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Rui Horta (coreógrafo e bailarino): “A dança é puro futuro”

“Falar com o corpo numa sociedade em que ele está a desaparecer é, por si só, completamente revolucionário”, diz-nos o coreógrafo Rui Horta, neste Dia Mundial da Dança.

Texto de Flavia Brito

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Para Rui Horta, a dança é uma forma de nos reconectarmos com o nosso próprio corpo, de o normalizarmos, e de olharmos, através dele, para um mundo "no limite de um certo pós-humanismo”.

Vivemos "num tempo em que há cada vez menos corpo”, afirma o criador. E também por isso considera que a arte ao vivo é hoje “o mais importante ritual das sociedades modernas e pós-modernas”, em “contracorrente” face à digitalização, atomização e fragmentação do mundo.

Em entrevista ao Gerador, o coreógrafo fala-nos da dança contemporânea como um "território de partilha e de cruzamento", na vanguarda das artes performativas. Reflete sobre o estado da arte em Portugal e sobre como a criação artística se tem relacionado com as crises e tensões sociais e globais da atualidade.

Rui Horta sublinha ainda o "território seguro" que as artes representam para as várias expressões não-normativas da sociedade. Mas também chama a atenção para uma classe que tem estado “adormecida” e ausente de movimentos que o criador considera de primeira ordem, como o pacifista ou contra as alterações climáticas. “Temos de ser capazes de ter posições societais mais poderosas nas artes”, refere.

Aos 66 anos, Rui Horta é um dos coreógrafos mais influentes da sua geração. Apresentou nos mais importantes teatros e festivais do mundo, como o Theatre de la Ville, em Paris, o Joyce Theatre, em Nova Iorque, ou o Spyral Hall, em Tóquio. Criou para prestigiadas companhias de dança, tais como o Netherlands Dance Theatre, o Cullberg Ballet, ou o Grand Ballet da Ópera de Genebra.

Falámos com ele, depois de, no início deste ano, ter deixado a direção artística d’O Espaço do Tempo, um centro multidisciplinar de residências artísticas, que fundou no ano 2000, em Montemor-o-Novo, onde ainda vive – e é por aí que começamos.

O Espaço do Tempo é um espaço cultural e artístico de referência não só em Portugal, mas também na Europa. Para si, quais foram as chaves de sucesso deste projeto?

Diria que o êxito que O Espaço do Tempo teve ao longo de 22 anos, tem que ver com o ser capaz de se inserir no espírito do seu tempo e, nomeadamente, numa cena independente que estava a desenvolver-se com muita exuberância, mas que não tinha estruturas de retaguarda para criação. Até havia diversos teatros que estavam a ser renovados como estrutura de apresentação – estruturas municipais ou nacionais –, mas, na verdade, aquilo que podemos chamar o movimento independente, a cena independente das artes performativas, estava em ebulição e não tinha estruturas de retaguarda. 

O Espaço do Tempo, ao tornar-se um centro de residências artísticas que sempre funcionou à escala de um para um – ou seja, que tentava replicar, desde o primeiro dia de ensaios, a escala final de apresentação – , inscreveu-se também naquilo que eram e que têm sido, ao longo destas últimas décadas, as novas formas de produção artística, em que é necessário ter uma série de elementos de composição, como sonoros, vídeo, em termos de instalação, de espaço. No fundo, uma espécie de conforto criativo. 

E depois, o facto de O Espaço do Tempo ser também um local de residência – o que também se inscreve no seu tempo, no sentido em que as nossas sociedades são apressadas. Comprimiu-se o tempo. E, na verdade, há sempre um elemento de stress, que nem sempre é stress positivo – um certo elemento de stress positivo é indispensável e necessário à criação, porque há sempre um deadline, e isso acaba por espoletar uma série de mecanismos criativos insondáveis. Mas o facto de não haver realmente algum conforto positivo, isso era difícil.

A questão da residência tornou-se muito importante numa sociedade em que havia pouco tempo, em que somos justamente apressados, porque durante duas, três, quatro semanas, estás num local em que estás com as tuas necessidades do dia a dia cobertas – o sítio onde vai dormir, as refeições – e, portanto, podes dedicar-te com as tuas equipas [à criação]. Durante um período limitado de tempo, as atenções e, sobretudo a criatividade convergem para a criação. Isso deu muito resultado. Funciona muito bem para as pessoas, para o estilo de vida que têm. 

