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Tricotar janelas, segundo Sérgio Godinho

Neste ensaio, Paulo Pires fala-nos sobre a singularidade e impacto duradouro da obra de Sérgio Godinho, destacando a capacidade do músico em tecer uma narrativa lírica que transcende as fronteiras temporais e explora a complexidade da existência humana através de uma abordagem poética e crítica.

Texto de Redação

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Aprendemos com a sua música que a felicidade maior, a que nos ateia um brilhozinho nos olhos, não se explica, implica. Uma empatia que advém daquela aparente antinomia que tem o condão de simultaneamente aclarar sem desnudar tudo: “hoje soube-me a pouco”, “hoje soube-me a tanto”.

Há detalhes que não sabem morrer. Teimam em habitar-nos os dias e acompanham fielmente a passagem das horas, resistindo à efemeridade do tempo e vestindo a nossa história de espanto e beleza. E não será isso o que mais importa? E vem-me à memória não uma frase batida, mas um silêncio singular, como se, muitas vezes, a música nunca revelasse o seu último segredo. Refiro-me a uma singela pausa de dois segundos no tema “A noite passada”, interpretado ao vivo apenas a voz e guitarra por Sérgio Godinho, mais concretamente após o trecho cantado “cheguei-me a ti, disse baixinho ‘olá’...” (aos 02:49), isto na versão integrada no icónico disco Noites passadas (1995), trabalho que resulta de gravações ao vivo no Teatro São Luiz e no Coliseu de Lisboa nos dois anos anteriores. A pulsação e densidade emocionais desse entre palavras nunca mais me abandonariam e penso nesse interstício comunicante como aquele espaço vazio, discretamente sublime, para onde o olhar se dirige de imediato, entre as magníficas árvores (Rilke), cuja reverberação poética continua a ecoar dentro de nós.

Desconheço – um dia a sul, há vários anos, perguntei a Sérgio e confesso que não me recordo da resposta (e, porventura, ainda bem) – se essa nuance interpretativa terá sido planeada ou fruto daquela espontaneidade, liberdade, imediatismo e vibração irrepetíveis que derivam da comunhão e diálogo ao vivo com o público, in praesentia, que ele tanto aprecia. Não me interessa desvendar o mistério (até porque “há segredos sagrados / pelo sim, pelo não”, lembram-se?) nem isso seria o mais importante. O que fica é uma espécie de epifania, é o efeito que planta em nós, e essa coisa é que é linda, como diria o seu amigo e cúmplice musical José Mário Branco. Não se trata de uma mera ausência de som, mas de um significante silêncio dramático que nos revela, pela sua profundamente simples carga expressiva, o quanto a arte pode ser também sinónimo de suspensão, expectativa, surpresa e reencontro. E com este singelo pormenor, mais uma vez, Sérgio Godinho soube tocar, como poucos, as cordas do nosso lado esquerdo, aquelas que fazem parar o tempo por breves instantes para logo a seguir nos abraçar (fazendo-nos, metaforicamente, regressar a casa) com uma poeticidade, plena de visualismo, que deixa o lastro maior: “... toquei-te no ombro e a marca ficou lá”.

A obra do compositor nascido no Porto em 1945 tem esse indesmentível élan que deixa a sua impressão digital em nós, pois as suas histórias, frescos, retratos e outras digressões contam também as nossas próprias vidas, como se estivéssemos a rever um filme muito “antigo” e familiar que nunca nos cansa e no qual encontramos sempre renovados motivos de descoberta e deleite. Mas em Godinho não se trata de uma banda sonora estática a rodar confortável e passivamente em loop como grande caixa de ressonância do mundo. Um dos traços que mais individualiza o seu percurso é precisamente essa activação irrequieta e constante de novos sentidos e leituras para uma plêiade de canções rente à vida e ao real, numa elasticidade continuamente estimulada e revigorada feita de múltiplos movimentos e variações. Para o músico que, em 2021, celebrou 50 anos de carreira, fazer essa revisão crítica da matéria dada é energia motriz, casa de partida e estação de chegada, causa e consequência, necessidade vital e prazer estético.

O desafio, o risco, o questionamento e a superação estão inscritos há muito no vocabulário de Sérgio Godinho e não se resumem à dimensão musical nem, bem assim, à aglutinação de inúmeras colaborações de diferentes gerações de criadores e intérpretes em processos partilhados de inventividade. As suas diversas – por vezes menos conhecidas – incursões no cinema, no teatro, na televisão ou na literatura (obras para os mais novos, crónicas, poesia, escrita romancística) são um reflexo dessa matricial sede de ter mundo, de uma fremente atitude interrogativa perante a vida e suas dimensões ora mais simples ora mais veladas e insondáveis.

