Reza a lenda que, no ano de 2019 d.C, uma criatura mitológica pré-histórica, vinda das profundezas da terra (ou seria do mar?), surgiu no Brasil, capaz de dominar a mente de parte da população que ali habitava a ponto de fazer as pessoas romperem suas relações familiares, assassinarem outras pessoas por expressarem opiniões políticas divergentes e criticarem o governo bizarro do tal mito, e, ainda, de causar um astigmatismo seletivo nas pessoas dominadas, impedindo-as de ver o país afundar aos hectares por dia. Há quem diga que a tal criatura apareceu pela primeira vez no impeachment da única presidente do país, congratulando um torturador do período ditatorial e defendendo um Brasil acima de tudo e um Deus acima de todos (menos dele e dos mitozinhos, obviamente). Há quem diga que a criatura também foi observada por Freud, quando ele estava a escrever sobre sua majestade o bebê, e que também viveu na Alemanha e foi arquiteto do primeiro campo de concentração nazista para queimar judeus. Já outros, acreditam que a criatura é muito mais antiga, e dizem existir relatos de que a tal criatura já dominava os olhos dos colonizadores quando pisaram no Brasil pela primeira vez, que foi a primeira a chicotear um homem africano escravizado, a violar uma mulher indígena, a assassinar um gay, e, posteriormente, a torturar um militante. Por fim, há ainda quem diga que a criatura vem do futuro, e que é o próprio anti-cristo disfarçado, embora as trevas já tenham chegado no Brasil precisamente há três anos e nove meses.
Por mais inacreditável que seja a chegada de figuras tão bizarras ao governo, e por mais surreal que tenha se tornado o comportamento de pessoas que defendem o circo que se instalou no Brasil com unhas e dentes (mas não com o cérebro, obviamente), a Psicologia e a Psicanálise, há décadas, vêm estudando o comportamento de massas de sujeitos que se unem por uma ideologia em comum e perdem sua racionalidade. É comum que esse processo seja manipulado por políticos para satisfazerem os próprios desejos e caprichos, e que eles utilizem (ou criem) uma descrença no governo vigente, onde um "mito" possa surgir com um discurso muito enérgico de que ele, o salvador, irá restaurar a ordem do país (causando, ele mesmo, desordem e anarquia), com o apoio de Deus (mas o Deus old school, do antigo testamento), dos militares (21 anos de tortura), e com os valores da família tradicional (onde em briga de marido e mulher não se mete a colher), e, no caso do Brasil, não podemos esquecer também que somos um país que foi colonizado e construído com bases racistas, e que é exatamente isso que o tal mito representa: o homem branco colonizador.
Parece absurdo ver uma mulher declarando que vota em misógino, uma pessoa negra declarando que vota em racista, gays declarando que votam em homofóbico, pessoas que não têm acesso a direitos fundamentais declarando voto em alguém que sucateia a educação e a saúde públicas, e imigrantes do sul global declarando voto em alguém que incentiva o turismo sexual no Brasil ao dizer que os homens estrangeiros podem ficar a vontade para ir fazer sexo com mulheres brasileiras por lá, o que, como sabemos pela nossa experiência cotidiana, só reforça os estereótipos de um corpo colonial disponível a homens europeus (dessa vez não dá mesmo para culpar a bunda internacional da Anitta, sorry), mas, se considerarmos aqui que o tal mito representa (ou tenta representar) o estereótipo do macho branco europeu patriarcal que a sociedade vende, a todo o tempo, como um ideal a ser alcançado, talvez já não pareça tão absurdo assim. Vivemos em uma sociedade que odeia mulheres, que odeia negros, que odeia gays, que odeia pobres (sim, aqueles que nós fingimos não enxergar quando nos pedem ajuda nas ruas), e que odeia o sul global, então, como é que nós, mulheres, negros (ou não-brancos), gays, pobres, e brasileiros, ensinados a odiar nossa própria identidade ou condição social e a desejar ser outro, vamos conseguir amar quem somos e amar o nosso país? Para que isso aconteça é preciso começar a questionar, desenvolver uma consciência política, e aprender a valorizar nossa identidade, e aceitar, com orgulho, quem nós somos.
Votar em um suposto macho branco europeu patriarcal nos esvazia das nossas identidades e não nos faz ser mais machos, menos mulher, mais brancos, menos gays, mais ricos, ou europeus, não nos permite fugir de quem somos e pertencer a uma outra realidade, só reforça a ideologia que nos foi imposta pelos senhores coloniais de que eles é que são o nosso ideal. O ano de 2022 ficou marcado como o ano em que o Brasil completou 200 anos de independência de Portugal. Que seja o ano em que vamos mostrar, democraticamente, que o Brasil realmente pertence a nós, brasileiros. Vamos às urnas e Fora Bolsonaro.