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Os racistas estão a morrer. Respiremos!

Nas Gargantas Soltas de hoje, Paula Cardoso, a pretexto das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre racismo, diz-nos que esperar pela revolução geracional não é suficiente, é necessário um comprometimento coletivo. "Encontro respostas nas engrenagens que oleiam a máquina do racismo estrutural. Podemos substituir peças, disfarçando a aparência violenta do engenho, podemos até substituir todos os operadores, criando uma ilusão de renovação, mas a máquina continuará a produzir aquilo em que se especializou – opressão e exclusão –, a menos que a desmantelemos."

©Alice Macedo

Aconteceu algures em meados da década de 80. Recém-iniciada numa nova realidade, fiz o que o meu instinto de sobrevivência pediu: corri a chorar para o colo familiar. Nunca me esqueci do momento porque foi aí, quando senti pela primeira vez que a cor da minha pele era pretexto para vexação, que passei a colar à minha identidade este ‘mantra’: “Mil vezes ser preta, do que branca como o papel com o qual eu limpo o cocó”.

Mais palavra, menos palavra, foi assim que, logo na escola primária, recebi da minha mãe aquela que recordo como a primeira capa para enfrentar a discriminação racial: a minha voz. Era quanto bastava, e foi quanto bastou até começar a perceber o que acontecia de cada vez que falava.

Se em casa eu era ouvida e compreendida, fora dela eu era ignorada, descredibilizada e silenciada. Hoje tenho consciência que foi nesse esforço de validação de múltiplas agressões racistas que me comecei a tornar afónica. Também percebo agora que aquele instinto natural de denunciar a injustiça deu lugar a um pacto de silêncio.

Calar para não ter a minha fala sufocada tornou-se um modo de sobrevivência, até se revelar insustentável: com o tempo percebi que as palavras reprimidas asfixiam tanto ou mais do que aquelas que sendo ditas são imediatamente silenciadas.

A passagem dos anos também me mostrou que o tempo, por si só, não resolve problemas estruturais. Pode, quando muito, ajudar no despertar e expandir de consciências, ponto de partida para a reparação de disfuncionalidades crónicas.

Por isso, por mais que as novas gerações vivam “noutra onda” e sejam “globalizadas”, como assinalou o Presidente da República em entrevista televisiva, isso não nos permite inferir que tenham “uma alergia total às discriminações, à xenofobia e ao racismo”, conforme defendeu Marcelo Rebelo de Sousa, na mesma ocasião.

A revolução geracional de Marcelo

Confiante numa espécie de revolução geracional, o Chefe de Estado revela uma vez mais desconhecer as malhas com que se cose o racismo estrutural.

“Há, obviamente, na sociedade portuguesa imensos traços que têm que ver com o império. Como há nas sociedades colonizadas imensos traços que têm a ver com a experiência da colonização”, admitiu o Presidente, reconhecendo que “mudar a cultura cívica demora imenso tempo e imensas gerações”.

Ainda assim, Marcelo está optimista. “Também há uma realidade que é preciso tomar em consideração, e que é a seguinte: as pessoas morrem, gerações vão desaparecendo, deixam legados, deixam traços e vão desaparecendo. E as novas gerações vivem, em muitos aspectos, noutro mundo, noutra onda. São globalizadas, mesmo. Mesmo quando não têm poder económico para serem globalizadas em termos de vida, de circulação, circulam na net, circulam nas ideias e, portanto, nas crianças e na juventude, é patente uma alergia total às discriminações, à xenofobia e ao racismo”.

Das palavras do Presidente da República para a realidade, volto a recuar aos meus primeiros anos de escolarização, e cruzo a minha experiência com as vivências das ditas gerações globalizadas.

Observo que aquilo que me aconteceu algures em meados da década de 80 continua a acontecer, apesar de termos mudado de século.

Afinal, porque é que, aos 5 anos, o filho do músico Matay partilhou com o pai: ‘Eu não quero mais ser preto’?

Porque é que antes mesmo de completar 3 anos, a L. teve de ouvir de um colega que, por ter cabelo afro, nunca poderia ser princesa?

Porque é que, perante o desafio de escolher entre uma boneca negra e uma branca, crianças entre os 6 e os 8 anos – brancas e negras – optaram maioritariamente pela branca, apontada como a mais bonita e benévola?

Porque é que uma menina negra de quatro anos interiorizou que a roupa distintiva de uma mulher negra é uma bata?

Encontro respostas nas engrenagens que oleiam a máquina do racismo estrutural. Podemos substituir peças, disfarçando a aparência violenta do engenho, podemos até substituir todos os operadores, criando uma ilusão de renovação, mas a máquina continuará a produzir aquilo em que se especializou – opressão e exclusão –, a menos que a desmantelemos.

E isso só é possível com reconhecimento e políticas públicas de reparação. Reconhecimento esse que passa pela recolha de dados étnico-raciais, e reparação que exige medidas concretas, como a criação de quotas de acesso à educação e ao emprego para minorias étnicas.

Acreditar que o racismo se vai desfazer em cinzas porque as pessoas morrem, levando consigo uma herança de desigualdades faz tanto sentido quanto acreditar que vamos resolver o problema das emissões de carbono porque as novas gerações são “naturalmente” ambientalistas. Estarmos individualmente conscientes dos problemas e comprometidos com a sua resolução serve de pouco sem uma resposta colectiva.

Se assim não fosse, os estados europeus teriam sequer pensado em discutir o Regime de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia, que prevê, entre outras medidas, incentivos à inovação para criação de indústrias menos poluentes?

Dir-me-ão que comparar a urgência da acção climática com a urgência da acção de combate ao racismo é um absurdo. Será. Mas só até que a morte nos repare.

-Sobre a Paula Cardoso-

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.

Texto de Paula Cardoso
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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