A democracia não passará de uma engrenagem retórica se formos incapazes de criar espaços e tempos de suspensão da dominação. Sei bem a enormidade da tarefa e não transporto nenhum voluntarismo heroico ou ingenuidade pulsante. Em casa, no trabalho, nos lazeres, na política ou na religião, adestram-nos de tal forma que sabemos consciente ou inconscientemente o “nosso lugar”, a posição que ocupamos numa dada ordem (que é, ao mesmo tempo, objetiva, material e mental) e estamos constantemente a mostrar aos outros o seu lugar na arbitrária arquitetura das coisas e das relações. Nessa medida, devemos pensar, agir e sonhar apenas de acordo com o que nos é possível, ajustando os nossos projetos ao dique que trava veleidades maiores. O nosso corpo, em particular, aprende a “estar”, a “comportar-se”, a não trair, a autorizar-se ou a proibir-se consoante as pistas e os indícios da presença/ausência do poder nos variados cenários da prática quotidiana. Quão menos visível e proclamativo, mais este se faz obedecer, sem necessidade de vociferar o comando ou repetir a ordem.
Ensinam-nos que não há mundo sem mando e que seremos melhores se mandarmos mais. Nas empresas, a competição individualizada é encarada como uma lei natural, impregnando-se nos hábitos mentais como a respiração na sobrevivência biológica. Em casa, uma moral de antanho estipula a autoridade acoplando-a à divisão sexual das tarefas. Nas Igrejas, os sacerdotes possuem os segredos da comunicação com o sagrado e na política os porta-vozes dispensam as vozes da polifonia democrática.
Mesmo nas instituições públicas aparentemente mais dotadas de recursos críticos e reflexivos, como as Universidades, as relações sociais processam-se numa rígida hierarquia envolta na tralha ritual dos trajes, dos títulos e da reverência. O monopólio das situações legítimas de fala indica quem pode falar, quando, o quê e para quem. Por isso, ainda hoje me emociono com a fotografia do então jovem Daniel Cohn-Bendit a pôr o mundo às avessas quando sorria para o polícia da tropa de choque que o barrava na Sorbonne ou quando levantava o dedo para interromper o Catedrático que falava pomposamente no altar-palco da aula magistral.
O essencial da nossa aprendizagem desenrola-se dentro de uma ordem moral e organizativa que transmite conhecimentos, mas, sobretudo, um conformismo com a configuração das relações sociais. O essencial da aprendizagem nas sociedades da desigualdade é a interiorização da moldura geral dos comportamentos, não a sua transformação.
Por isso, a cultura de pares é tão importante. Pares são aqueles e aquelas que, num dado contexto, suspendem a ativação das relações de poder. Uma sociedade justa, igualitária e de reconhecimento da diferença promoveria tais alicerces nas suas políticas públicas. Contudo, dada a voragem da acumulação de poder e de desigualdade para o infinito, importa não perder a energia num torpor fatalista de que “nada vale a pena”.
A multiplicação de experiências insurgentes (por grupos, associações e/ou movimentos sociais) pode despertar (ou até mesmo criar) maneiras de agir, de pensar e de sentir que se subtraiam paulatinamente à economia emocional da dominação. Tais exercícios exigem conhecimento histórico e antropológico, para desnaturalizar a transmissão do poder e desocultar os mecanismos (sinuosos, até silenciosos) da música da dominação. O que, por sua vez, implica tempo e programa. De pouco valem os exercícios performativos e paródicos de inversão e desestabilização de papéis se não estiverem inscritos num processo sistemático, com objetivos e etapas. Os momentos valem se transcenderem a mera lógica da aparição e da epifania e se puderem ser repetidos, melhorados, treinados, retificados.
Por sua vez, tais programas de desobediência estruturada e de experimentação de novas configurações de relacionamento ganhariam em serem exercitados a partir de lugares intersticiais, aproveitando as margens de manobra e as zonas de incerteza em que a estrutura da distribuição de poder aparece menos definida. Estas brechas, que podem ser mapeadas dentro das instituições (locais de trabalho, escolas, universidades, igrejas, partidos), ampliam a prática e a imaginação de outras possibilidades para a ação.
Finalmente, relembro as palavras do sociólogo Pierre Bourdieu, “a suspensão da força e das relações de força… que pode ser arrancada às águas frias do cálculo, da violência e do interesse” assenta pilares na reciprocidade e no reconhecimento mútuo; enfim, nas relações que recusam a instrumentalização e que entregam livremente a sua liberdade a outrem que em troca faz o mesmo. Numa palavra forte: a Amizade. Num terramoto: o Amor.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.