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Cultura e artes em 2024: as questões essenciais

Paulo Pires fala-nos sobre os desafios e oportunidades para a cultura e para as artes em 2024, destacando temas como a territorialização das políticas públicas, a sustentabilidade, a interseção entre artes e saúde, e a evolução dos modelos de gestão cultural.

Texto de Redação

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Entre outros desafios, alertas e focos temáticos actuais, vislumbra-se um novo fôlego para uma maior territorialização das políticas públicas culturais.

1.

O ano de 2024 será um dos mais fervilhantes e desafiantes da vida democrática portuguesa. No que concerne à cultura e às artes em particular e ao seu respectivo enquadramento governativo – e independentemente da(s) força(s) partidária(s) que liderar(em) o país, resultante das legislativas de 10 de Março, e das suas visões sectoriais –, é fundamental que não haja um retrocesso real e simbólico. Huxley dizia que talvez a maior lição da História seja a de que ninguém aprendeu realmente as lições da História. Contrariar esta tendência significa assim, desde logo, a manutenção de um ministério da cultura, a qual se afigura absolutamente estratégica para que este campo possa continuar a ser visibilizado, valorizado, empoderado e consolidado nas suas dimensões política, social, económica, criativa e laboral. É imprescindível renovar a legitimidade política desta área da governação à luz dos direitos culturais e da democracia cultural, para bem dos seus profissionais e dos seus públicos.

2.

Sabe-se há muito que os ecossistemas culturais e artísticos necessitam de três ingredientes vitais para crescer, inovar e consolidar-se: estabilidade, previsibilidade e sustentabilidade. É fulcral, por isso, persistir de modo linear com a trajectória de reforço progressivo das dotações financeiras dos programas de apoio às artes desenhada ao longo dos últimos anos, aqui com uma nota particular no que concerne ao apoio sustentado na sua modalidade bienal. Este carecerá, de facto, de afinação e incremento no sentido de se garantir que esta opção continua a ter um papel relevante na política pública cultural (à semelhança do apoio quadrienal), e que não poderá – por falta de actualização orçamental e, assim, com verbas menos musculadas – ser uma espécie de “elo mais fraco” ou apoio agora erroneamente percepcionado como não estrutural.

Além de que esse desvirtuado cenário contribui(rá) também, como solução de recurso de não poucas entidades, para um inevitável (mas desadequado) movimento de transferência e, assim, para um expectável aumento de candidaturas ao apoio a projectos – tipologia que tem, como é sabido, uma lógica e objectivos bem diversos do apoio sustentado – por parte de determinadas estruturas artísticas com uma arquitectura organizacional, histórico, dinamismo e reconhecimento mais consolidados, e cujo perfil, à partida, se coaduna(ria) mais com a natureza do programa sustentado e não com um financiamento mais limitado e de cariz pontual. Ou seja, poder-se-á estar a falar, em vários casos, de um recuo e fragilização no percurso evolutivo de certas entidades que já alcançaram determinado patamar ou que estão a fazer esse caminho.

Por outro lado, há que insistir na diversificação de temáticas, estratégias e destinatários relativos ao programa de apoio em parceria, também coordenado pela Direcção-Geral das Artes, bem como numa análise mais aturada, crítica e proactiva do impacto inicial de instrumentos estruturantes como o estatuto dos profissionais da área da cultura ou as redes culturais recentemente criadas (Rede Portuguesa de Teatros e Cineteatros Portugueses e Rede Portuguesa de Arte Contemporânea). Urge acentuar a monitorização destas medidas no terreno e avaliar mais-valias, fragilidades e necessidades de reformulação e afinação regulamentares e/ou operacionais.

3.

A territorialização das políticas públicas para a cultura não é, de todo, uma problemática nova em Portugal. Ao longo do tempo, diversas entidades e iniciativas enfocaram nesta temática, tendo sido produzido amplo pensamento e apresentadas propostas de maior articulação entre a administração central e as autarquias locais com o objectivo de valorizar os recursos existentes nos territórios e contribuir para a denominada “correcção das assimetrias regionais”. Na prática, houve avanços nos planos legislativo e regulamentar, bem como por parte do terceiro sector, com impactos variáveis e diversos no terreno, mas a ambição pode (e deve) ser maior, e existem agora novas janelas de oportunidade para tal.

