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Sara Cerdas: “Não podemos apenas viver de políticas feitas a pensar no ciclo político”

Estreou-se no Parlamento Europeu há cinco anos e as transformações que testemunhou durante o mandato foram profundas em várias áreas. Em entrevista ao Gerador, no âmbito do projeto Europa Agora, a socialista Sara Cerdas destaca as mudanças na área da Saúde após a pandemia, as particularidades das Regiões Ultraperiféricas da União Europeia e a possível ascensão da extrema-direita no Parlamento Europeu.

Texto de Débora Cruz

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É com preocupação que a deputada socialista Sara Cerdas acompanha o aumento dos discursos populistas já presentes nas instituições europeias. Para a próxima legislatura, acredita que o Parlamento Europeu (PE) vai ser mais fragmentado e albergador de mais forças que são antiprojeto europeu. “Isto tem de nos fazer refletir sobre onde é que estamos a falhar e como é que podemos combater esta onda”, alerta, em entrevista ao Gerador. 

Mas para a eurodeputada, este papel de reflexão e reivindicação não pode ser assumido apenas pelos deputados eleitos. A médica madeirense destaca a importância e o poder de influência que a sociedade civil possui sobre os representantes políticos. “Apenas conseguimos mais ambição no combate às alterações climáticas através dos movimentos civis, nomeadamente o movimento Fridays for Future”, confessa.

Sara Cerdas é mestre em Medicina pela Universidade de Lisboa, pós-graduada em Medicina do Viajante pela Universidade NOVA de Lisboa, mestre em Saúde Pública pela Universidade de Umeå e doutoranda em Ciências de Saúde Pública na Universidade de Estocolmo, ambas na Suécia. Com um percurso mais ligado ao associativismo do que à política partidária, passou pela International Federation of Medical Students’ Associations e pela Associação Nacional de Estudantes de Medicina.

Quando iniciou os trabalhos, em 2019, perguntavam-lhe o que fazia uma médica de saúde pública no PE. Mas, poucos meses após tomar posse como eurodeputada surgiu o primeiro caso conhecido de covid-19 no mundo, e Sara Cerdas acredita que a forma como as instituições europeias passaram a olhar para a área da saúde se alterou profundamente com a pandemia. 

Cresceu no Funchal, na ilha da Madeira. Este dado biográfico ajuda a explicar uma das missões que afirma ter assumido nos últimos cinco anos: aumentar a presença da Região Autónoma no PE e aproximar os madeirenses e porto-santenses à União Europeia (UE) e às suas instituições. A eurodeputada confessa que as necessidades específicas das Regiões Ultraperiféricas da UE eram muitas vezes esquecidas e relembrar estas particularidades foi uma constante ao longo do mandato.

No PE, é membro da Comissão de Saúde Pública, Segurança Alimentar e Ambiente (ENVI), da Comissão de Transportes e Turismo (TRAN) e da Subcomissão de Saúde Pública (SANT). Co-presidiu o Grupo de Trabalho em Saúde do PE, foi vice-presidente da Comissão Especial de Combate ao Cancro (BECA) e coordenadora do Grupo S&D para a Comissão Especial sobre a Pandemia de COVID-19: Ensinamentos Retirados e Recomendações para o Futuro. 

No ano seguinte à sua estreia no PE, foi vencedora do Prémio Eurodeputada do Ano “MEP Awards” em saúde, atribuído pela The Parliament Magazine. Em 2021, foi indicada a deputada mais influente no PE em matéria de políticas de saúde pela Votewatch Europe.

Por videochamada, a deputada ao PE recorda as grandes batalhas e surpresas deste mandato, as propostas prioritárias na área da saúde mental, o impacto futuro do Espaço Europeu de Dados em Saúde, o Pacto Ecológico Europeu e as diferenças entre a forma como os jovens e as gerações mais velhas se relacionam com o projeto europeu.


Tem um percurso muito ligado ao associativismo e não tanto à política partidária. Aliás, em declarações à imprensa portuguesa, disse que até às vésperas da ida para Estrasburgo, não imaginava sequer uma carreira nesta área. O que mudou? E quando começou a ter interesse pelo projeto europeu?

