O animal “peru” era uma ave de carne escura e delicadíssima quando selvagem nas suas origens Ameríndias, ou mesmo quando, já domesticada e aqui em Portugal, viajava em bandos e comia da terra o que lá havia, no Alentejo e no Ribatejo.
Ave de tenra carne, sobretudo as peruas novinhas, que viviam em tratamento ambulatório nas planícies e que comiam frutos, couves, milho, etc...
A não ser que alguém possua hoje os meios para criar perus livremente no campo, alimentados a milho, alfaces e couves, vadiando alegremente pelos prados, esse tipo de animal de qualidade já só se consegue encontrar nos domínios da chamada agricultura biológica.
Há criação de perus ditos “biológicos” em Portugal e igualmente em Espanha, basta navegar um pouco pela Internet ou então fazer a encomenda numa mercearia de qualidade. São normalmente certificados e o preço de quilo será quatro a cinco vezes superior ao preço do peru de aviário. São também mais pequenos – cerca de seis a sete quilos no máximo – do que os de aviário, mas mesmo assim, e fazendo as contas, rendem mais na mesa do que os cabritos ou borregos que são a sua concorrência nestes dias de festa.
Todavia, o verdadeiro “Peru de Natal” para mim sempre foi o que se criava na quinta, com todo o folclore que estava associado à engorda com produtos da horta e ao respetivo abate e confeção.
Era um peru criado em liberdade, em casa, a comer couves e alfaces tenrinhas e muito milho dado à mão, sempre a andar pelo chão e a picar o que lá encontrava…
Normalmente este peru da quinta, era assado no forno, com esparregado de nabiças grosso (as “ervas” da Beira Alta), arroz dos seus miúdos e batatas fritas, que o forno já não tinha mais espaço depois de lá ter entrado o animal.
O trabalho – não se iludam porque era mesmo trabalho - começava dois dias antes da refeição, com o embebedar da alimária com bagaço, seguido da matança propriamente dita, o depenanço , o limpar da carcaça retirando o pescoço, fígado e coração para o arroz, e o mergulho em largo alguidar de barro (o mesmo da matança do porco, onde se adubavam os paios do lombo) com água, uma garrafa de vinho branco, duas mãos de sal grosso e rodelas de muitas laranjas.
Passado um dia, o peru era tirado do “banho” e barrado com uma pasta feita de alho esmagado, massa de pimentão, uma mão cheia de sal, grãos de pimenta preta, um copo alto de vinho do Porto e duas colheres de sopa de azeite.
Pelo bucho enfiava-se um limão cortado ao meio. E ficava assim mais um dia no tempero.
Um peru criado em liberdade tem a carne bem mais firme e de tom mais escuro, mesmo a do peito, e abundam as bolhinhas de gordura à flor da pele. Mas as pernas são mais rijas e possuem tendões que mais parecem esticadores de aço…haja dentes…
Logo de manhã, no dia de Natal, acendia-se o forno nos 200º e depois de estar quente – pelas 8.45h – metíamos o tabuleiro do peru, tendo o cuidado de regar com mais um fio de azeite .
Passada uma hora virava-se, e depois de outra hora tornava-se a virar. Só nessa altura reduzíamos a temperatura para os 170º, ficando assim mais uma hora e meia, até retirar para constipar a pele no alpendre e vir para a mesa.
Entretanto, fazíamos a puxadinha para o arroz dos miúdos, e íamos descascando as batatas para fritar. O esparregado grosso das nabiças da horta fazia-se também em meia hora.
Às 12.45h, mais coisa, menos coisa, estávamos à mesa.
Gostaria de recomendar vinho para este Natal, com ou sem peru, e que nos ajude a passar esta época malvada. Dentro de preços contidos e uma qualidade muito boa recomendo os tintos da Casa da Carvalha. Difícil de encontrar nas garrafeiras, mas vão ao site e encomendem a partir daí.
Com uma boa adstringência para cortar nalguma gordura dos pratos de Natal temos um Bairrada de baga e touriga do Sr. Luis Pato. É de 2017 e custará cerca de 10 euros.
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.