Já em 2023 assistiu-se a alguns passos estruturais visando um efectivo aprofundamento do processo de descentralização e, assim, uma reforma da administração desconcentrada ao nível regional para garantir maior coesão e desenvolvimento, isto com a conversão das CCDR’s em institutos públicos e a sua incorporação de vários domínios temáticos e de um conjunto vasto de atribuições e competências, inclusive na área da cultura e património. Acrescem a extinção das direcções regionais de cultura disseminadas pelo território continental, a cessação da Direcção-Geral do Património Cultural e a criação de um instituto público (Património Cultural) e de uma entidade empresarial do Estado (Museus e Monumentos de Portugal), no sentido quer de separar as águas face a realidades claramente distintas e com contornos, desafios e necessidades específicos, quer de dotar estas duas áreas sectoriais de maior ambição, autonomia, recursos, planeamento, estabilidade e operacionalidade. 2024 será, por isso, um ano exigente e estimulante de transição, adaptação e afinação para os profissionais dos sectores público e privado ligados a este universo.

Não obstante haver outras questões pertinentes a levantar sobre estas alterações, o que parece aqui mais relevante sublinhar – sendo um dos grandes desafios já deste ano e dos vindouros – é o facto (aliás, já há muito identificado) de ser essencial e incontornável uma articulação, diálogo e alinhamento, ao nível das administrações central e regional, entre duas áreas governativas (e seus respectivos serviços e organismos) no tocante às políticas públicas culturais para os territórios, com reverberação no plano local: a Cultura e a Coesão Territorial.

Esta territorialização das políticas para a cultura abrange áreas como: a sensibilização, difusão e acesso a fundos nacionais e europeus; a capacitação do sector cultural e criativo; o conhecimento empírico detalhado e actualizado deste universo; a implementação de estratégias regionais envolvendo os diversos players; a relação, a nível regional/local, com os agentes públicos e o terceiro sector; a dimensão da requalificação e equipamento de espaços culturais; a consolidação de novas redes culturais e seus impactos sistémicos; a circulação de projectos artísticos; entre outros aspectos relevantes.

Só através de uma intervenção holística e concertada, cruzando cultura e coesão, é possível abordar, com realismo, incisividade e adequação, o país nas suas múltiplas diversidades, dualidades e contrastes, para instaurar uma maior horizontalidade da relação (prefiro esta terminologia à de “descentralização”) dos poderes com os diferentes espaços e centralidades culturais (não obstante a sua localização, escala, histórico e visibilidade). O que implica, em última análise, um trabalho regular, continuado e exigente de equidade, proximidade e cuidado com os territórios por parte das instituições públicas desconcentradas com novas responsabilidades nos campos cultural e patrimonial.

Esta abordagem aos territórios terá, assim, de passar por políticas integradas compostas por medidas de articulação e de discriminação positiva que, interseccionando diversas variáveis, assegurem a coerência, coesão, transversalidade e eficácia das mesmas. E que esses instrumentos privilegiem não apenas as geografias de baixa densidade e as latitudes insulares, mas também as dinâmicas e transformações associados às próprias realidades metropolitanas e suas múltiplas camadas, fenómenos e nuances, por vezes menos debatidos e dissecados.

4.

Ainda no plano territorial, 2024 assiste ao arranque da trilogia de Capitais Nacionais da Cultura proposta pela tutela, com Aveiro a dar o mote, seguindo-se nos anos seguintes Braga e Ponta Delgada, e culminando em 2027 com a Capital Europeia da Cultura no Alentejo, em Évora. Estes eventos-âncora, e todas as estratégias, projectos e dinâmicas associados, têm, a priori, um forte potencial para alavancar, visibilizar e transformar espaços e comunidades, também em função das especificidades, necessidades e expectativas dos diferentes ecossistemas culturais locais.

A criação de uma rede-plataforma de cidades de cultura, encetada no início deste ano, integrando Faro, Évora (líder), Aveiro e Braga no âmbito ainda da candidatura destas urbes a Capital Europeia da Cultura 2027 (mas que extravasa, e bem, esta iniciativa), é igualmente uma boa notícia para 2024. Este modelo colaborativo inter-regional, devidamente afinado e sedimentado, pode constituir um exemplo virtuoso de inovação cultural, sobretudo a três níveis: alavancando estratégias regionais inéditas ou em curso; conferindo escala nacional a iniciativas e projectos culturais locais consistentes e inovadores, de modo a contribuir, por exemplo, para um incremento da qualificação e da circulação alargada de agentes/estruturas artísticos nas áreas das artes performativas e visuais; e propiciando uma maior capacitação, envolvimento e facilitação dos agentes públicos e independentes nos processos de acesso a fundos nacionais e europeus.