Se calhar não foi bem assim que eu disse no sentido em que sempre tive muito interesse no projeto europeu. Nunca me tinha era imaginado como um agente ativo no sentido estreito de cargo político. Sempre tive uma vertente muito mais ligada ao associativismo, ao sentido cívico de trabalhar por mais saúde e bem-estar que, ao fim e ao cabo, é também o objetivo ou as premissas da Saúde Pública. Quando fui convidada não estava de todo à espera de vir da sociedade civil sem qualquer ligação partidária ou político-partidária e entrar logo num cargo de tão enorme honra e prestígio, mas também de grande responsabilidade, que é o de ser deputada para o PE e foi algo que fiz com muito gosto nos últimos cinco anos.

Há cerca de um ano, disse ao diário madeirense Et al. que: “Quando se vive numa ilha, pela distância natural entre o território insular e o continente, existe uma espécie de sentimento de orfandade das instituições europeias para com os nossos problemas e desafios.” Este sentimento de orfandade tem-se vindo a inverter nas Regiões Ultraperiféricas da UE ou as instituições continuam muito distantes?

Quando fui convidada integrei uma campanha, fazia parte de um projeto que, aliás, está em continuação até termos eleições regionais agora, mas fazia parte de um projeto maior que era mudar a Madeira. Ao fazer parte deste projeto, e com três meses de campanha, estive muito na rua, foi uma campanha de muita proximidade, porta a porta, de sol a sol. O que eu notei era que quando tentava abordar questões europeias, as pessoas... Não tínhamos muito a noção do que a UE faz por nós.

Nós temos, por exemplo, vários projetos de construções nos licenciamentos e sempre que vemos lá a bandeirinha da UE aparece: ‘Projeto cofinanciado pelo FEDER’ [Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional] ou [cofinanciado] pelo PO-SEUR [Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos]. Mas quando vemos essa bandeirinha, se depois virmos os detalhes nas letras mais pequenas, grande parte do financiamento da obra vem da UE, portanto não lhe era reconhecido o mérito. Isso foi uma realidade que vivi em primeira mão durante a campanha. Então, quando iniciei as funções, reuni-me com a minha equipa e delineámos aquela que seria a nossa missão e visão. E a missão passava por aproximar este gap [distância] que existe entre o que nós decidimos em Bruxelas e em Estrasburgo e que afeta tanto o nosso dia-a-dia, e eu fi-lo através de várias iniciativas: dou exemplo de três. 

A primeira foi ter um gabinete da Europa: o gabinete da eurodeputada com um colaborador local para atendimento ao público para qualquer questão sobre a UE. Fi-lo também [de forma] descentralizada, ou seja, não foi na capital da região, mas foi em Machico. Depois, também através de um concurso para integração dos mais jovens: o Europe Calling, que é um concurso dirigido a alunos de ensino secundário. Com esta iniciativa consegui levar mais de cem jovens madeirenses a Bruxelas para visitarem o PE e verem um pouco como é que fazemos o nosso trabalho.

Depois tive outra iniciativa, que foi passar em cada um dos concelhos da região e discutir temáticas europeias relevantes para aquele concelho. Por exemplo, a bananicultura é algo muito importante para o concelho da Ponta do Sol. Fui lá discutir com os bananicultores a Política Agrícola Comum, as derrogações específicas para uma região ultraperiférica, ou seja, isso foi uma constante ao longo do meu mandato. 

Mas também tivemos outras iniciativas da delegação do Partido Socialista… Tivemos os roteiros da Europa: passámos pelas cinco regiões do continente, onde visitámos vários projetos da UE e [vimos] como a UE está integrada nas nossas vidas, porque a UE não é nós contra eles. Somos todos UE. Cerca de 70% ou 80% da legislação portuguesa é influenciada por políticas europeias*, daí a importância de termos bons eurodeputados. Os 21 eurodeputados portugueses que nos representem da melhor forma no Parlamento e que tenham esta atenção às particularidades das Regiões Ultraperiféricas, que são nove regiões da UE de três Estados-Membros: França, Espanha e Portugal. Portugal tem os Açores e a Madeira e tem particularidades específicas que precisam de derrogações especiais. Não é uma constante, é preciso estar sempre a relembrar e a fazer um grande trabalho para explicar a mais-valia destas regiões para o projeto europeu, explicar porque é que precisamos destas particularidades.