O Espaço do Tempo inscreveu-se justamente nessas mudanças também societais que existiam e acompanhou este processo. E depois foi acompanhando a digitalização. Lembro-me no início, quando as pessoas chegavam ao estúdio e tinham sempre um hotspot. Fomos talvez dos primeiros sítios onde chegavas ao estúdio e tinhas sempre Internet wireless. Essas pequenas coisas tornam-se grandes coisas.

Fotografia de cortesia

E o envolvimento da comunidade de Montemor-o-Novo... Quando arrancou este projeto, e olhando para o envolvimento que hoje existe, estava à espera de o conseguir desta forma?

Não estava à espera. Inseri-me na minha comunidade de uma forma quase absurda. Foi quase umbilical. Foi muito fácil. E uma das razões é tão simples como ter três filhos que foram à escola em Montemor. Em Montemor não era só o Rui Horta, era o pai dos meus filhos. Portanto, também tive esse elemento de ligação à comunidade. 

Mas é muito importante ficar aqui claro que uma coisa é arte e experimentação artística, e aí fomos completamente radicais na nossa aproximação desde o primeiro momento – e por isso é que artistas muito importantes da sua geração estiveram muito próximos sempre d’O Espaço Tempo. Mas a cultura é uma coisa diferente. A cultura cruza, obviamente, a arte, mas é muito diferente, no sentido que a arte é extremamente idiossincrática e virada para universos às vezes muito insondáveis, e muito individuais. A cultura é completamente democrática, é para todos. Então tivemos sempre esta relação bem presente. 

Quando chegámos, não havia – e continua a não haver – a possibilidade de teres um projeto de experimentação, numa pequena cidade de província, se não tivesses um projeto idêntico do mesmo nível de inserção sociocultural, e aquilo a que chamamos um outreach na comunidade [uma atividade de prestação de serviços para qualquer população que não possa ter acesso a esses serviços]. É muito importante que a comunidade se faça a ti. A comunidade que te acolhe e te dá aquelas possibilidades tem de sentir que é parte do projeto. 

Isso, para nós, foi muito importante, mas não é algo de politicamente correto. É também importante dizer que os artistas que passaram por Montemor – eu sou só um mais – gostam da comunidade. Muitos criaram com a comunidade também. A comunidade é algo, para nós, muito importante nas negociações da arte com o território. Portanto, estes dois universos, a arte e a cultura, andaram sempre de mãos dadas. 

Claro que O Espaço do Tempo é um local protegido para a criação. Os estúdios de ensaios e as nossas várias black box são locais sagrados. Muitas vezes nem a própria equipa entra. Tem de se bater à porta várias vezes. Mas é muito importante dizer-se também que é um local totalmente democrático, quando o público entra e é convidado a entrar. E negociamos muito bem essa relação com o público. 

Esta relação poderia ter acontecido em qualquer outro território do país?

Podia acontecer em qualquer sítio do país e em qualquer sítio do mundo. Os artistas também têm de sair da sua casca… É muito interessante os artistas de hoje em dia realmente pensarem, equacionarem, sair dos grandes centros urbanos. É mesmo interessante para a criação artística. E não estou a dizer que isto é politicamente correto, que é algo que fica bem. Estou a dizer que é mesmo bom sair dos grandes centros urbanos e ter condições de criação com alguma tranquilidade, radicar-se em sítios e em locais, sobretudo num pequeno país como Portugal, onde,com a rede de transportes que temos e com esta rede enorme que é a Internet, estamos sempre próximos dos centros. 

Questiono completamente a noção de centro e periferia, desde há muitos anos. Montemor à sua maneira tornou-se um centro. Portanto, estas questões são muito relativas. E é possível ter ecossistemas culturais fortíssimos fora dos grandes centros urbanos. Por exemplo, em Montemor temos um ecossistema cultural incrível. Montemor tem n grupos independentes, para além d’O Espaço do Tempo, no teatro, na dança. Tem artistas visuais que se têm radicado, músicos, realizadores, por aí fora. Então, acho que é possível em qualquer sítio. Tem é que haver uma recetividade no meio que te acolhe, que tem muito que ver normalmente com a autarquia, com a escola, e com algumas associações locais ou públicas, mas em geral com a comunidade. E, por outro lado, tens de ter vontade de ir. Não é sempre algo fácil para um criador. Os criadores tendem a ficar nos centros urbanos, e o problema é que a criação depois também se torna muito autofágica. 