No âmbito dos financiamentos previstos para a área cultural no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e das consequentes obras a realizar em Lisboa nos seus edifícios, estruturas de âmbito nacional como o Teatro Nacional D. Maria II (e outras, que se seguirão) estão a desenvolver um trabalho de itinerância mais estruturada pelo país (projecto Odisseia Nacional), integrando formatos de criação, programação, mediação, pensamento e capacitação culturais. Em 2024 estas dinâmicas mantêm-se e aprofundam-se, sendo que o Teatro Nacional de São Carlos também irá encetar um processo de circulação mais sustentado. Estas aproximações ao território revestem-se de um carácter transformador para todos os intervenientes (os que saem de Lisboa e os que os acolhem), permitindo ter uma percepção mais real e face to face da diversidade de contextos, agentes e narrativas culturais que as várias geografias encerram.

Nesta linha – e revisitando aqui uma entrevista recente de Pedro Penim, director artístico do TNDMII –, não se pode, a priori, tomar estes territórios por conhecidos e adquiridos, o que implica, entre outras coisas, processos de mediação mais exigentes. Por outro lado, o próprio desenho da programação artística destinada a esses territórios não deve cair na tentação de enveredar necessariamente (ou apenas) por registos mais comerciais, “seguros” ou até “infantilizados” – isto por, devido a preconceito ou desconhecimento, se pressupor, a priori, que as cidades fora do eixo Porto-Lisboa serão, de forma geral e linearmente, mais conservadoras e os seus públicos menos “educados”.

Um dos aspectos mais interessantes desta problemática consistirá em observar, não apenas em 2024 como em temporalidades posteriores, como esta desconstrução-reaprendizagem de percepções, derivada de uma imersão regular e sustentada na pluralidade dos territórios, influenciará e até repensará e moldará os próprios processos internos e as estratégias e dinâmicas de criação-programação-mediação destas entidades culturais sediadas nos principais centros urbanos.

5.

A componente da investigação e do conhecimento sobre os territórios e seus ecossistemas culturais constitui uma outra dimensão que importa ressalvar e que em 2024 terá novos e inéditos desenvolvimentos que contribuirão para uma visão mais plural, detalhada e abrangente do país – requisito essencial para que as políticas públicas para a cultura possam ser cada vez mais adequadas, calibradas e eficazes. Nesse sentido, estão em curso diversos radares e mapeamentos culturais e artísticos, via entidades públicas como a Direcção-Geral das Artes ou o Observatório Português das Actividades Culturais, que serão, inclusive, úteis quer para a formação de parcerias e a criação de plataformas e redes regionais e nacionais, quer ainda para outras modalidades de interacção entre o Estado e o terceiro sector, e no seio deste último nas suas componentes profissionalizada e amadora (e potenciais diálogos entre si).

São disso exemplo – para além do exaustivo estudo do OPAC, que prossegue, sobre o Sector Artístico e Cultural em Portugal (de que já resultaram quatro reports, entre outros dados) – três trabalhos estruturais sobre temáticas menos abordadas e que em 2024 trarão informação relevante sobre/para o sector: o Inquérito Nacional às Associações de Cultura, Recreio e Desporto, que consiste num levantamento e caracterização deste ecossistema específico e que resulta de uma parceria entre o já aludido Observatório Português das Actividades Culturais e o Observatório do Associativismo Popular (OBAP); um mapeamento, via DGARTES, do universo nacional de espaços culturais (públicos e independentes) que se dedicam, de modo predominante, ao apoio à criação através de modelos e abordagens diversos de residências artísticas; e um mapeamento exaustivo dos artesãos, espaços e técnicas ligados ao Saber Fazer Tradicional, repositório este que servirá de base a várias tipologias de intervenção e a uma maior valorização da produção artesanal tradicional e dos seus diálogos criativos com a contemporaneidade.

6.