Tive a oportunidade de sugerir uma missão da Comissão de Transportes e Turismo do PE e um grupo de eurodeputados dos mais diversos países não percebiam porque é que não andávamos aqui de bicicleta de um lado para o outro. Claramente, com a nossa orografia, perceberam que na Madeira não é possível… Quer dizer, algumas pessoas conseguem, mas não de uma forma tão generalizada para todos, e isso foi sempre uma constante. Esta proximidade, porque também é importante relembrar que os eurodeputados estão aqui nesta posição para representar os cidadãos e representar da melhor forma os seus interesses, e essa representação faz-se sempre em grande proximidade.

Ao longo das iniciativas que desenvolveu notou diferenças entre a forma como os jovens se relacionam com a UE e a relação das gerações mais velhas com a UE?

Sim, eu noto que as gerações mais velhas reconhecem aquilo que a UE fez por nós, porque vivenciaram aquilo que foi o antes e o após a adesão, especificamente na Madeira. [Viveram], desde a nossa adesão, o que é que aconteceu em termos de desenvolvimento regional, por exemplo, melhores infraestruturas de mobilidade. Eu costumo dar um exemplo: antes, quando eu era miúda, íamos ao hotel Porto Menis em meio dia, era uma viagem muito cansativa. Agora, fazemo-la em menos de uma hora. Ou seja, essa transformação… Acho que as gerações mais velhas reconhecem e dão o seu valor. As gerações mais jovens estão muito interessadas no projeto europeu, o que eu sinto é que sentem que não estão a ser ouvidas. Se nós formos a ver, em termos de representatividade no PE, não é proporcional àquilo que é a idade dos cidadãos europeus, ou mesmo dos portugueses. Isso é algo que noto que gera alguma frustração.

Quer dizer, tivemos agora eleições para a formação da nova Assembleia da República, um novo mandato, e temos poucos deputados com menos de 30 anos, ou seja, não é algo particular do PE, mas é algo que os mais jovens mencionam quando falam da UE. Depois, há outra questão, que é a maneira como comunicamos, porque a comunicação social, e aqui [gostaria de] saudar este projeto do Gerador, costumo dizer que é muito importante falar da UE, não apenas quando chegam as eleições. Quando fazemos algo no PE, ou na UE, geralmente, as taxas de juros, a Euribor, estas questões mais macro, milhões de euros que vêm para Portugal. Mas no que é que isso se traduz para o nosso dia a dia?

A UE vai muito além das políticas monetárias e financeiras. Por exemplo, nós agora temos uma nova regulação para melhorar a qualidade do ar. A poluição do ar é responsável por cerca de 10 % dos cancros, sendo que grande parte da poluição vem do ar. Isso foi uma grande conquista deste mandato e, se calhar, nem passou na comunicação social que iremos respirar ar mais limpo, com menos poluentes para todos nós, e isso foi uma grande conquista da UE. Portanto, em termos de comunicação sinto essa frustração. 

Também noto alguma desinformação ou algum afastamento: ‘Ah, é Bruxelas, o que eles decidem lá, está lá fora’, e não é bem assim. Mas eu noto os jovens muito interessados. Aliás, vim agora de uma participação num debate nas escolas e há muito interesse na UE. Mas os jovens não podem ser vistos apenas para irem fazer Erasmus, ou para fazerem parte do Corpo de Solidariedade Europeu. Têm de ser vistos também por aquilo que são e as suas ideias têm de ser tidas em conta. Têm, os próprios, de fazer parte dos órgãos de decisão.

Em junho de 2022, foram aprovadas derrogações para as Regiões Ultraperiféricas da UE no setor marítimo e aéreo, no âmbito do pacote legislativo “Fit for 55” (um conjunto de propostas destinadas a rever e atualizar a legislação da UE em matéria de clima). Mas não estava previsto nenhum regime especial para estas regiões na proposta inicial, mais vulneráveis perante a transição climática. Tem havido uma preocupação com a garantia de uma transição climática justa que vise também a coesão territorial?

Esse exemplo reflete muito aquilo que aconteceu neste mandato. Existe uma proposta da Comissão que não contempla Regiões Ultraperiféricas e percebemos que, se calhar, a adaptação da diretiva será complicada para estas regiões. Aí, é o nosso papel no Parlamento efetuarmos as nossas próprias propostas de alteração e fazermos com que sejam adequadas àquilo que é a nossa realidade que, tal como já discutimos, tem considerações especiais, diferentes, consagradas nos tratados. Mas penso que isso advém do trabalho de um eurodeputado. Também é importante termos sempre esta noção de que estamos lá, não apenas pela Madeira, por Portugal, pelos Açores, mas também pelo projeto europeu, e de que forma estas diferentes vertentes podem convergir para um aprofundamento daquilo que é a construção europeia.