No plano musical, a ebulição criativa de Godinho não é dissociável da espacialidade do palco. É nesse contexto privilegiado, no calor do momento, que acontece o ritual-mor, a iniciação à viagem colectiva do corpo e do espírito, a partilha instantânea (e não diferida como nos álbuns de estúdio) e “sem rede”, a escuta da respiração e da vibração do outro, o “mútuo consentimento”. Onde o músico pode desvelar as diversas cores da sua ampla paleta, (re)criando outras camadas para o sentir e o expressar, sem acessos bloqueados. O brilho, a emoção e a energia dessa fusão feita de dar e receber, de entrega e reciprocidade, são a fonte primordial onde a sua verve musical vai beber novas e renovadas vidas. Não fosse, aliás, na comunicação com o público que a canção cumpre a sua função máxima.

Falar do repertório do “homem dos sete instrumentos” não é, porém, sinónimo de limitá-lo à galeria canónica dos valorosos nomes nacionais cultores da canção social e politicamente engagé. A sua transversalidade literária estende-se, desde sempre, às temáticas do foro filosófico ou existencial, às canções de percurso (com suas lições, rupturas e permanências), às “cartas” amorosas, mas também ao desamor, aos quadros/paisagens do quotidiano comum, aos retratos de personagens intemporais, às pequenas (in)significâncias. Sérgio Godinho nunca quis que a sua música se deixasse aprisionar pelas tentadoras amarras dos “presentes” em que teceu essas obras (poucas vezes fez canções sobre o momento) ou se esgotasse em circunstâncias específicas captadas em modo de reportagem, ou revelasse uma postura evangelizadora. 

E aí está uma das marcas mais incisivas da sua mundividência: uma deambulação criativa incessante, plena de curiosidade, lucidez e abertura de horizontes, sem dogmas ou fórmulas preestabelecidas (muitas das suas canções não contam uma história e, acima de tudo, não têm um enredo com princípio, meio e fim). Falo de uma postura que não se fossilizou ideologicamente, não se fechou em si mesma, não perdeu a capacidade de não se levar demasiado a sério, não se divorciou (dos defeitos) da vida real, não se cristalizou num desencanto e pessimismo crónicos perante o mundo (mesmo podendo ter razões para tal) nem numa atmosfera sonora/musical de cariz passadista ou monolítica. É esse o “elixir da [sua] eterna juventude”.

Ao mesmo tempo, não obstante essa admirável porosidade feita de múltiplas janelas, passaportes e “irmãos do meio”, observamos na sua obra uma unidade e coerência globais que dispensam rótulos (que só pecariam por redutores e superficiais). A argamassa godinhiana vive muito desse cruzamento entre uma marcada individualidade, discreta mas assertiva no seu modo crítico e independente de estar e pensar o mundo, e, do outro lado, uma fértil e produtiva pluralidade de vozes que enformam uma cartografia repleta de estações e apeadeiros. Se as canções em Sérgio Godinho são visivelmente permeáveis à reinvenção, a sua filtragem do real nunca descura três traços fundamentais que lhe estão colados à pele e que perpassam toda a sua produção ao longo dos anos como fio de Ariadne: argúcia (analítica), distanciamento (crítico) e subtileza (criativa).

No seu itinerário a criação musical (momento que não deixa de ser sempre de solidão) e a performance em palco (a casa colectiva) são como que duas faces da mesma moeda, sem as quais Sérgio não se completa e cumpre, e às quais se juntaria, mais tarde, a escrita de maior fôlego com a dimensão romancística, a qual lhe permite uma útil e estimulante continuidade de trabalho (o laborar diário por contraponto ao ofício mais fraccionado e intermitente da escrita de canções) e a preservação de uma rotina criativa como “salvação” dos dias.

A frescura da sua música no plano sobretudo dos arranjos e andamentos, o ludismo dos jogos de palavras (“fizemos o quatro e pintámos o sete”, com aquele brilhozinho nos olhos) ou a apropriação de expressões do dia-a-dia (“cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas”, entre muitas outras que nos inscreveu criativamente na memória) são alguns dos ingredientes que se tornaram familiares para nós quando ouvimos o seu nome. Porque há algo de universalista, que transcende a esfera pessoal, nas suas canções, mas também porque estas interpelam cada indivíduo como se fosse um diálogo íntimo a dois. O mistério é-nos revelado em voz alta, mas é como se mantivéssemos aquela ilusão cativante de que, subtilmente, a mensagem se dirige, baixinho, em segredo, a cada um de nós em particular.