São de destacar cinco temáticas de inegável actualidade. Uma delas prende-se, desde logo, com a influência da inteligência artificial na cultura e economia criativa, problemática ainda pouco debatida em Portugal, não obstante algumas iniciativas pontuais e uma incidência mais aturada por parte do universo do livro e da leitura. Levantando complexas (e controversas) questões ao nível da propriedade intelectual e direitos autorais, diversidade cultural, valor e precificação do trabalho artístico, ética e empregabilidade, esta discussão, no caso da cultura e das artes, pode resumir-se a duas vertentes nucleares: a elaboração de estratégias e projectos culturais, relatórios de actividade e outros documentos correlatos – ou seja, a tecnologia como ferramenta de optimização e aceleração de tarefas e processos de planeamento; e a criação propriamente dita de obras artísticas, em várias áreas, recorrendo a IA. Regulação e educação assumem-se, aqui, como imperativos maiores, sempre recordando a “Lei de Amara”: tende-se a superestimar o impacto de uma tecnologia no curto-prazo e a subestimá-lo no longo-prazo. Urge, em Portugal, debater e aprofundar esta temática no seio do sector cultural e criativo.

O enfoque no tópico da sustentabilidade ambiental nas artes será outra tónica em 2024, tendo em conta a actual conjuntura ecológica, sendo premente investir em várias componentes, desde as suas implicações para as políticas culturais à formação/capacitação, à investigação, informação e recolha de dados, ao acompanhamento e avaliação, ao financiamento, à cooperação internacional e justiça ambiental e à inovação, experimentação e iniciativas-piloto. O relatório do pertinente e rigoroso inquérito lançado pelo Centro de Estudos Disciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra à comunidade artística sobre práticas ecológicas e sustentáveis nas artes performativas em Portugal é, de resto, bem elucidativo a este respeito. Apesar de haver, junto dos agentes culturais, representações diferentes do próprio conceito de sustentabilidade, as artes devem ser mobilizadas para a crise climática, no tocante aos impactos ambientais objectivos do sector e à sua capacidade de repercussão social/simbólica.

A intersecção entre artes e saúde, mormente mental, está num “growind momentum” a nível europeu, e Portugal está a fazer caminho, sendo múltiplos os desafios que este paradigma enfrenta, quer para os agentes e organizações culturais, quer para os potenciais utentes, quer ainda para o sector clínico quando se pensa na implementação e disseminação de modelos como, por exemplo, a prescrição social/cultural, já com reconhecidos benefícios individuais e sistémicos validados internacionalmente. Não obstante os preconceitos, cepticismos e outras resistências que durante muito tempo se foram instalando em torno desta questão, actualmente é amplamente reconhecido o facto de as práticas artísticas constituírem uma pertinente e útil ferramenta – não invasiva e de baixo risco – de complemento ao tratamento médico e, assim, aos contextos e práticas terapêuticos, numa lógica mais centrada no cuidado, na dimensão paliativa e na melhoria do que na cura.

Estando várias iniciativas e projectos multidisciplinares em curso na Área Metropolitana de Lisboa e no Alentejo Central, quer por iniciativa de entidades públicas quer em contextos empresariais e académicos, o ano de 2024 espera-se fértil e plural no surgimento e na consolidação de abordagens e propostas que, disseminadas por estas e outras geografias, aglutinem dinamicamente os campos da criatividade artística e inovação, a saúde mental, o sector social e os direitos humanos. E aqui são muitos os quadrantes a explorar e aprofundar: do enquadramento e respaldo em termos de políticas públicas à efectiva colaboração entre as áreas clínica, social e cultural; dos programas artísticos às fontes de financiamento; das parcerias institucionais e relações informais à capacitação das equipas e ao recurso a boas práticas já testadas e consolidadas; dos mecanismos de acompanhamento e avaliação à protecção de dados pessoais; das políticas de salvaguarda e da dimensão do cuidado com os envolvidos no processo às estratégias de comunicação; da investigação interdisciplinar à promoção e sensibilização públicas para esta visão holística, integrada e colaborativa.

Dois temas que merecem igualmente um destaque neste ano. Por um lado, impõe-se um olhar atento e proactivo, em termos de estratégias e políticas públicas, para o fenómeno da pressão imobiliária no sector cultural, o qual tem conduzido a um preocupante condicionamento da actividade de várias associações culturais e outros agentes sediados na malha urbana das cidades, isto devido ao forçado encerramento de espaços e à mudança de contextos físicos, sociais e simbólicos, ou mesmo à inexistência, a este nível, de soluções alternativas viáveis. Trata-se de estruturas independentes, a maioria com recursos escassos e apoios limitados, que, não obstante, desenvolvem um trabalho continuado, consistente e transformador em termos de aproximação, acesso, mediação e participação culturais junto das comunidades locais, sendo que essas teceduras, espessuras e proximidades são vitais para o pulsar das cidades, para os processos de sociabilização e para uma maior humanização dos contextos urbanos.

