Sempre me disseram para escolher uma profissão que não na área artística. Algo que me garantisse, e depois logo se via que espaço podia ter para outros “hobbies”. “Toda a gente sabe que a vida de artista é instável”. “Toda a gente sabe que, tirando um ou outro, todos os artistas morrem pobres”. Quantas vezes já não nos cruzamos com este discurso? Não recrimino quem o profere. É provável que eu própria o tenha feito alguma vez.
É factual que a profissão de artista, independentemente da área, se caracteriza por uma intermitência constante que se concretiza numa luta diária pela sobrevivência. Calhou-me nascer em Portugal. Um país em que me inscrevo, em que gosto de encontrar casa e que constitui a minha herança. Mas é também um país a que carece um Estatuto Profissional do Artista, que garanta condições para a execução do trabalho artístico, assim como a proteção social dos seus protagonistas.
Em 1980, a UNESCO emitiu as recomendações concernentes ao Estatuto do Artista. Neste documento, define-se artista como “qualquer pessoa que cria ou dá expressão criativa, ou recria obras de arte”, não excluindo desta condição quem não se encontre “vinculado a qualquer relação de emprego ou de associação.” Ao percorrer a enumeração dos seus princípios, lemos que se reconhece o enriquecimento da cultura identitária e espiritual, que é uma herança de variadas sociedades, através das artes. Acrescenta-se, ainda, ser um domínio que permite desenvolver um sentido de pertença a uma comunidade, e que, por isso, a arte deve, desde logo, ser acessível a qualquer pessoa.
Porém, importa também atentar no/a artista e na manutenção de condições que fomentem a sua criatividade e liberdade. Para isso, é necessário criar políticas que garantam assistência instrumental e moral ao trabalho artístico, uma missão que passa pelo âmbito educativo ao desenvolver a capacidade de consciencialização artística, assim como dotar a sociedade de mecanismos que lhe permita fruir dos objetos artísticos.
Um primeiro passo a dar, a meu ver, é o da valorização da arte e de quem a concretiza, não a tomando como dispensável ou secundária. Este reconhecimento deve advir dos consumidores, mas em primeira instância do Governo. Com o anúncio de uma medida como a dinamização de um festival de música, o TV Fest, por parte do Ministério da Cultura, penso que esse trabalho de valorização afirmou estar ainda muito aquém, não só por apenas contemplar uma área artística – a música – para financiamento, como pelo modelo de seleção de artistas escolhido, em que cada artista selecionaria outro para um próximo concerto, caindo num sistema assente no compadrio, ao invés de promover uma mais consciente distribuição do financiamento. Não nos esqueçamos ainda de que não caberá nunca ao Ministério da Cultura o papel de programador ou curador, que desde já contemplam duas profissões existentes no setor cultural que foram esquecidas neste processo.
Nas várias entrevistas que tenho feito nos últimos anos a artistas portugueses, é frequente a partilha de uma reflexão que se resume na inexistência de uma política cultural em Portugal.
Como resposta à pandemia da doença covid-19 foi emitido o decreto-lei 10-I/2020, que se aplica a “todos os espetáculos que não podem ser realizados no lugar, dia e hora agendados, entre os dias 29 de fevereiro de 2020 e até ao 90º dia útil seguinte ao fim do estado de emergência”, procurando conferir “uma proteção especial aos agentes culturais envolvidos na realização dos espetáculos não realizados em virtude da pandemia”. O Ministério da Cultura anunciou ainda um fundo de um milhão de euros para apoiar o setor cultural, que muitos têm argumentado ser um valor irrisório e uma fórmula que apenas recria mais um sistema de concurso. A DGArtes anunciou que irá manter os pagamentos a entidades beneficiárias de apoio. Seguiu-se, no início de abril, a ideia de avançar com o TV Fest, que foi cancelado ainda antes da sua concretização.
Se há coisa que me parece que este isolamento social está a tornar claro para um maior número de pessoas é que a arte não é algo supérfluo, mas sim necessário para alimentar a nossa alma e para a manutenção da nossa sanidade mental. Ademais, todas as fragilidades nas propostas políticas que envolvem o setor cultural vão ficando, cada vez mais, a descoberto, a começar pelo seu histórico subfinanciamento personificado na luta pelo 1% para a Cultura no Orçamento de Estado. Talvez tenha finalmente chegado a altura de se olhar seriamente, e com sentido crítico aguçado, não só para os artistas (e atente-se ainda nas equipas técnicas que os acompanham!) que viram cancelados os seus espetáculos, mas também para o desenvolvimento de apoios posteriores a esta crise, passando, inclusive, pela aposta no desenvolvimento de novos conceitos digitais no âmbito das artes, mas acima de tudo que se atente na dignidade daqueles que têm sido apelidados como os primeiros a serem obrigados a parar o seu trabalho e a chegarem-se à frente com a disponibilização de conteúdos online, neste contexto ímpar de pandemia.
Para edificar um futuro mais consciente e valorativo do panorama cultural em Portugal, comecemos por nos olhar ao espelho e no retrato refletido identificar a nossa responsabilidade enquanto consumidores de cultura, que passa pelo reconhecimento da sua importância, mas também por uma valorização financeira. Avançando para a nossa representação enquanto todo, não precisamos de um Ministério que vista a pele de um programador e aposte em medidas como a criação de um festival. Na edificação de uma política cultural é imperativo parar para questionar as várias camadas implicadas em tal avanço. Parece-me que, da parte do Governo, não precisamos de festivais. Precisamos de um Estatuto Profissional do Artista, uma medida que podia ser mais que um sonho. E como diria Pessoa, “É a Hora!”*
*Verso com que termina “Nevoeiro”, em A Mensagem de Fernando Pessoa
-Sobre Andreia Monteiro-
Cresceu na terra que um dia alguém caracterizou como o “sítio onde são feitos os sonhos” e lá permanece, quer em residência, quer na constante busca por essa utopia. É licenciada em Comunicação Social e Cultural, na vertente de Jornalismo, pela Universidade Católica Portuguesa, onde se encontra a concluir o mestrado em Ciências da Comunicação. É, desde maio de 2019, a diretora editorial do Gerador, Associação Cultural a que se juntou no final da sua licenciatura. Apaixonada pelo mundo artístico, é uma leitora insaciável, a companheira constante de um lápis e papel, uma curiosa de pincel na mão, uma amante de teatro e cinema e está completamente comprometida com a beleza da música que tem vindo a descobrir. É, desde 2019, aluna na escola de Jazz do Hot Clube de Portugal. Acima de tudo, é uma criatura com pouco mais de metro e meio cujo desassossego não deixa muito espaço para tempos mortos.