar esta falta de relação, recordam um momento em que mostraram “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” a um grupo de professores do ensino secundário, numa “espécie de sessão didática” em que pretendiam dar ferramentas para se abordarem estes temas nas aulas. “O ‘Chuva’ já é um filme feito num lugar de mediação, que tem uma organização qualquer que, achamos nós, tem uma aproximação que pode permitir um olhar exterior também. E há um professor do ensino secundário que, no final do filme, nessa sessão, nos diz — ‘eu mostrar este filme na aula é cometer um haraquiri pedagógico, não é possível mostrá-lo numa aula’. E era um professor de História. Bastava dizerem que estas pessoas que acabaram de ver num filme de quase duas horas são alguns dos sobreviventes do maior genocídio da História, que foi cometido justamente pelos Europeus, principalmente pelos portugueses e os espanhóis, nas Américas, em particular no Brasil. Talvez começar por aí. Mas há uma espécie de limpeza, não só étnica, mas também no plano simbólico e da produção de conhecimento”, contam.

"Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos" ganhou o prémio do júri na secção Un Certain Regard, em Cannes, em 2019

Para ir contra este branqueamento, e não cair em narrativas “como a que foi perpetuada na construção da estátua do Padre António Vieira, que podia ter uma série de facetas e surgiu como a do catequizador de índios”, João Salaviza e Renée Nader Messora sublinham que “é fundamental todo o tipo de esforço, que passa por ir fazendo debates, ocupar o espaço público com filmes, com conferências, com conversas informais, e descolonizar os museus”. E é por isso que a sessão no Doclisboa é tão urgente e as reflexões que dela partem devem ultrapassar os limites da sala de cinema.

Texto de Carolina Franco
Fotografias de Gonçalo Castelo Soares, da cortesia de Doclisboa
O Doclisboa e o Gerador são parceiros

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