Por outro, é essencial aprofundar o debate e reflexão em torno dos modelos de gestão cultural, questionando paradigmas, pressupostos e práticas de gestão. Por exemplo, a recente nomeação de Indhu Rubasingham como directora artística do National Theatre, em Londres, veio novamente reacender a discussão sobre a questão da direcção artística dos teatros. São crescentes as vozes que consideram que este cargo é uma espécie ameaçada, em vias de extinção, devido aos perigos da monopolização do poder num único responsável e à ideia de que é preciso partilhá-lo de forma mais inclusiva. Advogam que já não se afigura uma solução dinâmica nem sustentável, sendo preferíveis estruturas criativas flexíveis e dotadas de experiências e influências diversas, que garantam maior pluralidade e democraticidade nas decisões. Outros sublinham o facto de haver uma falha sectorial no desenvolvimento de lideranças artísticas etnicamente diversas nos teatros. Outros ainda preconizam a existência, devido ao volume crescente de trabalho, de uma gestão partilhada entre um director artístico e um director executivo, para que aquele se possa concentrar mais na componente criativa.

O facto de o director artístico ser ou não um artista (e de este dominar igualmente, ou não, as vertentes financeira e administrativa), ou até de ter (ou não) de criar espectáculos, são igualmente tópicos recorrentes. Por outro lado, duplas ou trios de directores artísticos, que asseguram a programação de diferentes disciplinas em função da sua especialização, surgem como outras possibilidades (veja-se o exemplo bicéfalo do Teatro Municipal do Porto). Outros consideram ainda que a existência de um único director artístico não tem de ser encarada como um modelo pouco recomendável, visto que este assegura uma visão clara e uma identidade para os equipamentos e que existem diferentes modos de garantir a responsabilização e a transparência numa organização juntando-os num único indivíduo ou cargo, isto desde que a arte permaneça como a dimensão proeminente. Em suma: estamos perante propostas que devem ser ampla e frontalmente debatidas, pois estamos num tempo de oportunidades para oferecer novas respostas a inquietações antigas.

7.

Por fim: em 2024 celebram-se os 50 anos do 25 de Abril. O grande desafio, para a cultura e as artes, continua a ser o incremento do acesso e participação das pessoas, de um modo generalizado e diversificado, nas iniciativas, dinâmicas e projectos programados. Para isso, é preciso legitimidade governativa, legislação laboral adequada, um quadro estabilizado de apoios financeiros, estratégias e políticas públicas que respondam à singularidade e diversidade dos territórios, real concretização das medidas decretadas, empoderamento do terceiro sector e, acima de tudo, uma ética do cuidado, sem a qual não pode existir uma efectiva democracia. John Dewey, filósofo e pedagogo, relembra, na sua seminal obra Problems of Men (1946), que a liberdade não é apenas a liberdade de acção que tanto nos agrada, mas, acima de tudo, a “liberdade da inteligência que é necessária para dirigir e para garantir a liberdade de acção”. E “só há liberdade a sério quando [e enquanto] houver” também cultura e artes.

*Texto escrito ao abrigo da antigo Acordo Ortográfico.

Sobre Paulo Pires

Paulo Pires é gestor cultural e programador. Tem um percurso profissional de mais de 20 anos nas áreas da cultura, artes, criatividade e mediação.
Foi assessor cultural da Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, adjunto da ex-Ministra da Cultura, assessor do Director-Geral das Artes, director de Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, director artístico do Convento São Francisco, programador no Município de Loulé e coordenador da programação cultural no Município de Silves, entre outras funções. 
Actualmente, é chefe de Divisão de Investigação e Dinamização Cultural na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I.P..
Autor da obra Escrytos – crónicas e ensaios sobre cultura contemporânea (2017), editada por João Paulo Cotrim - estando no prelo um segundo volume para este ano -, assina inúmeras palestras, moderações, cursos e artigos de opinião sobre estas temáticas.
Escreve regularmente no Ípsilon/Público, Gerador, O Novo, Observador e Blitz/Expresso.

Texto de Paulo Pires

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