Não tenhamos ilusões que os nossos pares são muito importantes e são até validadores, mas nós não criamos para os nossos pares. Não podemos criar para os nossos pares e não pode haver um elemento endogâmico nas artes, porque isso é desvirtuar a relação com o público.

O que é que essa descentralização pode trazer à prática artística? 

Pode trazer uma maturidade. E isso é importante. Defendo realmente que os nossos pares são muito importantes quando veem os nossos trabalhos. Se estiver a fazer uma nova peça de dança, num teatro com 300 pessoas, e entrar pela porta, para ver o espetáculo, o William Forsythe ou Anne Teresa De Keersmaeker, obviamente, naquele dia vou pensar: “está cá o Forsythe ou a Keersmaeker”. Não tenhamos ilusões que os nossos pares são muito importantes e são até validadores, mas nós não criamos para os nossos pares. Não podemos criar para os nossos pares e não pode haver um elemento endogâmico nas artes, porque isso é desvirtuar a relação com o público. Não podemos fazer apenas uma criação de nicho, para públicos de nicho. Temos de ser capazes de comunicar para públicos mais vastos. E esse é o papel da cultura também, não é só o papel da arte.

Aceito que possas ter só dez pessoas, ou uma dúzia de pessoas, que leem os teus livros, mas não vais conseguir publicar em nenhuma editora. Mas é válido, se quiseres viver assim ou teres um blog. Mas penso que, num processo em que existem meios de produção relativamente mais pesados, como as artes performativas – já para não falar em cinema –, é fundamental termos uma capacidade de sairmos de um espaço de conforto e de abrirmos, no sentido de conquistarmos mais público e fazermos o nosso trabalho também de mobilização desses públicos para a experimentação. Porque isso é também um fator de resiliência do nosso próprio trabalho artístico, e um fator de transformação da sociedade. 

Quantos mais públicos tiver, que estejam absolutamente motivados, curiosos, interessados e galvanizados pela experimentação artística, mais possibilidades tenho de ter uma carreira sustentada, de haver públicos que estão interessados no meu trabalho e, portanto, de ser programado. E não nos podemos esquecer de que, em Portugal, há mais de 100 teatros fora dos grandes centros urbanos. E esses teatros têm que acolher e estão dispostos a acolher. E devemos incluí-los nas nossas estratégias de circulação. Não há outra maneira, porque isso vai ser um grande fator de sustentabilidade, para todos nós, no futuro. Haver um "mercado" em que funciona a experimentação artística – e em que não funcionam só os valores mais estabelecidos, ou o entretenimento. Esse trabalho de conseguir chegar a novos públicos parte das estruturas que nos acolhem, mas parte também dos criadores e dos seus produtores. 

Um criador, como o Rui, volta do estrangeiro, onde esteve tantos anos e vai para Montemor-o-Novo? É claro que teve um elemento simbólico, mas surpreendeu-me ver que, depois de ter corrido tão bem, como correu, não foi tão replicado assim, ou quase não foi replicado. Isso fez-me pensar no que é que falta. Também falta haver políticas culturais das autarquias fortes. Falta haver incentivos por parte dos mecanismos centrais, como a DGArtes [Direção-Geral das Artes], e falta haver, da parte dos criadores e das criadoras, uma vontade de sair de um centro urbano.

Rui Horta no Festival Ignição 2022, em Oeiras. ©David Cachopo

Então, é sempre um trabalho que vai ser em conjunto. Não há fórmulas garantidas nesta relação com estes territórios... 

Porque quando vais do ponto A para o ponto B, normalmente vais por duas razões. Vais porque queres sair do ponto A, queres ir para o ponto B, mas também és atraído pelo ponto B. Portanto, é uma responsabilidade partilhada. Há 22 anos quando fui para Montemor, obviamente, foi radical e foi assim uma coisa... "o que é isto?". Um criador, como o Rui, volta do estrangeiro, onde esteve tantos anos e vai para Montemor-o-Novo? É claro que teve um elemento simbólico, mas surpreendeu-me ver que, depois de ter corrido tão bem, como correu, não foi tão replicado assim, ou quase não foi replicado. Isso fez-me pensar no que é que falta. Também falta haver políticas culturais das autarquias fortes. Falta haver incentivos por parte dos mecanismos centrais, como a DGArtes [Direção-Geral das Artes], e falta haver, da parte dos criadores e das criadoras, uma vontade de sair de um centro urbano.