No debate sobre a prevenção das perdas de pellets de plástico para reduzir a poluição por microplásticos, no PE, disse que a proposta da Comissão era um passo na direção certa, mas foi “tardia” e “faltava-lhe a ambição” para a verdadeira resolução do problema. As propostas na área do ambiente têm tido as mesmas fragilidades? São pouco ambiciosas?

As propostas que vêm da Comissão Europeia são depois alvo de propostas de alteração por parte, tanto do Parlamento, como do Conselho. E nós, como colegisladores, melhoramos sempre as propostas, tendo em conta, obviamente, a defesa de interesses. De modo geral, tentamos ter mais ambição da parte do PE no combate às alterações climáticas.

Sara Cerdas sobre a fragmentação do PE e a perda de ambição no combate às alterações climáticas

O que vimos foi um recuar desta ambição nos últimos meses, ou no último ano, devido ao aproximar das eleições europeias e apenas para ganhos eleitorais. Dou aqui o exemplo da Lei do Restauro da Natureza, que foi muito politizada, em que houve muita desinformação, houve um discurso muito populista e houve também um afastamento daquilo que era uma maioria mais de centro e progressista para uma fragmentação do Parlamento. Creio que isso irá ser um grande problema na próxima legislatura, em que iremos ter um Parlamento mais fragmentado, com mais forças de extrema-direita que são antiprojeto europeu, são contra a construção europeia, e isso tem de nos fazer refletir sobre onde é que estamos a falhar e como é que podemos combater esta onda.

As projeções indicam precisamente um aumento de eurodeputados eurocéticos e da direita radical e populista. Se as previsões se confirmarem e a extrema-direita ganhar mais lugares no PE, quais é que são as consequências para a política europeia?

Vão existir várias consequências, obviamente, é tudo na base da previsão. Mas da minha própria experiência pessoal, o que eu notei muito nestes últimos cinco anos é que os deputados da extrema-direita não participam nos trabalhos, nas comissões, nas reuniões, mas usam aquele espaço mediático de plenário para fazer afirmações mais controversas ou mais populistas, se calhar, não contando num fundo de realidade ou [não] baseadas na melhor evidência. Isso foi sempre uma grande frustração, obviamente, num futuro Parlamento, o que se espera é que haja uma maioria progressista social e ecológica que contraponha este peso que a extrema-direita tem vindo a alcançar. Mas a previsão é de que haja menor ambição no combate às alterações climáticas. Aliás, como já se viu com toda a discussão à volta da Lei do Restauro da Natureza, acho que é muito grave que essa diminuição de ambição aconteça. Temos de ter uma transição ambiental e digital que seja justa, que não deixe ninguém para trás, mas é preciso perceber que estamos aqui contratempo e temos de continuar com um bom ritmo. Caso contrário, iremos ultrapassar o ponto de não retorno, e é isso que a ciência nos tem vindo a alertar constantemente. 

Sara Cerdas sobre a possível ascensão da extrema-direita no PE

Refiro aqui também um aspeto importante: nós apenas conseguimos mais ambição no combate às alterações climáticas pelos movimentos civis, nomeadamente o movimento Fridays for Future, ou Sextas Feiras pelo Clima. Esses movimentos fizeram ainda mais pressão para conseguirmos ter esta ambição, portanto também [gostaria de] relevar a importância desta comunicação constante com a sociedade e esta abertura que também influencia o trabalho que um eurodeputado faz. Não é apenas elogiar os eurodeputados, mas durante os cinco anos os cidadãos são aqueles que têm de fazer valer também as suas posições e esses movimentos tiveram um impacto importante pela positiva para termos mais ambição. Até a própria presidente Ursula von der Leyen usou o Pacto Ecológico Europeu como uma bandeira do seu mandato.

A sociedade civil reconhece que tem esse poder de influência?