A insatisfação, curiosidade e ímpeto inventivo acompanham Sérgio desde tenra idade como ele próprio confessa, não fosse de pequenino que se começa a torcer o destino e não tivesse ele próprio um forte instinto de sobrevivência plasmado em mais de meio século de percurso artístico. Daí também o seu profundo e declarado horror à etiqueta ou à fixação obsessiva num dado registo. E aqui o músico portuense, ao invés de permanecer numa zona de conforto em que já é reconhecido – que, de resto, seria legítimo –, tem feito da versatilidade o “primeiro gomo da tangerina”, num claro elogio à necessidade vital de risco (“era esse risco que nos estava a fazer falta”, dizia numa entrevista recente a propósito dos desafios que a pandemia também veio colocar como reverso positivo) e de exploração de outros territórios e linguagens. Pois na sua obra as fronteiras estão abertas e as ideias libertas – atitude, aliás, que ele preconiza, em jeito de apelo colectivo, para o próprio país no refrão da canção “Nação valente”, do último disco de estúdio, editado em 2018.

A história de Sérgio Godinho é, no fundo, a de uma maturidade congénita (bastaria recordar, desde logo, o teor e alcance das letras do seu primeiro disco, em 1971) que nunca deixou, contudo, de ir tecendo essa aprendizagem maior só ao alcance daqueles espíritos que teimam em não ficar demasiado quietinhos, sossegadinhos e caladinhos, dos que perseguem aquela insubstituível “liberdade de mudar e decidir”: tactear o escuro, ousar o desconhecido, incorporar o novo. Sempre com o intuito interrogativo de não captar a realidade de uma mesma e imutável perspectiva, divorciando-se de uma visão redutora, óbvia, monocromática ou simplesmente a preto e branco.

Ancorando o seu imaginário nas danças e contradanças do quotidiano, nas suas epifanias e pequenos mistérios, nas coisas mais “banais”, em mares de dúvidas e certezas, há sempre, depois, em Sérgio um twist poético que lhe confere aquela densidade superlativa que nos seduz e convida a entrar. A visão realista não fica pela superfície dos temas, mesmo quando as letras são mais directamente inspiradas no linguajar popular, pois, acima de tudo, é preciso torcer o visível e subvertê-lo, desconstruindo evidências e aparências. Daí que o resto da sua (e da nossa) vida seja amiúde povoado de novos “primeiros dias”, pois a imersão na dimensão secreta e íntima das coisas é um jogo sempre em aberto para Sérgio Godinho. É desse modo que o reconhecido compositor continua a deixar-nos o print da sua passagem, inclusive para ele próprio.

Imagino facilmente Sérgio sentado numa esplanada de café – lugar que é esponja da história dos outros e também contribuinte para narrativas alheias –, ao fim da tarde, a dar à manivela da imaginação, deambulando o seu olhar pelos frequentadores do espaço e pelos transeuntes, perscrutando em zoom pequenos gestos, rituais quotidianos e outros rastos, em rios que vão correndo nos intervalos de um simples gole, cigarro, palavra, silêncio, olhar. Nesse autêntico laboratório sociológico, o letrista dá asas à sua natural propensão observadora, osmótica e a um radar intuitivo que lê o colectivo pela construção dos puzzles das experiências solitárias, como as daqueles que “apenas” almejam “um espaço menos ferido para pousar as feridas à procura de si próprio[s]” (como reza certo poema de João Luís Barreto Guimarães).

E quando questionamos até que ponto um músico ainda nos pode surpreender ao 18.º álbum de originais, Sérgio traz-nos um disco valente cuja faixa inaugural, “Grão da mesma mó”, é, porventura, uma das canções mais icónicas, pela complexidade e beleza, da sua lavra nos últimos anos. Não se trata meramente – como, de resto, nunca o é na sua discografia – de um tema que nos soa bem e entra facilmente no ouvido nem apenas de uma incursão filosófica pelo tema da passagem do tempo. Mais uma vez, e porque é preciso espalhar a notícia, Godinho vem solavancar-nos o espírito com um repositório actualíssimo de avisos e interrogações, exercitando a sua mestria antiga na urdidura de canções. O tema inicial de Nação Valente é um claro manifesto poético em defesa (da urgência) de uma identidade e proactividade individuais não dissociáveis de princípios e valores solidários e empáticos.