Aproveito o mote para lhe perguntar como olha para o estado da cultura hoje, num momento em que parece ser seguro dizer que saímos de uma pandemia, e continuamos a aprender a lidar com a guerra na Europa. De que forma é que estas crises também impactam a prática artística e a cultura? E não só de um ponto de vista económico, porque desse ponto de vista é quase sempre negativo.

É muito importante, porque o contexto impacta sempre o texto. Não há outra hipótese, porque uma linguagem não fala de si própria. Fala do mundo e problematiza o próprio contexto em que vivemos. E ela serve para falar de si, mas para falar de si em conjunto com o mundo, em diálogo com ele, e desse próprio mundo. Então penso que os contextos são desafiantes, são enormes, brutais.

Em relação aos discursos artísticos, há neste momento uma tendência de emancipação dos discursos e da importância de emancipar corpos com identidades e com sexualidades diferentes. A questão da identidade de género é muito importante. A questão pós-colonial é igualmente muito importante. Finalmente, ela está mesmo na ordem do dia. Vai ser cada vez mais forte. Sobretudo nos 50 anos do 25 de Abril, vai tornar-se central ao discurso artístico também. A questão de corpos que não são corpos normativos, digamos, corpos que têm dificuldades em se exprimir como aquilo que consideramos a norma, vai ter cada vez mais o seu lugar. [O tema] não é novo, mas hoje em dia vai tornar-se um discurso habitual, um discurso que nem sequer vai ser diferente. 

Penso que a dança, em si, sempre foi um lugar de proteção. A dança, e diria as artes em geral e as instituições culturais, são um lugar protegido onde todas estas negociações podem e devem existir. Sempre assim foi, desde há muitos anos, com a comunidade gay, por exemplo, que sempre encontrou, no espaço das artes, um espaço protegido. Devíamos ter orgulho e pôr tudo isso na lapela! Como [devíamos] também saber lidar com as pessoas com necessidades intelectuais e físicas específicas. E não excluir a pobreza extrema. Todos e todas devem estar no território das artes. Temos sempre essa necessidade e vontade de trabalhar de forma inclusiva. Hoje em dia há muitos espetáculos, por exemplo, que têm linguagem gestual. Isso tem que ser a norma. As acessibilidades para cadeiras de rodas têm que ser norma, etc. 

Em geral, está cada vez mais a tornar-se claro que os espaços e as organizações culturais são espaços absolutamente seguros para todas estas expressões que existem na sociedade. Isso é muito bom e devemos ter orgulho nisso. Agora, o que acho em relação ao discurso artístico? Acho que o discurso artístico não se pode focar só nestas problemáticas. O discurso artístico serve para problematizar: nós, uns com os outros, a natura, com a cultura, o mundo, todo o universo, a filosofia, a sociedade, etc. Estamos num território do cruzamento do saber, da sensibilidade e da poética e, portanto, este território seguro é só um ponto de partida, para depois podermos falar do que quisermos, como quisermos, e da forma que quisermos. 

Rui Horta no Festival Ignição 2022, em Oeiras. ©David Cachopo

Por outro lado, a dança como linguagem artística, ela tem uma maturidade... Tem de haver uma escrita coreográfica interessante, experimental, desafiante, baseada no corpo, e inteligentemente articulada com outras linguagens. Acredito no corpo como ferramenta de transmissão e de comunicação. Tem de haver uma excelente composição desse corpo, no espaço, mas também uma composição desafiante, com a música, com a dramaturgia, que tem que ver com a arquitetura, com a tecnologia, etc.. É importante sentirmos que a dança sempre esteve no cruzamento, na transdisciplinariedade, e no centro do cruzamento de linguagens, desde os anos 70, 80, 90, por aí fora.