Tem em parte, não na sua real capacidade de influência. Nós também temos um sistema de lobbying nas instituições europeias. Obviamente que melhorámos no sentido de maior transparência, porque reconhecemos que um eurodeputado não consegue perceber tudo sobre tudo e precisamos das mais diversas posições para formarmos a nossa posição final consoante as nossas ideologias e aquilo para o qual fomos eleitos de acordo com o programa, mas também com novas propostas. Mas existe uma grande capacidade para influenciar esse voto quando temos aquela percepção de que estão todos a olhar para nós: ‘Não podemos desiludir’. Isso faz mover mundos.

Se a sociedade civil está ciente deste poder, eu creio que está ciente apenas parte. [Os cidadãos mais cientes são] aqueles que fazem parte dos movimentos de extrema-direita e de todo este populismo. Mas tem muito poder, sim. Tem muito poder. Mas se calhar pode ainda ser mais desenvolvido. Eu sou médica da área de saúde pública e costumo dizer, geralmente, quando trabalho com universidades ou quando tinha reuniões com eles ou com outras instituições científicas que, às vezes, em Bruxelas faz falta algum lobby baseado na melhor evidência científica até à data. 

Sara Cerdas sobre a consciencialização da sociedade civil do seu poder de influência

Não é expectável que um eurodeputado saiba analisar artigos científicos, mas se temos a melhor evidência, temos de legislar com base nessa melhor evidência. Às vezes, existe um certo delay [atraso] entre aquilo que é a evidência e aquilo que é a prática. Eu dou um exemplo: fui autora do relatório de saúde mental do PE, e nós tínhamos várias propostas de alteração — quando falo em nós, obviamente, eu e a minha equipa —, e uma das questões mais problemáticas foi algo que, para a minha equipa, de um grupo político mais progressista, nem iríamos supor que fosse a mais problemática. Nós queríamos incluir, e conseguimos, banir as terapias de conversão sexual na UE, que em alguns Estados-Membros ainda [não são banidas]. Isso foi um assunto de muita discussão, e era algo que era impensável para nós. Estas terapias têm toda uma evidência científica: não resultam, são imorais, são terríveis e têm um grande impacto, não apenas para o indivíduo, mas também para a sociedade. Dando esse exemplo, de que às vezes existem colegas que ainda não... Se calhar não receberam essa informação, mas quando a sociedade civil se junta, consegue fazer mover mundos e fundos.

Tomou posse como eurodeputada poucos meses antes do primeiro caso conhecido de covid-19 no mundo. Considera que a pandemia alterou a forma como os eurodeputados e as instituições europeias olham e pensam a área da saúde?

Sim, muito, muito mesmo. Quando comecei, toda a gente perguntava porque é que uma médica ia para o PE: a saúde não é uma política europeia. Tinha sempre de explicar que era médica da área de saúde pública, ou seja, o meu doente em saúde pública, o nosso doente, não é a pessoa que está à nossa frente num consultório, mas a população onde trabalhamos ou para quem trabalhamos.

Depois, também explicar que, apesar de a saúde, ou de a prestação de cuidados, não ser uma competência da UE, é de cada país, como é que organizamos os nossos sistemas de saúde? A proteção da saúde pública é uma competência partilhada, e esta questão estava muito pouco explorada… Estava na questão dos fármacos, com a Agência Europeia de Medicamentos, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças. Mas a pandemia veio abanar isto e dizer que a saúde é séria numa sociedade e estamos tão mais avançados quanto o nosso elo mais fraco. Também veio mostrar outra coisa, que é: a saúde não vê fronteiras. Numa questão de saúde global isso também foi muito importante.

Poderíamos ter tido outra resposta, mas para isso também fizemos a nossa própria análise na Comissão Especial de covid-19, aquilo que aconteceu, quais são os ensinamentos para o futuro. Melhorámos muitos regulamentos e estamos mais bem preparados para futuras ameaças transfronteiriças graves em saúde. Mas também outros mecanismos importantes da área da saúde que, se calhar, nunca teriam saído da cabeça, nem digo do papel, que é, por exemplo, o Passe Europeu de Dados em saúde, ou mesmo a questão da saúde mental, que era tão tabu há umas décadas e há alguns anos ainda existia muito estigma. Durante a pandemia foi também um acordar para: ‘Ok, estamos a ter um grande aumento de doença mental. Como é que podemos abordar este aumento de incidência de uma forma mais concertada? Quais são as boas práticas em cada Estado-Membro, mas também do ponto de vista europeu? O que é que podemos fazer na UE, sabendo que somos muito mais do que apenas a soma das 27 partes?’ E isso foi muito importante.