É tempo de escrever o espaço em branco e abrir asa, o que equivale, nesta incisiva e singular letra-mote de Sérgio Godinho, a dizer duas coisas: não deixarmos que alguém habite e desenhe o tempo por nós ou que nos rasurem da equação dos dias, afirmando a nossa individualidade aqui e agora; e, na porção da nossa vida, não hipotecar o futuro por causa de erros, vícios e maus exemplos do presente, mas incorporando criticamente as lições positivas e menos luminosas do momento actual na construção desse amanhã. Pois “melhor é transfigurar o amanhã com todo o hoje”. Só através desse movimento de implicação do indivíduo com “o calor da vida vivida”, bem como da reciclagem dos excessos, ausências e desvios (do muito frio e do muito quente), poderemos aspirar, individual e colectivamente, a não ser mais do mesmo – a não ser grão da mesma mó –, a ser aquela “luz que se acende do nada”, como diz a certeira e inspiradora canção.

Uma preocupação ética não apenas retórica e efectivamente comprometida com a vida quotidiana, como essencialidade maior a agregar (pois estamos sempre em perda), é o leitmotiv desta enorme canção-gatilho que vagueia entre a dimensão cantada e o ambiente da spoken word, pois continua a ser pertinente pensar o mundo, fazer pela própria vida, ter brio próprio, não facilitar, enfrentar esse fio invisível chamado “medo”. E estabelecer linhas de água nas nossas convicções. Para não cair naquele automatismo acrítico e inconsequente que nos imobiliza: “Fazes que fazes ou pões sementes a crescer?”

Godinho sabe bem que a sociedade nunca foi nem será perfeita. Mas, esperançosamente, persiste em dançar no (teatro do) mundo, retornando simbolicamente ao fundamento, à raiz, pois é preciso fertilizar, semear e regar para depois colher possibilidades de futuro e para moer outras utopias. A metáfora campestre (grão, mó, semente) ilustra exemplarmente essa perseverança, empenhamento e positividade na reconstrução do mundo que falam mais alto na pena do letrista. Mas para que o resiliente “moinho” da vida continue a laborar em modo não puramente mecânico ou padronizado, Sérgio nunca deixa à porta a lucidez, o equilíbrio, o aguçado espírito crítico, a independência de pensamento, convocando-os para os trabalhos dos dias. E é nesse movimento bem temperado, tricotando janelas (imagem singular de uma canção intemporal sua) em busca de dias úteis e de dias raros, que a sua estrada se cumpre e vitaliza.

Aprendemos com a sua música que a felicidade maior, a que nos ateia um brilhozinho nos olhos, não se explica, implica. Uma empatia que advém daquela aparente antinomia que tem o condão de simultaneamente aclarar sem desnudar tudo: “hoje soube-me a pouco”, “hoje soube-me a tanto”. Gosto de pensar que não haveria versos mais exactos para descrever o efeito dessa intimidade prazerosa com a obra godinhiana, pois há palavras que parecem acertar com o centro das coisas. E aqui acredito, com o poeta Nuno Júdice, que quando encontramos os nomes das coisas é como se estas saíssem de dentro deles e as pudéssemos ver nos seus lugares.

Regresso ao incipit e ao detalhe inicial deste texto, e invoco uma inspiradora ideia de Eduardo Lourenço: a grandiosidade de uma obra mede-se pela densidade de silêncio que nos impõe. E, mesmo que rendidos àquela mudez inexplicável que nos conecta à arte maior e cativos, por vontade, desse encantamento (“está-se bem no silêncio”), ainda assim apetece perguntar a Sérgio Godinho: Que força é essa, amigo?

*Texto escrito ao abrigo da antigo Acordo Ortográfico.

Sobre Paulo Pires

Paulo Pires é gestor cultural e programador. Tem um percurso profissional de mais de 20 anos nas áreas da cultura, artes, criatividade e mediação.
Foi adjunto da ex-Ministra da Cultura, assessor do Director-Geral das Artes, director do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, director artístico do Convento São Francisco, programador no Município de Loulé e coordenador da programação cultural no Município de Silves, entre outras funções. 
Actualmente, é assessor (para a cultura, artes e património) da Presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I. P.. 
Autor da obra Escrytos – crónicas e ensaios sobre cultura contemporânea (2017), editada por João Paulo Cotrim - estando no prelo um segundo volume para o início de 2024 -, assina inúmeras palestras, moderações, cursos e artigos de opinião sobre estas temáticas.
Escreve regularmente no Ípsilon/Público, Observador e Blitz/Expresso.

Texto de Paulo Pires

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