Nós somos playground, somos território de partilha e de cruzamento entre não sei quantas linguagens artísticas, justamente, porque temos uma história relativamente recente. Não carregamos nem o verbo, nem um peso qualquer. Estamos abertos à negociação, à experimentação, ao desafio, ao jogo. Então, esse é um dado que continua muito presente na dança e por isso é que ela está nas vanguardas das artes performativas, desde os últimos, seguramente, 20, 30 anos. Porque é um território que se abre. Não se fecha. Não está dependente da décima versão de um determinado clássico. Não. Já nem tem clássicos. Porque os nossos clássicos são tão fracos, tão frágeis... Somos tão jovens que não temos de matar o pai nem a mãe. Temos é de ir para frente. A dança é puro futuro. E essa liberdade que a dança tem transporta uma leveza que tem que ver com este milénio, como dizia o [Italo] Calvino. É um dos memorandos para o novo milénio, é a leveza, a multiplicidade. E a dança tem isto. Creio que é uma linguagem de futuro e depois insere-se no seu contexto muito bem. 

[A dança] insere-se hoje também num conceito que tem que ver com como o corpo se envolve com o que o cerca. Estamos a viver num tempo em que há cada vez menos corpo. Estamos quase no limite de um certo pós-humanismo, com robôs, com a digitalização e com a inteligência. Isto levanta questões para o corpo muito fortes. E essa reflexão está hoje muito presente também nas artes. E vai ficar.

Se lidamos com o corpo, somos especialistas do corpo. É o que um coreógrafo ou criador da dança faz. Trabalha com o corpo, como ferramenta de comunicação. Se esse corpo está bastante ausente ou tendencialmente mais ausente, porque a sociedade é cada vez mais mental – apesar da mente ser também outro corpo –, essa fisicalidade vai desaparecer. Então este é o território das artes. O grande território das artes é o território problemático. A arte é a pedra no sapato. 

A arte ao vivo hoje é revolucionária, por si só. Porque vai contracorrente em relação à digitalização, à atomização e fragmentação do mundo. Ela é um ponto de encontro. (...) Para mim, é o mais importante ritual das sociedades modernas e pós-modernas. É fundamental que a arte ao vivo não desista. Portanto, o apoio às artes performativas, em geral, é uma obrigação, que devia ser parte do discurso político da nação.

Este é um tempo que vai ser muito interessante para a dança. Porque pode chegar um momento em que vais com o teu pai ao teatro e dizes “ó, pai, olha ali um corpo num palco a dançar.” Não, calma, aquilo não é um museu! Isto é o território vivo. No dia a dia, vamos manter este corpo vivo, desafiante, vamos fazer as pessoas sair de casa, as pessoas encontrarem-se. E é essa a importância também da arte ao vivo. A arte ao vivo hoje é revolucionária, por si só. Porque vai contracorrente em relação à digitalização, à atomização e à fragmentação do mundo. Ela é um ponto de encontro. Para mim, é o mais importante ritual das sociedades modernas e pós-modernas. É fundamental que a arte ao vivo não desista. Portanto, o apoio às artes performativas, em geral, é uma obrigação, que devia ser parte do discurso político da Nação. Se nos vamos fechar todos em casa a ver séries, vamos desaparecer, vamo-nos fragmentar, desmaterializar completamente. Esse território é onde a dança, operando sobre o corpo, fundamentalmente se sente em casa, e, portanto, é riquíssimo.

Recuando ligeiramente, falávamos da arte e da dança como um território seguro para uma série de expressões. Deixe-me perguntar-lhe se esse é um território que também se deixa contaminar pelos populismos a que assistimos hoje em dia? Ou se, pelo contrário, é uma forma de os combater? 

A sociedade avança a várias velocidades. Vivemos neste milénio uma série de movimentos sociais muito importantes, sobretudo nas sociedades ocidentais, desde o Occupy Wall Street, o Black Live Matters, o Me Too, etc. [Mas], por exemplo, com a exuberância de todo o discurso sobre as identidades de género, o próprio feminismo ficou um pouco esquecido. Não nos podemos esquecer de que o ano passado, na Europa, foi o ano em que houve mais femicídio. É uma coisa horrível pensarmos que estamos no século XXI e as mulheres continuam a estar numa posição desta fragilidade. Todos estes discursos são discursos muito importantes, mas devemos incluir todos e este em particular. 

