O lugar mediático ocupado pela pandemia da COVID-19 veio progressivamente a ser substituído à medida que as tensões entre a Rússia e a Ucrânia se foram agudizando, tornando-se oficialmente o foco principal aquando do início da invasão ao território Ucraniano pelo estado Russo. De repente, as nossas conversas, casas, escolas e postos de trabalho foram assolados pelo acontecimento, principalmente através das televisões e jornais que propagam as notícias a partir de uma visão ocidental-cêntrica. O discurso hegemónico não parece ter em conta as raízes da guerra imperialista de que estamos a falar, onde um estado invade militarmente outro estado, por motivos completamente alheios aos da população. Esta atitude jornalística sem critério científico, que em muito contrasta com o que assistimos durante meses de pandemia, faz-se notar através do apagamento da análise dos interesses geopolíticos dos dois blocos imperialistas que estão a usar a Ucrânia como proxy para a sua guerra, e em que qualquer tentativa de nuance é imediatamente percebida e atacada como "justificação para a invasão russa”. Ignora-se o papel da OTAN e UE no golpe de Estado de 2014 e os desenvolvimentos de 8 anos de guerra civil. Simultaneamente os media hegemónicos pedem recolhas de fundos que incluem a mobilização de recursos financeiros para a militarização e escalada do conflito, as perspectivas apresentadas nos telejornais são acríticas à lei que proíbe homens ucranianos entre os 18 e os 60 anos de saírem do país ou os ataques à população cigana por milícias ucranianas. No fundo, escancara-se a dependência e submissão da agenda dos países da União Europeia aos interesses dos E.U.A. nesta guerra, como vêm sendo desde a queda da União Soviética, com a intenção de expansão militar da NATO que se continua a consolidar mesmo quando se deveria ter desmantelado com a dissolução da URSS, como explicou Maria Raquel Freire nesta entrevista. Assim, a NATO tem-se oposto ao bloco em formação entre a China, Rússia e aliados, sob pretexto securitário, enquanto que há décadas exclui a Rússia da arquitectura de segurança europeia. Tudo isto soma-se ao apagamento e invisibilização que acontece das ligações entre o Estado Ucraniano e a extrema-direita, certamente em nada desigual aquela da extrema-direita russa na região de Donbass ou a relação da cúpula russa com o pensamento fascista de Aleksandr Dugin, mas igualmente relevante para entendermos como uma realidade gritante tem sido ignorada pelos media hegemónicos por não sustentar a narrativa ocidental-cêntrica, onde existe um lado completamente bom e outro malvado tal qual filme de Hollywood. Extrema-direita esta que se tem apresentado um pouco por toda a Europa, por exemplo com a presença da bandeira da OUN-B/UPA (organizações colaboracionistas a nazis ucranianos responsáveis pelo holocausto judaico na Polónia) em inúmeras manifestações, inclusivamente na de Lisboa, onde aconteceram vários ataques a grupos de esquerda que se posicionam tanto contra a invasão Rússia como contra a NATO, espoletando o ódio dos militantes acríticos de ambas as frentes.
A par com esta realidade, assistimos a uma mobilização animada de solidariedade ao povo ucraniano, sobretudo a nível europeu de organizações, associações, coletivos e indivíduos. Notamos uma nova sensibilidade para a temática dos e das refugiadas, uma atitude que não vimos de forma tão carregada em crises anteriores. Shahd Wadi afirma “Ouço jornalistas a distinguir entre uma guerra e outra. Entre uma pessoa a fugir e outra, como se qualquer guerra fosse capaz alguma vez de se tornar normalidade. Vejo a solidariedade a tornar-se seletiva, como se houvesse vidas que merecem o choro e outras não.” Parece-me que não têm acontecido só com jornalistas mas com a generalidade da população, mais ou menos influenciada pelo discurso hegemónico. Tenho-me questionado sobre os lugares de onde esta atitude possa vir, concluindo que os privilégios vividos pela população no Ocidente, além de se custearem com base na exploração e destruição nos chamados “países de terceiro mundo” também cristalizaram a ideia de superioridade moral relativamente a uma ideia de não-guerra no território Ocidental, tal qual uma imunidade que leva a pensamentos como “agora a guerra é cá” e antes era “sempre lá”, como se realmente não vivessemos em territórios dominados por estados que contribuem e usufruem diretamente com “a guerra de lá”. Surpreende-me que esta situação não se torne um mote para pensarmos “Com quem empatizamos?” como se não estivéssemos realmente perante uma diferenciação, também influenciada pela nossa cultura racista e xenófoba, em que se tornou escandaloso “fazer comparações”.
Com as considerações acima não quero dizer que discordo das mobilizações pelo apoio urgente aos refugiados ucranianos. Na realidade, acredito que a abertura de fronteiras, a descomplicação dos processos burocráticos e demais medidas de apoio a refugiados devem existir. No entanto, também precisamos de ter em consideração os entraves institucionais e burocráticos que sempre existiram, por exemplo em Portugal para o acolhimento de migrantes e as condições extremas de vida em que muitos vivem no Sul de países europeus, muitas vezes vítimas de redes de tráfico humano e trabalhando na exploração agrícola (em Portugal, França, Itália…), devido à falta de mecanismos e vontade política para a atuação na questão e perante uma passividade generalizada (apesar das exceções) que prepetua um discurso ignorante sobre o tema e não reconhece os benefícios da migração nos países, incluíndo os económicos. Além de que este sistema de racismo e xenofobia institucionalizados também levam a situações mais dramáticas como o abominável assassinato de um migrante ucraniano às mãos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). A discrepância na forma política como temos lidado com as diferentes crises de refugiados é gritante e deve ser analisada: Nem mesmo os milhares de mortes ocorridas no Mediterrâneo, “o mar mais mortífero do mundo”, foram suficientes para demover aquela que chegou a ser chamada como “fortaleza Europa” e se encontrou dividida, levando a que, apesar das polémicas, a esmagadora maior parte dos refugiados fosse acolhida por países não-europeus. Por outro lado, atualmente e a uma velocidade incrível têm chegado milhões de refugiados ucranianos e agilizam-se os processos burocráticos. Assim, creio que carecemos de uma perspetiva crítica na análise de situações, para compreendermos as escolhas políticas que temos presenciado e que determinam a vida das pessoas. Sem essa perspectiva nunca poderemos intervir nos processos políticos em favor dos melhores interesses dos povos.
-Sobre a Raquel Pedro-
Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.