O exemplo mais óbvio foi a aquisição conjunta de vacinas, de outra forma não teríamos conseguido virar a página em dois anos, iriam sempre existir muitas mais iniquidades em saúde, mas também a resposta financeira à crise socioeconómica que daí veio. Isso fez também perceber que a saúde tem de ter uma abordagem mais de saúde em todas as políticas. Qual é o impacto que certa política irá ter na saúde pública? Ou seja, na população do ponto de vista da saúde? E isso foi muito importante. Quando vemos alguém de que gostamos muito desejamos sempre muita saúde. Então porque é que a saúde fica para trás quando legislamos? Podemos fazer muito mais. 

Eu também costumo dar o exemplo de uma meta-análise que fizeram em 2017. Se não estou em erro, por cada euro investido em políticas de longo prazo de saúde pública, temos um retorno de 14 euros. Era em pounds [libras] o artigo, mas era ‘1 for 14 fold’. [São números] que fazem pensar, porque se calhar um orçamento europeu multiplicado por 14… Os ganhos são muito relevantes para toda a sociedade em todos os setores.

Na última sessão plenária do Parlamento, em abril, disse que havia nascido a UE para a Saúde, mencionando o Espaço Europeu de Dados de Saúde. Quais são os efeitos práticos desta criação, nomeadamente para os cidadãos que habitam nas Regiões Ultraperiféricas da UE?

Costumo dar o exemplo de que isto será o roaming para a saúde. Se for a Espanha e tenho um problema de saúde e tenho de recorrer ao médico, o médico em Espanha irá ter acesso ao meu registo clínico feito em Portugal, se eu assim o entender, obviamente. Aqui tivemos de garantir todas as condições de confidencialidade e de segurança. [O médico terá acesso ao registo clínico] na sua língua nativa e isso facilitará muito. Está prevista uma redução de despesas em 20% para a saúde, que é muito, e irá existir também um grande benefício, não apenas para o utente, mas também para a sociedade no geral. 

Por exemplo, na Madeira, o sistema de saúde é diferente do continente. A saúde aqui é regionalizada e os sistemas, o público e o privado, não comunicam entre si. Se eu for ao continente com este Espaço Europeu de Dados em Saúde, o médico a quem eu recorrer irá ter acesso ao meu registo clínico e a todos os exames complementares diagnóstico e terapêutico. Isso fará com que eu não tenha, se calhar, de repetir um raio-x ou de repetir um TAC. Esta eficiência irá ser uma das mais valias do ponto de vista do uso primário dos dados. 

Do uso secundário, será para todo o potencial de inovação e investigação. As doenças raras, por exemplo, que afetam mais de 30 milhões de pessoas na UE… Ter uma base de dados das doenças raras europeia é muito diferente de ter uma base de dados de doenças raras em Portugal, Chipre, Malta, ou mesmo na Alemanha, porque as doenças raras obviamente são também várias patologias diferentes. Isso irá alavancar e muito, não apenas as perspetivas terapêuticas, mas também as perspetivas diagnósticas e as perspetivas de prevenção. Ou seja, garantir que conseguimos também perceber o que é que está a provocar melhor saúde ou mais doença e como é que podemos atuar para essa prevenção. Por exemplo, no caso do cancro, nós ainda não conhecemos 50% dos fatores de risco do cancro e, se calhar, é algo que será respondido com este Espaço Europeu de Dados de Saúde.

Mencionou o relatório da UE sobre a saúde mental, da qual foi a principal relatora. Que iniciativas legislativas ou políticas financeiras considera prioritárias nesta área?

Houve três grandes recomendações que deixámos no relatório. Tentámos que ficasse o mais completo possível. As três grandes recomendações que deixámos e que pedimos são: que haja uma linha de financiamento próprio no próximo programa de investigação e inovação da UE, ou seja, o atual programa Horizonte, no próximo quadro financeiro plurianual. Atualmente, a saúde mental insere-se na missão para as doenças cerebrais, mas nós aqui queremos um financiamento específico.

A segunda medida é ter mais atenção e sensibilidade para o tema da saúde mental e para a questão de que é ok não estar ok, que a cada momento da nossa vida poderemos estar mais vulneráveis ou pertencermos até a mais do que um fator de risco e estar mais vulneráveis para a doença mental. Pedimos que o próximo ano europeu seja o Ano Europeu da Saúde Mental: sabemos que em cada ano europeu existe mais atenção mediática para aquele tema, mais projetos específicos e até mais financiamento. 