Temos de ser, como dizia há pouco, um lugar protegido, mas temos de ir muito mais além. Estamos até numa fase de transição em que a sociedade se tem de habituar a novas formas de negociar todas estas questões, que são muito importantes, mas a vida vai para lá destas questões. Há todo um mundo para se falar. E para isso é que serve a linguagem. Onde sou mais crítico é no papel das organizações culturais em geral. Creio que estamos muito ensimesmados, em universos mais preocupados uns com os outros, quando há o mundo exterior que está em ebulição. E, portanto, há duas grandes questões que têm passado ao lado: o pacifismo e as alterações climáticas.

Várias vezes falei do lugar seguro, onde todas estas novas identidades e estas questões da sociedade vão encontrar um porto de abrigo no universo inclusivo das artes. Isto é algo que, historicamente, sempre foi assim nas artes. Mas temos de ter a noção de que há áreas em que devíamos ser convocados e não estamos a ser convocados. E temos de estar à altura. Temos passado muito ao lado da ecologia e do aquecimento global. Sim, os programas escrevem uns bons textos de editoriais, nas aberturas de temporada, enfim, há sempre intenções boas. Não usar garrafas de plástico, etc. Mas o combate contra as alterações climáticas faz-se em muitos sítios onde as artes deviam estar mobilizando os seus públicos. Faz-se também nos tribunais, faz-se na rua, faz-se nos média e faz-se na desobediência civil. Faz-se hoje verdadeiramente na fronteira da lei. Estamos num sítio muito confortável e temos de sair de uma zona de conforto. Basta olhar para a Greta Thunberg. É ali que se fazem os combates. Esta luta faz-se ativamente com a sociedade civil, não é com cliques de like na Internet, isto é na rua. E as artes têm estado ausentes destes combates, na minha opinião. 

E têm também estado ausentes do movimento pacifista, do movimento antiguerra. Têm tido um discurso completamente ao lado daquilo que está a acontecer, em que morrem milhares de ucranianos e de jovens russos todos os dias. Carne para canhão. É uma loucura numa guerra que não está a ser analisada com a profundidade devida. Devíamos estar na rua a exigir a paz e devíamos estar a debater estas questões, nomeadamente impor que a China se envolva fortemente na paz, caso contrário não consumiremos produtos chineses; e que os EUA deixem de impor um conflito que lhes serve e é uma montra para a sua indústria de armamento… É de uma violência atroz esta invasão russa à Ucrânia. Mas temos de ser capazes de sair daqui, e mais uma vez as artes não têm estado a pôr isto como um território prioritário. Vemos a importância que tiveram os movimentos pacifistas para acabar com a guerra no Vietname, nos anos 60, 70. Estamos completamente adormecidos e poderíamos mobilizar os nossos públicos. 

Rui Horta no Festival Ignição 2022, em Oeiras. ©David Cachopo

O mundo está adormecido, fragmentado. Mesmo em relação às alterações climáticas, já se normalizou. Parece que já aceitámos que o planeta vai aquecer, que o nível dos oceanos vai subir, que fenómenos extremos vão acontecer, que a seca vai entrar por metade da Europa adentro, que o Bangladesh já está com água pela cintura, que vão desaparecer ilhas inteiras e arquipélagos no Pacífico. Não! Não podemos normalizar este discurso. Basta olhar para o que aconteceu em Moçambique. Como é que Moçambique tem estes dois ciclones, dois anos seguidos? O que é isto?! Isto tem que ver, obviamente, com o facto de os ricos estarem a poluir de tal maneira que os pobres vão novamente sofrer com isto. Temos de ser capazes de ter posições societais mais poderosas nas artes. E não somos assim tão presentes.

Qual é a diferença relativamente ao que, por exemplo, acontecia antes quando foi o conflito do Vietname? É esta questão da individualização, de estarmos muito virados para nós próprios, e isso estar também a acontecer no mundo artístico? 

A grande diferença chama-se híper normalização. Tornamos normal tudo o que é absolutamente distópico nas nossas vidas, que é fecharmo-nos em casa dias inteiros, aceitarmos a mentira dos políticos, aceitarmos a violência de todo o tipo. Na verdade, há uma fragmentação que tem que ver com a sociedade digital, que fez com que, nos últimos 30, 40 anos, não tenhamos uma noção da realidade, porque temos só uma perceção através de ecrãs da realidade e, portanto, não estamos na rua. Estamos todos a viver representações da realidade. Estou a referir-me a um termo que acho muito interessante, de um realizador e documentarista de quem gosto muito, que é o Adam Curtis. Era um grande jornalista da BBC, que teve acesso aos materiais de ficheiros da BBC durante 20, 30, 40 anos. Ele analisa perfeitamente para onde estamos a ir, e estamos numa rota de colisão com o futuro, no sentido em que somos extremamente manipulados por redes sociais, pelos média, e temos uma ausência de reflexão no dia a dia. 

As artes são muito importantes, porque o território artístico é um território de reflexão societal também e, portanto, esse é um território social. Por isso acredito muito que as artes e as organizações culturais vão ser inevitavelmente convocadas para um futuro que se avizinha – que é onde já estamos a fundo – mas que é um mundo totalmente fragmentado, em que é muito fácil manipular as pessoas. Na minha opinião, somos totalmente manipulados, não só por novas formas de discurso político, como também por algoritmos. É muito difícil levar as pessoas para a rua para lutarem por uma causa boa. Há exceções. Vemos o que está a acontecer em França, em determinadas sociedades. Mas, em geral, é muitíssimo difícil conseguir mobilizar as pessoas para sair da porta de casa para fora.

Em Portugal, no caso específico da dança, quais é que são os principais constrangimentos? 

A dança está também numa fase de transição, como estão as artes em geral e, numa fase pós-pandémica, também a redescobrir e a redescobrir-se. Mas está também numa fase de grande maturidade, a dança contemporânea. É importante não esquecer que a grande mudança do paradigma da dança foi a dança contemporânea, por muito que esteja a mudar, hoje em dia, as questões do corpo e as questões ligadas à identidade. Quando a dança deixou de ser um território narcísico... quando a dança, em vez de problematizar “olha para o meu corpo”, passou a problematizar “olha para o que o meu corpo faz” ou “para o que estou a tentar dizer?” – independentemente desse corpo ser alto, magro, baixo, da cor ou idade que for – há mais de 20, 30, 40 anos, começávamos mesmo a usá-la como linguagem. E nesse sentido, a dança hoje tem muitas cores diferentes. Tem pessoas que trabalham com movimento, pessoas que trabalham mais na performance, etc.

Estamos a viver um tempo de grande multiplicidade, o que é muito bom, porque o pior que pode haver no discurso artístico é o pensamento único. Queremos semear muitas sementes diferentes para dar uma diversidade enorme. E ao mesmo tempo, as condições não têm nada que ver com o que eram há 10, 20, 30 anos. Há muito mais condições, não tenhamos dúvidas. Se chegam? Não, não chegam. Se há problemas de financiamento, e se continua a haver problemas nos concursos? Sim, sem dúvida. Mas existe também hoje uma capacidade de resiliência do setor muito importante, nomeadamente, a cena independente que ajuda a própria cena independente. As organizações independentes dos últimos 20, 30 anos ganharam uma robustez por todo o país. Na verdade, também nos ajudamos uns aos outros. E é normal haver uma solidariedade entre criadores de várias gerações. Portanto, é muito intergeracional. É também um mundo profundamente intercultural, com pessoas de origens diferentes. E é um mundo também interdisciplinar, com o cruzamento de disciplinas diferentes que se juntam na dança. Penso que essa incrível paisagem múltipla da dança – intergeracional, intercultural e interdisciplinar – é o poder da nossa linguagem.

Depois ela tem uma perceção muito interessante porque é quase pré-cognitiva, ou seja, um corpo a dançar, ele comunica contigo de uma forma neuro motora quase pré cognitiva. Aquele corpo traduz uma verdade e faz-te passar coisas, através de processos complexos do ponto de vista neuro motor, que não é só o uso cognitivo do pensamento e da palavra. É um falar com o corpo, e o falar com o corpo numa sociedade em que o corpo está cada vez mais a desaparecer é, por si só, completamente revolucionário.

Temos aqui uma síndrome do corpo na nossa sociedade, e a dança faz-te estar em contacto com o corpo que normalmente escondes. E isso é muito importante porque senão passamos a ter um corpo só nos extremos. A dança traz a homeostase ao teu corpo, faz-te viver em contacto diário com o corpo, e não te lembrares só do corpo ou da tua sexualidade, ou quando vais para a praia ou quando estás doente

Se tivesse que explicar, a uma qualquer pessoa, o que é que a dança pode trazer à sua vida, o que lhe diria?