A terceira medida será, do ponto de vista legislativo, uma estratégia europeia para a saúde mental, com objetivos bem definidos, onde é que estamos, e indicadores mesuráveis que estabeleçam, de certa forma, qual é o status quo da UE em termos de saúde mental e quais são as metas que pretendemos atingir. Será muito importante, porque também irá trazer muito mais atenção, financiamento e partilha daquilo que são as best practices [melhores práticas]. 

Na questão da saúde mental, relevo também que pedimos uma abordagem de saúde mental em todas as políticas. É importante ressalvar que a colaboração com todos os setores, não apenas no setor da saúde, por exemplo, na infância, na adolescência, é muito importante o setor da educação intervir cedo: implicará melhor prognóstico, melhores diagnósticos e melhores prognósticos e sempre de uma forma preventiva. E depois toda a reintegração que é importante que haja sempre de uma forma muito estruturada. 

Quando apresentou o relatório teve algum feedback negativo ou de desvalorização por se tratar de questões relacionadas com saúde mental? Ou foi algo consensual?

Foi mais ou menos consensual. Se calhar, não foi tão consensual o conteúdo como eu esperaria, mas foi consensual. Em saúde, geralmente, é consensual. Toda a gente quer mais saúde, a questão é: como é que atingimos mais saúde? Temos visões distintas do ponto de vista político-partidário, existe quem queira apenas atuar sobre um grupo muito específico de doenças, outros de uma maneira mais holística que abranja mais pessoas. Mas de certa forma foi consensual e penso que aqui a pandemia fez abrir muito a perceção da importância que a saúde mental tem nas nossas vidas e que também tem DE ter a mesma importância que damos hoje à saúde física.

Sara Cerdas sobre o consenso em torno do relatório sobre saúde mental
Mencionou há pouco que o crescimento da extrema-direita no PE poderia fazer com que não se desse tanta atenção aos problemas ambientais. O debate em torno da militarização da Europa e das questões de defesa pode ter o mesmo efeito para os problemas sociais e relacionados com a saúde?

Sim e, de certa forma, aconteceu. Os recursos são finitos, e precisa de existir uma boa partilha de recursos e de quais são as prioridades, mas tivemos o maior orçamento de um programa de saúde europeu de sempre, que é o EU4Health, o Programa Europeu de Saúde 2021-2027: 5,3 milhares de milhões de euros. Ainda há pouco, com a revisão, houve um corte de cerca de um milhão desse pacote. É uma reflexão que também é preciso ser feita, porque nós não podemos apenas viver de políticas feitas a pensar no ciclo político. Temos de fazer políticas também a pensar nas futuras gerações e no longo prazo, porque os benefícios irão ser muito maiores. Se calhar, não estaremos cá nestes cargos para colher os frutos, mas eu penso que a missão vai muito para além desse reconhecimento

De que forma é que encara o trabalho que desenvolveu nesta legislatura?

Acho que desenvolvemos um bom trabalho, eu e a minha equipa. Tive dossiês muito importantes nesta legislatura. Nós achávamos, no início, que o grande tema da legislatura ia ser o Pacto Ecológico Europeu e, de repente, foi o Pacto Ecológico Europeu, com a declaração da emergência climática, e toda a legislação que daí veio. Mas também foi a pior pandemia dos últimos 100 anos e a crise socioeconómica que daí também veio. E depois foi uma guerra mesmo no nosso quintal e toda a crise também socioeconómica que daí veio. Foram três grandes batalhas desta legislatura, mas estou muito orgulhosa do trabalho que este Parlamento fez nesta legislatura, em particular, obviamente, o trabalho que os eurodeputados do PS fizeram nesta legislatura em áreas muito importantes e relevantes para o nosso presente e o nosso futuro.


*Estes números são frequentemente atribuídos a Jacques Delors, presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995. Em 1988, num discurso, afirmou que: “Dentro de dez anos, 80 % da legislação relativa à economia, talvez também à fiscalidade e aos assuntos sociais, será de origem comunitária.” Ainda assim, este número é contestado e a influência da legislação europeia varia em cada Estado-Membro, nomeadamente entre diferentes áreas e setores.

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22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

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