A dança, para qualquer pessoa, trá-la em contacto com o seu próprio corpo, é um espelho do corpo. Como dizia o José Gil, aquela frase maravilhosa: "O corpo é tudo o que eu tenho”. Tudo o que temos é o corpo, somos o corpo, então vamos viver com ele. A dança traz-te esta qualidade incrível. E não é só a dança, são atividades diferentes e formas diferentes de estar com o corpo. Por exemplo, estou-me a lembrar do Yoga, um Tai-Chi, uma forma de estarmos com o corpo muito orgânica em que estamos sintonizados e olhamos para o mundo também com o corpo. Porque não nos podemos esquecer de que o contacto de uma criança com o mundo se faz sempre de uma forma multimodal, através do cheiro, do corpo, do tato, da visão e da audição, que ainda são muito reduzidas. E à medida que os anos vão passando, a cognição impõe-se mas o corpo está sempre presente.

Do corpo só vemos – como estamos aqui a falar [em videochamada] – as mãos e a cara. O corpo está tapado. Só nos lembramos do corpo quando vamos para a praia. Vai tudo para as dietas. Temos aqui uma síndrome do corpo na nossa sociedade, e a dança faz-te estar em contacto com o corpo que normalmente escondes. Isso é muito importante porque senão passamos a ter um corpo só nos extremos. A dança traz a homeostase ao teu corpo, faz-te viver em contacto diário com o corpo, e não te lembrares só do corpo ou da tua sexualidade, ou quando vais para a praia ou quando estás doente – quando perdes o corpo. Pensas no corpo quando o perdes, mas isso são momentos extremos. A dança permite viver um dia a dia muito bem com aquilo que és e, portanto, acredito que traz um bem-estar. Pessoas com bem-estar são seguramente pessoas mais bonitas, pessoas mais interessantes. 

E mais empoderadas.

Completamente. A questão do equilíbrio pessoal face à diferença hoje é muito importante. Ser diferente é naturalmente entrar em tensões. Isto é normal. E vai haver sempre tensões. Só que, no futuro, se conseguirmos ultrapassar as inúmeras crises – as tensões da sociedade, os populismos, os extremismos – iremos viver com essa diferença e com muita felicidade, porque é dessa diferença que se faz uma grande dose do nosso futuro.

Quando vais fazer uma viagem, não queres ir a sítios diferentes, com pessoas, odores e sensações diferentes? A diferença no seio das nossas sociedades é sobretudo uma coisa que deve ser vista como uma riqueza. E qualquer sociedade que se fechou à diferença, historicamente, sucumbiu. As grandes civilizações que se fecharam em si mesmas desapareceram. 

A diferença traz consigo a renovação. Agora o ser humano é tramado. Também é um sapiens e tem uma forma de funcionar territorial. Mas as artes são um sítio justamente de negociação dessas pulsões. Gosto muito do termo fusão. Vamos inevitavelmente fusionar e estar muito bem com esse “fusionamento”. Se ganharmos isto… porque tudo está entre a distopia e a utopia. [Se ganhar a] distopia, isto pode acabar amanhã. Se conseguirmos ultrapassar esta fase, se escolhermos the red pill, em vez do blue pill*, talvez então a única solução seja essa fusão, seja uma capacidade de vivência em conjunto que é fantástica.

* A pílula vermelha e seu oposto, a pílula azul, são símbolos da cultura popular que representam a escolha entre abraçar a verdade às vezes dolorosa (vermelha) e a ignorância abençoada (azul). Os termos, popularizados na cultura da ficção científica, vêm do filme Matrix. Sem qualquer relação com o movimento machista e misógino Red Pill.

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11 Dezembro 2024

Maria Caetano Vilalobos: “Acho que nunca escrevi poesia que não tivesse uma parte biográfica”

16 Outubro 2024

O Teatro Académico de Gil Vicente vai aprofundar a ligação a Coimbra com programação de outono

9 Outubro 2024

O Festival Iminente vai afirmar-se como plataforma de criação este ano

12 Junho 2024

Haris Pašović: “Não acredito que a arte deva estar desligada da realidade”

10 Junho 2024

Matilde Travassos: “A intuição é a minha única verdade”

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

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